O Despertar de Tudo, de David Graeber e David Wengrow

Disclaimer: se quiser saber mais sobre o livro que dá título a este texto e não tiver vontade nem tampouco paciência para se deter em divagações narcisísticas do autor de mais esta anti-resenha, avance a leitura diretamente para depois dos próximos três asteriscos (* * *).

Por que, afinal, anti-resenha ? Pois não é a primeira vez nem deve ser a última em que me refiro a um comentário sobre um livro lido desta forma. Penso ser por se tratar, antes de uma sinopse seguida por (ou intercalada a) uma apreciação crítica, de uma crônica do processo de leitura do mesmo. Ritmo da leitura (lento X rápido). Associações suscitadas pela mesma. Coisas assim.

Agora, se não tiver vontade de ler nem este preâmbulo nem a resenha que o segue, não perca mais tempo. Corra a uma livraria e compre (ou, mais provavelmente, encomende) o livro. É satisfação garantida. Tanto que me atrevo a lançar aqui, publicamente, o mesmo desafio, quase uma admoestação, proposto por Charlles Campos, anos atrás, ao me recomendar Colapso, de Jared Diamond, a saber, que, se acaso eu não gostasse, me compraria de pronto o volume que eu houvera adquirido por indicação sua. Convincente, não ? Tanto que comprei o livro. E gostei. Mas por que, no presente caso, tamanha autoconfiança ? Por que tenho certeza de que não se arrependerão. A propósito: o próprio Diamond é citado por Graeber e Wengrow em O Despertar de Tudo. Mais de uma vez.

Adquiri meu exemplar de O Despertar de Tudo na Bamboletras, por ocasião da palestra de um seu seus autores no Fronteiras do Pensamento que, para minha grande lástima, perdi. Antes, já havia resenhado o estupendo Bullshit Jobs – a Theory (ainda inédito em português) de Graeber, além de traduzir um artigo seu para Strike e Evonomics e uma entrevista para The Economist.

* * *

David Graeber, antropólogo, e David Wengrow, arqueólogo, ambos autoridades reconhecidas em suas respectivas áreas, se lançaram, quase que como uma brincadeira, ao propósito de reescrever, em parceria, a história da humanidade. Uma ideia ambiciosa. Presunçosa, até – ainda que, como verão, só em aparência. Depois de uma colaboração que se estendeu por mais de 10 anos, publicaram O Despertar de Tudo.

A própria dimensão do volume resultante já dá uma ideia da envergadura do projeto. São ca. 700 páginas, 150 das quais só de notas e índice onomástico. Só que uma leitura que se apresenta assim, de um modo quase intimidante, vai se revelando pouco a pouco como fluida e convidativa. Seus autores intercalam um longo relato de dados de pesquisa que, outrossim, poderia parecer um tanto enfadonho, com argumentações brilhantes, críticas mordazes a seus próprios campos de conhecimento e, não raro, um humor refinadíssimo. Em suma, uma viagem intelectual das mais gratificantes que alguém poderia empreender.

Toda a narrativa é permeada por extensas citações de outros autores (e explanações sobre o pensamento dos mesmos), tanto daqueles com os quais os autores concordam como, o que é mais importante, daqueles de quem discordam – o que é mais raro e, portanto, louvável.

Com o avançar da leitura, algo que vai ficando cada vez mais patente para quem ainda não sabe ou desconfia é o quanto a “grande narrativa da história” está calcada sobre um número absurdamente pequeno de casos, não por acaso aqueles que melhor corroboram pontos de vista ostentados e/ou defendidos por seus  narradores contumazes. O quê ? Então quer dizer que a história não é neutra ? Lamento, aqui, se estou dando algum spoiler, mas acho bom você apertar o botão de reset. Mas devagar. Vamos por partes.

Como eu ia dizendo, com o avançar da leitura vão caindo por terra algumas noções românticas ou extremamente simplificadas que temos, por exemplo, da arqueologia. Esqueçam coisas como tumbas de faraós, saqueadores e Indiana Jones. Antes de ler o livro, eu não tinha ideia (me desculpem a ignorância) da enorme profusão que há de sítios arqueológicos ao redor de todo o globo. Nos inteiramos, também, que o conhecimento adquirido nesta área nos últimos 50 anos é muito maior do que o que se sabia, por exemplo, no início do século 20.

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Mas sobre o que é o livro, afinal ? Para responder a isto, nada melhor do que começarmos pelo final. Mais exatamente, por sua última frase: “Agora sabemos que estamos diante de mitos.”

O Despertar de Tudo é sobre mitos. Mais especificamente, sobre aqueles que sustentam a falsa sensação de inevitabilidade histórica. Para chegar a eles, os autores partem do pressuposto de estarmos num mundo altamente insatisfatório (pelo menos um deles é anarquista) e da consequente pergunta: “Como chegamos a isto ?”. Impelidos por esta “mola mestra”, embarcam numa jornada indagatória acerca de vários mitos, dentre os quais

  • a pouca credibilidade de filósofos indígenas brilhantes contemporâneos ao Iluminismo, já que, de acordo com o ethos dominante da época, toda profundidade intelectual seria privilégio de europeus, estando indígenas condenados, portanto, a um status de inocentes selvagens – até por que a existência de tais mentes brilhantes indígenas é geralmente fundamentada sobre relatos de colonizadores, geralmente religiosos, os quais estariam, por sua vez, irremediavelmente “contaminados” pelo tipo de narrativa que seus conterrâneos contemporâneos teriam gostado de ouvir. Neste contexto, não é por acaso que grandes filósofos indígenas desacreditados, como Kondiaronk, tenham sido justamente aqueles que dirigiram as críticas mais severas à forma de organização da sociedade europeia tais como o dinheiro e a dominação do mais fraco pelo mais forte;
  • a noção, formulada pela primeira vez em 1751 por A. R. J. Turgot e depois perpetuada por Adam Smith, de que as sociedades humanas, influenciadas pelo progresso tecnológico, passavam necessariamente por 4 etapas evolutivas – a saber, de caçadores-coletores, pastoril, agrícola e civilização mercantil urbana – correspondendo a última ao estágio mais avançado;
  • a ideia de que a propriedade privada foi consequência direta da revolução agrícola, seja pelo cercamento de terras ou pela manipulação de excedentes. Ora, pesquisas arqueológicas recentes revelam que, por um período bastante prolongado, de ca. 1000 anos (período, portanto, demasiado extenso para qualquer “revolução”), a humanidade flertou com a ideia do cultivo extensivo, hesitando entre o mesmo e um plantio lúdico, só para subsistência, e, no caso de alguns grupamentos humanos, rejeitou deliberadamente a agricultura extensiva;
  • a ideia de que a deliberação sobre formas de organização social é um fato bem recente na história humana, peculiar aos últimos séculos. Hoje sabemos que povos antigos, anteriores à escrita, já tomavam decisões políticas quanto às próprias formas de organização social;
  • a ideia de que governos centralizados e eventualmente estados se tornam obrigatoriamente necessários sempre que uma sociedade ultrapasse um certo tamanho. Ou, noutras palavras, estados são antes de tudo um problema de escala. Mas não é bem assim. Em todos os continentes, são muitos os vestígios de cidades e assentamentos pré-históricos de grande porte voluntariamente administrados por meio de formas de auto-gestão. Nestes casos, decisões eram tomadas por conselhos comunitários ao invés de por reis ou outras formas centralizadas de governo.

* * *

Como bons cientistas, os autores adoram categorizações. Dois grupos recorrentes em todo o relato são as 3 liberdades humanas fundamentais, que são

  • a de ir e vir,
  • a de desobedecer ordens recebidas e
  • a de experimentar outras formas de organização social,

e os 3 pré-requisitos para a existência de um estado, que são

  • o monopólio do uso (ou ameaça de uso) da força ou da violência como forma de coerção,
  • o controle sobre a informação (burocracia) e
  • o poder carismático.

As 3 últimas categorias são usadas para caracterizar estados incipientes como estados de primeira ordem (aos quais faltam dois dos pré-requisitos acima) ou de segunda ordem (aos quais faltam um deles).

Quanto às três liberdades fundamentais, os autores afirmam que, enquanto a primeira e a segunda (i.e., a de ir e vir e a de desobedecer) não existem nos estados verdadeiros, nos acostumamos com (banalizamos) a ideia de que a terceira (i.e., a de experimentar outras formas de organização social) não apenas não existe como também nunca existiu.

* * *

Em todo o relato, são muitas as evidências de sociedades pré-históricas, pré-colombianas ou mesmo posteriores à invasão do continente americano pelos europeus, de índole igualitária, que se auto-geriam repudiando deliberadamente a existência de reis ou qualquer forma de governo imposta de cima para baixo – não havendo, por outro lado, qualquer evidência de uma linha evolutiva obrigatória que culmine na existência de estados ou qualquer forma de poder centralizado. Ao final, os autores se perguntam aonde foi que erramos, deixando a questão em aberto.

* * *

Curiosidade: por mais de uma vez ao longo do livro, Graeber & Wengrow se referem à conquista do continente americano pelos europeus, a partir de pouco mais de 500 anos, como “invasão”. O que nos remete de pronto à presença de franceses e holandeses no nordeste brasileiro, as quais nos acostumamos, desde os bancos escolares, a chamar de “invasões” (mais ou menos como o golpe de 1964 foi por muito tempo chamado de revolução) – o que sugere que o termo “invasão” nada mais é do que uma conquista que (ao contrário da invasão da América pela Europa, no dizer dos autores) não deu certo, i.e., na qual os “invasores” foram expulsos. Senão, seriam conhecidos até hoje como “colonizadores”. Noutras palavras, não existe linguagem ideologicamente neutra.

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Talvez a razão pela qual mais detesto resenhas é por que elas são, por definição, reducionistas. Especialmente neste caso, o livro é muito mais do que tudo acima. Então, na impossibilidade de destacar um único trecho como o mais representativo do mesmo, transcrevo, abaixo, a dedicatória – que, por alguma razão, me fez pensar no que Bill Evans sentiu por ocasião da morte prematura e inesperada de Scott LaFaro.

David Wolfe Graeber morreu aos 59 anos de idade, em 2 de setembro de 2020, apenas 3 semanas depois de terminarmos a escrita deste livro, que nos absorvera por mais de 10 anos. Começou como uma distração de nossas obrigações acadêmicas mais “sérias”: uma experiência, quase um jogo, em que um antropólogo e um arqueólogo tentavam reconstruir aquele tipo de diálogo grandioso sobre a história da humanidade que costumava ser tão comum nos nossos campos, mas agora com dados científicos modernos. Não havia regras nem prazos. Escrevíamos como e quando tínhamos vontade, o que veio a se tornar cada vez mais uma atividade diária. Nos últimos anos antes de concluirmos, e conforme o projeto ganhava impulso, não era raro conversarmos 2 ou 3 vezes por dia. Com frequência esquecíamos quem tinha aparecido com essa ou aquela ideia, com esse ou aquele novo conjunto de fatos e exemplos; ia tudo para “o arquivo”, que logo ultrapassou o âmbito de um livro. O resultado não é uma colcha de retalhos, mas uma autêntica síntese. Percebíamos os nossos estilos de pensamento e escrita convergindo pouco a pouco até se tornarem um fluxo único. Percebendo que não queríamos encerrar a jornada intelectual em que tínhamos embarcado, e que muitos conceitos apresentados neste livro se fortaleceriam caso fossem mais desenvolvidos e exemplificados, planejamos escrever as continuações: nada menos que 3. Mas este primeiro volume precisava terminar em algum ponto, e em 6 de agosto, às 21h18, David Graeber anunciou com uma grandiloquência típica do Twitter (e citando vagamente Jim Morrison), que estava pronto: “O meu cérebro se sente atingido por uma entorpecedora surpresa”. Chegamos ao fim como havíamos começado, com diálogo e uma constante troca de rascunhos, lendo, partilhando e discutindo as mesmas fontes, não raro madrugada adentro. David era muito mais do que um antropólogo. Era um intelectual público e ativista de renome internacional, que procurou viver de acordo com seus ideais de libertação e de justiça social, dando esperança aos oprimidos e inspirando inúmeros outros a seguirem esse exemplo. Este livro é dedicado à cara memória de David Graeber (1961-2020) e, como era do seu desejo, à memória de seus pais, Ruth Rubinstein Graeber (1917-2006) e Kenneth Graeber (1914-96). Que descansem juntos e em paz.

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Economistas estão obcecados pela “criação de empregos”. E se trabalhássemos menos ?

O aumento da automação não reduziu a carga de trabalho. Por que não ? E se reduzisse ?

Por  Peter Gray

Em 1930, o economista britânico John Maynard Keynes previu que, pelo fim do século, a jornada média de trabalho semanal seria de 15 horas. A automação já havia começado a substituir muitos postos de trabalho no início do século 20, e Keynes previu que a tendência se aceleraria até o ponto onde tudo do que as pessoas precisariam para uma vida satisfatória poderia ser produzido com um mínimo de trabalho humano, tanto físico como mental. Keynes provou estar certo quanto ao aumento da automação. Hoje temos máquinas, computadores e robôs que podem fazer rapidamente o que anteriormente humanos faziam laboriosamente, e o aumento da automação não dá sinal de se tornar mais lento. Mas ele estava errado quanto ao declínio do trabalho.

Ao mesmo tempo em que antigos empregos foram substituídos por máquinas, novos surgiram. Alguns destes novos empregos resultam diretamente de novas tecnologias e podem ser justamente designados como benéficos à sociedade além de simplesmente manterem as pessoas empregadas (Autor, 2015). Empregos em tecnologia da informação são exemplos óbvios disto, bem como trabalhos atendendo a novos domínios da diversão, tais como projeto e produção de jogos computacionais. Mas também temos um sempre crescente número de trabalhos que parecem completamente inúteis ou mesmo nocivos. Como exemplos, temos administradores e assistentes administrativos em número ainda maior processando papéis que não precisam ser processados; advogados corporativos e seus subordinados ajudando grandes empresas a pagar menos impostos do que devem; incontáveis pessoas nas indústrias financeiras fazendo sabe-se lá que travessuras; lobistas usando todos os meios possíveis para corromper ainda mais nossos políticos; e executivos publicitários e de vendas empurrando coisas das quais ninguém precisa ou realmente quer.

Um fato triste é que muitas pessoas despendem hoje porções enormes de suas vidas em trabalhos que sabidamente não beneficiam a sociedade (vejam Graeber, 2013). Isto leva a um cinismo tal que pessoas começam mesmo a parar de pensar que empregos sirvam supostamente para beneficiar a sociedade. Temos, por exemplo, o espetáculo de políticos em ambos os lados do espectro lutando para manter fábricas de munições abertas em seus estados para preservar os empregos mesmo quando os próprios militares alegam que as armas produzidas pelas fábricas já não são mais úteis. E também temos políticos e especialistas argumentando que a mineração de combustíveis fósseis e fábricas emitentes de carbono devem ser mantidas em nome dos empregos, que se dane o ambiente.

O verdadeiro problema, é claro, é econômico. Descobrimos como reduzir a quantidade de trabalho necessária para produzir tudo de que precisamos e realisticamente queremos, mas não descobrimos como distribuir estes recursos exceto através de salários recebidos pela semana de 40 (ou mais) horas de trabalho. Na verdade, a  tecnologia teve o efeito de concentrar mais e mais a riqueza nas mãos de uma sempre menor parcela da população, o que constitui o problema da distribuição. Além disto, como um legado da revolução industrial, temos um etos cultural que diz que pessoas devem trabalhar pelo que ganham, e por isto evitamos qualquer plano sério de compartilhar riqueza por outros meios que não em troca de trabalho.

Eu digo, então, abaixo a ética do trabalho; viva a ética da brincadeira ! Somos feitos para brincar, não para trabalhar. Brilhamos mais quando brincamos. Deixemos nossos economistas pensarem sobre como criar um mundo que maximize a brincadeira e minimize o trabalho. Parece um problema solúvel. Estaríamos todos melhor se pessoas em empregos inúteis e nocivos estivessem, ao invés, brincando – e todos compartilhássemos o trabalho necessário e os benefícios dele advindos.

O que é trabalho ?

A palavra trabalho possui, é claro, uma série de significados diferentes e superpostos. Tal como usado por Keynes, e como eu usei nos parágrafos precedentes, se refere à atividade que desempenhamos apenas ou principalmente por que sentimos que devemos fazê-la para sustentar a nós e nossas famílias economicamente. Trabalho também pode se referir a qualquer atividade que experimentamos como desagradável, mas que sentimos que devemos fazê-la quer nos beneficie financeiramente ou não. Um sinônimo para trabalho, segundo esta definição, é labuta, e por esta definição trabalhar é o oposto de brincar. Ainda outra definição é a de que trabalho é qualquer atividade que tenha algum efeito positivo no mundo, seja ela experimentada como agradável ou não. Por esta definição, trabalho e brincadeira não são necessariamente distintos. Algumas pessoas de sorte consideram seu trabalho, no qual ganham suas vidas, como brincadeira. Fariam aquilo mesmo que não precisassem para ganhar a vida. Este não é o significado de trabalho como uso neste ensaio, mas é um sentido que vale a pena ter em mente por que nos lembra de  que muito do que hoje chamamos trabalho, por que vivemos dele, poderia ser chamado de brincadeira num mundo em que nossa vida fosse garantida de outras maneiras.

O trabalho é uma parte essencial da natureza humana ? Não.

Muita gente se surpreende ao saber que, na escala de tempo da história biológica humana, o trabalho é uma invenção nova. Surgiu com a agricultura, quando as pessoas tinham que passar longas horas arando, plantando, capinando e colhendo; e então se expandiu mais com a indústria, quando pessoas passavam incontáveis horas tediosas ou odiosas montando coisas ou trabalhando em minas. Mas a agricultura esteve conosco por apenas dez mil anos e a indústria por muito menos tempo. Antes disto, por centenas de milhares de anos, éramos todos caçadores-coletores. Pesquisadores que observaram e viveram com grupos que sobreviveram como caçadores-coletores em tempos modernos relataram regularmente que esses grupos gastavam pouco tempo fazendo o que, em nossa cultura, seria categorizado como trabalho (Gowdy, 1999; Gray, 2009; Ingold, 1999).

De fato, estudos quantitativos revelaram que o caçador-coletor adulto médio gastava cerca de 20 horas por semana caçando e coletando, e algumas horas a mais em outras tarefas relativas à subsistência tais como confeccionar ferramentas e preparar refeições (para referências, vejam Gray, 2009). Parte de seu tempo acordado restante era passado descansando, mas a maior parte do mesmo era devotada a atividades lúdicas e agradáveis, tais como fazer música, criar arte, dançar, jogar, contar histórias, conversar e brincar com amigos e visitar amigos e familiares em bandos vizinhos. Mesmo a caça e a coleta não eram consideradas trabalho; eram feitas com entusiasmo, sem raiva. Por que estas atividades eram divertidas e empreendidas com grupos de amigos, sempre havia muita gente que queria caçar e colher; e por que a comida era compartilhada com todo o bando, qualquer um que, num determinado dia (ou semana, ou mais) não quisesse caçar ou colher não era pressionado a fazê-lo.

Alguns antropólogos relataram que pessoas por eles estudadas sequer tinham uma palavra para designar trabalho; ou, quando tinham uma, se referia ao que fazendeiros, ou mineiros ou outros não caçadores-coletores com quem tinham contato faziam. O antropólogo Marshal Sahlins (1972) celebrizou-se por se referir aos caçadores-coletores como a sociedade afluente original – afluente não por que tivessem muito, mas por que suas necessidades eram tão pequenas e por que podiam satisfazê-las com relativamente pouco esforço – tendo, portanto, muito tempo para brincar.

Evolutivamente, dez mil anos é um período de tempo quase insignificante. Desenvolvemos nossa natureza humana básica muito antes do surgimento da agricultura e da indústria. Somos, por natureza, todos caçadores-coletores, predestinados a apreciar nossas atividades de subsistência e a ter muito tempo livre para criar nossas ocupações alegres que transcendam a própria subsistência. Agora que podemos fazer toda nossa agricultura e indústria com tão pouco trabalho, podemos reconquistar a liberdade da qual desfrutávamos durante a maior parte de nossa história evolutiva tão logo tenhamos resolvido o problema da distribuição.

Precisamos trabalhar para sermos ativos e felizes ? Não.

Alguns se preocupam com a ideia de que a vida com pouco trabalho seria uma vida de preguiça e depressão psicológica. Pensam que seres humanos precisam trabalhar para ter um sentido de propósito na vida ou simplesmente para se levantar da cama pela manhã. Apontam para como pessoas frequentemente se deprimem ao perder o emprego; ou para como algumas pessoas simplesmente vegetam quando voltam para casa depois do trabalho; ou, ainda, para como alguns, ao se aposentarem, não sabem o que fazer e começam a se sentir inúteis. Mas estas observações ocorrem todas num mundo em que o desemprego significa fracasso na mente de muitos; no qual trabalhadores voltam para casa física ou mentalmente exaustos a cada dia; no qual o trabalho é glorificado e a brincadeira denegrida; e no qual uma vida de trabalho, da escola fundamental à aposentadoria, leva muitos a se esquecerem de como brincar.

Vejam as crianças pequenas, que ainda não começaram a ir à escola e portanto ainda não tiveram sua curiosidade e capacidade lúdica suprimidas em nome do trabalho. São preguiçosas ? Não. São quase permanentemente ativas quando não estão dormindo. Estão sempre se envolvendo com alguma coisa, motivadas pela curiosidade, e em suas brincadeiras criam histórias, constroem coisas, fazem arte e filosofam (sim, filosofam) sobre o mundo ao seu redor. Não há razões para supor que os impulsos para estas atividades declinem com a idade. Declinam por causa da escola, que valoriza o trabalho e deprecia a brincadeira, a qual é extirpada das pessoas. E então trabalhos e carreiras tediosos continuam a lhes extirpar tudo o que é lúdico. Estes impulsos não declinam em caçadores-coletores com a idade – como também não declinariam em nós mesmos não fosse por todo o trabalho que nos é imposto.

Escolas foram inventadas principalmente para nos ensinar a obedecer a figuras de autoridade (patrões) incondicionalmente e a realizar tarefas tediosas de modo adequado. Em outras palavras, foram inventadas para suprimir nossas tendências naturais a explorar e brincar e nos preparar para aceitar uma vida de trabalho. Num mundo que valorizasse a brincadeira ao invés do trabalho, não precisaríamos de tais escolas. Ao invés, permitiríamos a cada pessoa o lúdico, a criatividade e esforços naturais para encontrar sentido na vida que floresce.

O trabalho, praticamente por definição, é alguma coisa que não queremos fazer. Ele interfere com nossa liberdade. Ao ponto de, por precisarmos trabalhar, não sermos livres para escolher nossas atividades e encontrar significado em nossas próprias vidas. A ideia de que pessoas precisem trabalhar para serem felizes está fortemente correlacionada à visão paternalista de que as pessoas não sabem lidar com a liberdade (vejam Danaher, 2016). Esta visão lúgubre da natureza humana foi promovida por séculos e reforçada em escolas no intuito de manter uma força de trabalho plácida.

Descobertas culturais valiosas, criações e invenções dependem do trabalho ? Não.

Pessoas amam descobrir e criar. Somos naturalmente curiosos e lúdicos e descoberta e criação são, respectivamente, produtos da curiosidade e de brincadeiras. Não há razão para se acreditar que menos trabalho e mais tempo para fazermos o que quiséssemos determinaria menos conquistas na ciência, na arte e em outros campos criativos.

As formas específicas que nossa inventividade assume dependem em parte de condições culturais. Entre caçadores-coletores nômades, onde bens materiais em quantidade maior do que alguém pudesse carregar constituíam um estorvo, descobertas eram geralmente sobre o ambiente físico e biológico imediato, dos quais dependiam, e produtos criativos eram tipicamente de natureza efêmera – canções, danças, jogos, histórias, ornamentação corporal e afins. Hoje e sempre desde o advento da agricultura, produtos criativos podem assumir todas estas formas além de invenções materiais que transformam nossos modos básicos de viver.

Quase todos os grandes cientistas, inventores, artistas, poetas e escritores falam de suas realizações como brincadeiras. Einstein, por exemplo, falou de seus progressos em matemática e física teórica como “brincadeira combinatorial”. Ele os fazia por diversão, não por dinheiro, enquanto se sustentava como funcionário de um escritório de patentes. O historiador cultural holandês Johan Huizinga, em seu livro clássico Homo Ludens, argumentou, convincentemente, que a maioria das realizações culturais que enriqueceram vidas humanas – em arte, música, literatura, poesia, matemática, filosofia e mesmo jurisprudência – são derivadas do impulso para brincar. Ele mostrou que conjuntos maiores de tais realizações ocorreram em tempos e lugares nos quais um número significativo de adultos era liberado do trabalho – estando, portanto, livre para brincar num ambiente em que o lúdico era valorizado. Um dos principais exemplos é a antiga Atenas.

Degeneraríamos moralmente sem trabalhar ? Não.

O poeta e filósofo do século 18 Friedrich Schiller escreveu: “O homem só é totalmente humano quando brinca.” Concordo; e parece tão claro tanto para mim quanto para Schiller que parte de nossa humanidade, que floresce no lúdico, é preocupante para nossos pares humanos.

Em nosso mundo preenchido pelo trabalho, caímos muito frequentemente numa cova onde a responsabilidade pelos afazeres supera nossa consideração pelos outros. O trabalho prejudica o tempo e a energia – e às vezes a própria motivação – que seriam devotados a ajudar vizinhos necessitados, a limpar o meio ambiente ou a promover causas voltadas à melhora do mundo para todos. O fato de que tantas pessoas já se engajam em tais causas humanitárias apesar das pressões do trabalho é evidência de que pessoas querem ajudar os outros e fazer do mundo um lugar melhor. A maioria de nós faria mais por nossos pares humanos não fosse o desperdício de tempo e energia, bem como tendências à ganância e à submissão ao poder, que o trabalho cria.

Bandos de caçadores-coletores que, como eu disse, viviam uma vida lúdica são famosos entre antropólogos por sua ânsia pelo compartilhamento e pela ajuda mútua. Outro termo para estas sociedades é sociedades igualitárias – são as únicas sociedades sem hierarquias sociais jamais encontradas. Seu etos, fundado sobre o lúdico, é um que proíbe qualquer pessoa de possuir mais status ou bens do que qualquer outra. Num mundo sem trabalho (ou, pelo menos, sem tanto trabalho) seríamos todos menos preocupados com subir em alguma escada para, em última análise, lugar nenhum; e mais comprometidos com a felicidade de outros – que são, afinal, parceiros de brincadeiras (playmates).

Então, ao invés de tentar tão obstinadamente proteger empregos, por que não resolvemos o problema da distribuição, reduzimos o trabalho e nos permitimos brincar mais ?

Boa pergunta.

* * *

Originalmente publicado no blog Freedom to Learn, de Peter Gray, em Psychology Today, em 9 de outubro de 2017.

Peter Gray é professor pesquisador no Boston College e autor de Free to Learn (Basic Books, 2013) e Psychology (Worth Publishers), um livro-texto atualmente em sua sétima edição. Conduziu e publicou pesquisas em psicologia comparativa, evolucionária, educacional e de desenvolvimento. Estudou na Columbia University e recebeu um Ph.D. em ciências biológicas da Rockfeller University. Seu principal interesse atual são os modos naturais da aprendizagem infantil e o valor da brincadeira durante toda a vida.

 

Refefências

 

Autor, D. H. (2015). Why are there still so many jobs? The history and future of workplace automation.  Journal of Economic Perspectives, 29 (3), 3-30.

 

Danaher (2016).  Will life be worth living in a world without work?  Technological unemployment and the meaning of life.  A ser publicado em Science and Engineering Ethics. Disponível online em http://philpapers.org/archive/DANWLB.pdf.

 

Gowdy, J. (1999). Hunter-gatherers and the mythology of the market. In R.B. Lee & R. Daly (Eds.), The Cambridge encyclopedia of hunters and gatherers, 391-398. Cambridge: Cambridge University Press.

 

Graeber, D. (2013)  On the phenomenon of bullshit jobs.  Strike! Magazine, Aug. 17, 2013.

 

Gray, P. (2009). Play as a foundation for hunter-gatherer social existenceAmerican Journal of Play, 1, 476-522.

 

Gray, P. (2014). The play theory of hunter-gatherer egalitarianism. In D. Narvaez, K. Valentino, A. Fuentes, J. McKenna, & P. Gray (Eds.), Ancestral landscapes in human evolution: culture, childrearing and social wellbeing (pp. 190-213). New York: Oxford University Press.

 

Huizinga, J. (1955; primeira edição alemã publicada em 1944). Homo Ludens: A study of the play-element in culture. Boston: Beacon Press.

 

Ingold, T. (1999). On the social relations of the hunter-gatherer band. In R. B. Lee & R. H. Daly (Eds.), The Cambridge encyclopedia of hunters and gatherers, 399-410. Cambridge, UK: Cambridge University Press.

 

Keynes, J. M. (1930/1963). Economic possibilities for our grandchildren.  Reimpresso em John Maynard Keynes, essays in persuasion.  New York: Norton.

 

Sahlins, M. (1972). Stone age economics. Chicago: Aldine-Atherton.