Por que a publicidade é inútil e nociva

Quando o assunto é publicidade, dois consensos quase absolutos vem à tona. O primeiro, compartilhado por anunciantes, profissionais e empresas envolvidos na pujante indústria da publicidade, é o de que ela é absolutamente necessária ao sucesso comercial de qualquer produto ou serviço.  O segundo, verificado entre leitores de jornais, espectadores de rádio e TV e, mais recentemente, usuários de internet, é que ela é totalmente inútil. Um estorvo. Uma interrupção tão irritante quanto frequente no fluxo de conteúdo de qualquer meio de comunicação hegemônico. Tanto é assim que é prática comum à mídia disponibilizar a usuários modalidades mais caras de assinatura de seus serviços diferenciadas pela ausência de anúncios.

Ainda assim, todo usuário de mídia comercial, mesmo detestando ser bombardeado por anúncios, reconhece a publicidade como um mal necessário. Que, sem ela, não teríamos jornais, revistas, rádio, TV e tantas facilidades viabilizadas pela internet. De onde vem tal naturalização ? Como chegamos a isto ?

A história da publicidade (em países lusófonos confundida com a propaganda) se perde na antiguidade. A modalidade na qual estamos interessados – a saber, a comercial, realizada por meio de anúncios pagos colados ao conteúdo de meios impressos, de broadcasting (rádio e TV) ou internet – surgiu menos de 200 anos depois que Gutenberg inventou a prensa mecânica. Mais exatamente, com o anúncio de um livro publicado num jornal inglês de 1625. Desde então, a coisa só cresceu. Em 1841, surgiu em Filadélfia (EUA) uma das primeiras agências relevantes de publicidade do mundo. A publicidade 2.0, aquela nos meios de broadcasting, surgiu pouco depois da invenção do rádio por Marconi. A grande transformação seguinte – que, por conveniência, designaremos por publicidade 3.0 – surgiu com a internet, obrigando, várias gerações depois, publicitários a reinventarem novamente seu ofício. Temos, então, que, enquanto a publicidade 1.0 vende espaço, a 2.0 vende tempo e a 3.0, acessos.

Com raízes tão antigas e aprofundadas no tecido social, é compreensível que a ideia de publicidade comercial como mal necessário à existência de toda mídia desejável esteja tão naturalizada entre a maioria. Quando nascemos, os anúncios já estão ali, por todos os lados. Como as cidades em que vivemos, as escolas que frequentamos ou o ar que respiramos. Assim quer acreditar o espírito acrítico.

Só que não é ser obrigatoriamente assim. Ora, tudo o que é conhecido e experimentado por um certo tempo constitui terreno fértil para o pragmatismo, limitando o pensamento utópico. Desta forma, a história humana é repleta de casos em que práticas e sistemas que deixam muito a desejar se perpetuam tão somente por já terem funcionado, ainda que precariamente, por um tempo prolongado. O exemplo mais ridículo que já vi desta deficiência de raciocínio é a distinção que Olavo de Carvalho faz entre os pensamentos de direita e de esquerda. Vale a pena conferir (entre 1m30s e 2m30s).

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Uma das teclas mais marteladas por David Graeber no estupendo Bulllshit Jobs: a Theory, do qual não me canso de falar, é que o capitalismo cria empregos desnecessários. Dentre as ocupações que considera, mais do que inúteis, nocivas à sociedade, se destacam as carreiras financeiras, jurídicas, imobiliárias e, como não poderia deixar de ser, publicitárias. É claro que há um critério para uma categorização tão bombástica: Graeber considera úteis ocupações que produzem riqueza e inúteis aquelas que só transferem riqueza de um dono para outro, ressaltando que as últimas são, via de regra, melhor remuneradas.

A publicidade é socialmente nociva (exceto, é claro, para anunciantes e publicitários) por dois motivos: é supérflua e inflacionária. Supérflua por que, numa era de buscas, não mais precisamos dela para, como apregoa desesperadamente a indústria do anúncio, ter informações sobre o que queremos adquirir. Mais: dados comparativos sobre quaisquer produtos tendem a ser muito mais confiáveis em sites neutros, dedicados à orientação de consumidores, e engenhos de busca do que em peças publicitárias cuja índole é, por definição, enaltecer vantagens e ocultar ou minimizar deficiências (isto não é uma verdade oculta mas, ao contrário, um fator de competência descaradamente ostentado pelos publicitários mais agressivos).

Inflacionária por que tudo o que é anunciado tem seu preço significativamente majorado pelo acréscimo ao preço final do custo da publicidade, que não costuma ser pouco, principalmente em meios de broadcasting (isto está mudando um pouco na internet, onde entradas publicitárias se tornaram acessíveis a anunciantes de qualquer porte).

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Deixando rapidamente de lado nosso foco principal, que é a publicidade comercial, cabe a ressalva de que a propaganda política é tão ou mais nociva do que a anterior, já que seu êxito (i.e., a persuasão de um maior número de eleitores), que afeta, para o bem ou para o mal, a totalidade das unidades políticas governadas, é fortemente determinado pelo poder econômico. Então, não se trata de discutir, como hoje é feito, se a propaganda eleitoral deve ser custeada por políticos ou contribuintes, mas de abolir totalmente a mesma, com a justiça eleitoral dedicando seu colossal potencial computacional à informar eleitores sobre candidatos por meio de sites abrangentes e isonômicos. Com programas ao invés de slogans. Dados verificáveis ao invés de fake news. E sem, é claro, os escandalosos fundos eleitoral e partidário.

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Tão natural como a publicidade acoplada aos meios de comunicação é a ideia de que estados sejam responsáveis pela garantia de bens que, por sua natureza essencial à condição humana, não devem ser deixados ao sabor da concorrência entre provedores privados. Há um consenso praticamente universal de que saúde, educação e segurança pertençam a esta categoria. Diferentes estados de bem estar social abordam de modos distintos a inclusão também de alimentação, moradia e cultura nesta relação de direitos. Além disto, a extensão da responsabilidade do estado sobre os mesmos é objeto de conflito entre a direita e a esquerda.

Sempre que a esquerda quer abarcar sobre o manto protetor do estado segmentos ou partes de segmentos explorados pelo capital empreendedor, a direita chia. Como toda indústria, a publicidade também desfruta da proteção dos guardiões do liberalismo. De modo que meras  insinuações, como as acima, quanto ao caráter anti-ecológico ou inflacionário da publicidade, são imediatamente refutadas com argumentos do tipo ” pensem em todas as comodidades informacionais que perderíamos não fosse a mídia facultada pela propaganda “.  Ora, tal sorte de argumento esbarra na falácia do pressuposto de Carvalho, supracitado, segundo o qual só aquilo que já foi experimentado é possível e confiável. Sob tal premissa, não haveria raciocínio hipotético nem tampouco ciência.

Fazendo, então, pouco caso do coro indignado com este exercício hipotético, necessário ao pensamento utópico, suponhamos, apenas por um instante, que jornais, revistas, emissoras de rádio e TV e serviços disponibilizados pela internet (não gosto do termo aplicativos, que outrora já foram chamados de programas), fossem reconhecidos como de real utilidade pública e, como tais, garantidos a todo cidadão pelo estado, como a saúde, a educação e a segurança supostamente já são.

Aqui, posso ouvir, em meio a acusações de ingenuidade, as invectivas de sempre sobre a precariedade da televisão pública. É preciso, então, colocar os devidos pingos nos is. É claro e perfeitamente esperado que, no Brasil, onde a teledifusão pública é sistematicamente sucateada, emissoras estatais não consigam competir com as comerciais pela geração de conteúdo atraente. Pois a TV Cultura seria, sem dúvida, diferente se dispusesse do mesmo orçamento da Globo. Muito se fala mal da gestão estatal como principal responsável pela eventual falta de qualidade de emissoras públicas quando, na verdade, não se pode comparar resultados da gestão da escassez com aqueles da gestão da abundância. Logo, para se falar da qualidade da radiodifusão pública é preciso, antes, se falar dos excelentes conteúdos gerados e veiculados pela televisão pública europeia. Ou pela BBC. Ou pela PBS nos EUA.

Então, da mesma forma que meios de broadcasting públicos de qualidade já são, há muito tempo, uma realidade em países do hemisfério norte, é razoável se esperar que a internet, ainda em sua infância, venha um dia a ser reconhecida (pois já é de fato) como patrimônio inalienável da condição humana e, como tal, disponibilizada gratuitamente, com suas funcionalidades mais fundamentais (aí incluídos os aplicativos hegemônicos, consagrados pelo uso), a todo cidadão

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Mas sejamos, por hora, práticos. Com o que está aí, seria muito mais fácil reformar a propaganda eleitoral do que a publicidade comercial. Não podemos, no entanto, ser ingênuos a ponto de esperar que tal reforma parta de políticos. Os meios ? Discussão e organização civil. Só então, talvez, o imaginário popular consiga romper a barreira da naturalização e finalmente se dar conta de que a publicidade, mais do que inútil, é nociva.