Sociedade do cansaço (2010), de Byung-Chul Han

O sul-coreano Byung-Chul Han é um filósofo e ensaísta, professor da Universidade de Artes de Berlim. Tendo estudado filosofia na Universidade de Friburgo e teologia e literatura alemã na Universidade de Munique, doutorou-se em Friburgo em 1994 com uma tese sobre Martin Heidegger. Seus ensaios se constituem como críticas ao hiperconsumismo, à tecnologia e à sociedade do trabalho.

Sociedade do cansaço (Vozes, 2017) é um pequeno grande livro. Como quase todo bom livro de filosofia, foi escrito originalmente em alemão (Müdigkeitsgesellschaft, 2010).

Como todo bom livro de filosofia, também é repleto de citações, incluindo Adorno, Agamben, Arendt, Aristóteles, Baudrillard, Benjamin, Deleuze, Ehrenberg, Esposito, Foucault, Freud, Gadamer, Heidegger, Hendke, Kant, Kerényi, Marx, Nietzsche, Platão, Schmitt e Sennett. Com esse mar de referências, um índice onomástico até que cairia bem, mesmo ao fim de suas suas modestas 120 páginas – 40 das quais contendo, como anexo, a transcrição de uma conferência, totalmente afeita ao resto do volume, chamada Sociedade do esgotamento.

Como todo bom livro de filosofia, Sociedade do cansaço não explicita pronta e univocamente a que veio. Antes de definir claramente suas categorias sem deixar qualquer sombra de dúvida, Han prefere, ao invés, lograr profundidade gradativamente rodeando o tema, ao modo de um redemoinho, conduzindo o leitor neste mergulho vertiginoso.

Deste modo, o significado de sociedade do cansaço ou do desempenho vai se delineando aos poucos por meio de comparações com o modelo anteriormente vigente, a saber, a sociedade da disciplina ou da vigilância. Logo no início do livro, aprendemos que as doenças típicas do século 21 são a depressão, o transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), o transtorno de personalidade limítrofe (TPL) e a síndrome de burnout (SB). No segundo capítulo, vemos que a sociedade disciplinar de Foucault, constituída de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a de hoje, cujos lugares mais emblemáticos são academias de fitness, prédios de escritórios, aeroportos, bancos, shoppings e laboratórios de genética. Que enquanto a sociedade disciplinar gera loucos e delinquentes, a do desempenho produz, ao contrário, depressivos e fracassados.

Aos poucos, vai deixando claro para o leitor que, enquanto o trabalho no regime anterior era dominado pelo imperativo do dever, hoje a palavra de ordem é o (verbo) poder. Então, se antes o sujeito era explorado por um algoz externo, hoje seu algoz passou a ser ele mesmo. Esta substituição do dever pelo poder caiu nas graças do hipercapitalismo por que o último incrementa em muito a produtividade em relação ao primeiro. Com efeito, nada é mais eficiente do que um indivíduo empenhado em tirar o máximo de si. Muito mais do que qualquer outro submetido a um feitor, gerente ou fiscal. Por que a coação dá lugar à liberdade. De tal modo que o relógio ponto desapareceu para dar lugar a espaços laborais que não mais distinguem entre trabalho e lazer. Laptops, home offices, dispositivos móveis. Hoje, todo tempo e todo lugar servem para trabalhar.

A conferência transcrita ao final do livro é sobre a falta de festa e celebração na vida atual, tendo sua culminância nas afirmação de Aristóteles de que “o homem não nasceu para trabalhar”, que “quem trabalha não é livre” e que “são livres apenas os poetas, filósofos e políticos” – com a ressalva de que, hoje, até a política deixou de ser livre, por que políticos, reduzidos a administradores da economia doméstica ou a contadores, sucumbiram à necessidade e à utilidade, deixando de lado a política no sentido aristotélico, que consiste em mudar a sociedade em busca da beleza e da justiça. Conclui que, hoje, políticos trabalham muito, mas não agem.

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Estranhei que o livro não mencionasse a dicotomia, explorada à exaustão por Neil Postman em Amusing ourselves to death, entre as distopias de Huxley e Orwell, respectivamente, em Admirável Mundo Novo e 1984, já que ambas representariam perfeitamente a oposição entre as sociedades da disciplina e do desempenho abordadas por Han. Com a única diferença, talvez, que, enquanto na obra-prima de Huxley o autocomprometimento com o desempenho é logrado por meio de manipulação genética, na sociedade descrita por Han se chega ao mesmo através de determinantes comportamentais.

Sempre que mergulho na leitura de textos filosóficos, me sinto mais ignorante. Isto por que é praticamente impossível tangenciar o pleno significado de cada frase, tamanho o corpo de referências implícitas, acessíveis somente aos que dedicaram tempo e esforço, academicamente ou não, ao conhecimento da disciplina. Mais ou menos como é impossível a qualquer leitor da literatura de ficção universal fruir todas as entrelinhas de uma obra sem uma ideia básica das histórias contadas na bíblia, mãe de todo imaginário ocidental (esta ideia não é minha, mas – pasmem ! – de Richard Dawkins, guru maior do ateísmo).

Ainda assim, insisto na leitura. Não só pela altíssima densidade lógica da filosofia – com seus significados abertos equiparáveis, talvez, apenas aos da poesia – mas, principalmente, por que ninguém consegue tão bem como os filósofos contemplar com suficiente distância crítica a época em que estão imersos.

Por que se fala tão pouco de uma reforma judiciária; ou De como combater a centralização pela melhor distribuição (não dos processos, mas do poder decisório sobre cada um deles)

Numa breve pesquisa, tomei conhecimento de que a divisão do estado em três poderes remonta ao século 18 – mais especificamente à obra “O Espírito das Leis” (1748), do filósofo iluminista Charles de Montesquieu – que, por sua vez, se inspirou em ideias sustentadas por John Locke ca. 100 anos antes e, bem antes disso, na antiguidade clássica por Aristóteles.

É, portanto, de se espantar que tal estrutura tripartite, pensada originalmente como um modo de limitar o poder no absolutismo monárquico, não tenha sofrido revisões significativas, mesmo diante do enorme progresso tecnológico e das comunicações observável desde então. Ao contrário, membros de cada um dos três poderes trataram, sempre legislando em causa própria, de garantir a si próprios vencimentos, vantagens, privilégios e imunidades inalcançáveis aos cidadãos que lhes compete governar, legislar e julgar. Deste modo, não é nenhum exagero se afirmar que os três poderes, originariamente concebidos para regular um poder absoluto então dominante, acabaram por, ao longo de quase trezentos anos de amplas transformações sociais, se corrompendo irremediavelmente.

Não deve ser novidade para ninguém em 2017 que os principais males que afligem os poderes legislativo e executivo são, respectivamente, a obsolescência da representação e os cargos em comissão (CCs). É patético, no entanto, se constatar que, naquilo que foi eufemisticamente chamado por quadrilhas políticas de “reforma política”, de modo algum se atacou o problema. Antes, os que dizem nos representar lograram promover um assalto ainda maior ao patrimônio público do que já praticavam anteriormente. É, pois, mister que se considere a pretensa reforma como inócua e, portanto, inválida, se exigindo, ao mesmo tempo, uma reforma constituinte que dê conta do enxugamento necessário das câmaras legislativas em todos os âmbitos.

Isto não será, no entanto, suficiente para garantir um estado que realmente contemple as necessidades de uma sociedade contemporânea. Será preciso, também, não apensas erradicar a prática nefasta de se governar com CCs, da qual muito já se fala – mas também (e disto infelizmente muito pouco se tem falado) questionar grande parte das premissas sobre as quais se estabeleceu, ao longo do tempo, a gigantesca estrutura atual do poder legislativo.

Se os maiores problemas do legislativo e do executivo são, respectivamente, o fim da representação e as árvores de CCs, a mazela mais evidente do poder judiciário como chegou até nós é a concentração de poder nas mão de um único juiz para dirimir a maior parte dos conflitos que chegam à justiça. Com efeito, somente recursos levados a instâncias superiores de arbítrio chegam a ser julgados por órgãos colegiados ao invés de por um único juiz.

Ao nosso ver, só a concentração do poder para julgar cada caso nas mãos de um único magistrado (naquilo que chamam, acho eu, de decisões monocráticas) pode explicar tamanha profusão de sentenças estapafúrdias como, por exemplo, as que determinaram

a remoção de obras artísticas de museus e galerias sob alegações moralistas;

que o goleiro Bruno possa ministrar aulas de futebol para crianças;

a soltura de criminosos flagrantes como Eike Batista ou o ejaculador do ônibus;

a proibição do uso da palavra “helicoca”

que escolas públicas passem a admitir pregação religiosa em suas dependências, contanto que restritas a uma única fé. Notem que esta última decisão, ainda que tomada por um órgão colegiado, reduziu literalmente a frangalhos a figura, agora fictícia, do estado laico. Tal fato indica, por si só, que questões mais polêmicas devam ser apreciadas por cortes mais amplas, para além das apenas 11 cadeiras do STF.

Notem que a maioria dos recentes exemplos acima só chegaram até nossa atenção por que seus efeitos foram sentidos por vultos de algum modo famosos. A própria retirada de um quadro inocente de exibição no centro do país se deu na esteira da polêmica envolvendo o fechamento extra judical da exposição Queermuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre.

Notem também que, em muitos destes casos, até mesmo membros do próprio poder judiciário, como juízes e procuradores, tem se manifestado, por meio de abaixo-assinados, contra decisões autocráticas e absurdas tomadas por colegas de espírito público mais limitado, para dizer o mínimo.

Então, por que raios toleramos que juízes continuem deliberando individualmente sobre casos em relação aos quais não há consenso sequer entre a classe jurídica a que pertencem ? Pois falta nitidamente a alguns juízes alguém que lhes diga, antes de baterem o martelo: “Menos. Bem menos.”

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Como todas as medidas reformistas propostas neste blog, esta também pode ser taxada de naïve. A primeira e mais óbvia crítica à qual podemos nos antecipar é a de que a distribuição de processos entre os integrantes de um tribunal é justamente um meio de melhor atender à grande demanda de causas à espera da atenção da justiça. A imagem que já se naturalizou de todo processo é a de um volumoso calhamaço, repleto de anexos, que deve ser cuidadosamente lido e analisado por um juiz antes que o mesmo profira uma sentença.

A princípio, parece um bom argumento – que, como tal, deve ser desmontado em partes. As quais se resumem em três providências, abaixo listadas, sendo que a primeira delas é, de longe, a mais antipática – em relação à qual um coro de vozes corporativas deve, portanto, se levantar.

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Primeiro. É sabido que membros do poder judiciário são, na maioria das vezes, regiamente pagos. “Nem tanto”, dirão, comparando a ordem de seus vencimentos com os de executivos da iniciativa privada – ao que responderei: muito mais, em todo o caso, do que comparativamente à maioria das categorias de servidores públicos (salvo, talvez, a dos políticos, mas isto já é outro assunto).

Se presumindo, então, que o estado pudesse contratar mais juízes com salários menores, estaria derrubado um primeiro e importante empecilho para que todo processo fosse apreciado por mais do que apenas um árbitro.

Não me parece necessário, no entanto, um maior número de juízes para que mais do que apenas um se dedique a cada processo. Pois os últimos tendem a ser mais prolixos do que o necessário. Trataremos disto na terceira providência recomendada, abaixo.

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Segundo. Processos similares deveriam ser agrupados e submetidos ao arbítrio de um mesmo órgão colegiado – a especialização, neste caso, resultando em que cada juiz possa dedicar menos atenção a cada processo individual para se concentrar na formulação de entendimentos mais genéricos que se apliquem a uma classe maior de problemas. Não é difícil de se perceber como esta providência favoreceria  a emissão de sentenças progressivamente mais justas e igualitárias. Noutras palavras, o cliente rico, do advogado mais caro, passaria a gozar da mesma atenção do que o cliente mais pobre. Utópico, não ? Por isto mesmo, esta providência também deve esbarrar, de algum modo, no corporativismo.

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Terceiro. E aqui precisaríamos revolucionar também o métier do advogado. Falo, é claro, do combate à cultura dos processos caudalosos. Pois todo processo pode ser reduzido a uma boa sinopse. Duvido que cada juiz leia atentamente cada lauda anexada a um processo. Assim, tudo o que podemos inferir sobre a importância de uma causa com um paquímetro (instrumento usado para medir espessuras) é o quanto dos recursos de um escritório de advocacia foram nela investidos.

Advoga-se, aqui, a ideia, conquanto possa parecer absurda aos defensores da verborragia jurídica, de que todo processo submetido a qualquer corte obedeça a limites rigorosos quanto à extensão máxima de cada uma de suas seções. Críticos dirão que tal medida implicaria na omissão de muitos argumentos ou provas – ferindo, com isto, o direito à ampla defesa ou condenação. Ora, tenho a plena convicção (esta nova entidade jurídica inventada na Lava-Jato…) de que tanto, de um lado, advogados saberão estabelecer um hierarquia clara entre argumentos mais relevantes (bem como, e isto não é menos importante, exercitar seu poder de síntese) como, de outro, juízes saberão chegar a sentenças justas tão somente a partir dos mesmos – podendo, com efeito, até melhor contemplarem a essência de cada caso, livres que estariam, assim, de toda a retórica diversionista que os distrai e confunde.

Paquímetro

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Li pouco, confesso, sobre a concepção original dos três poderes segundo Montesquieu. Por isto, pergunto: o que disse seu idealizador a respeito da remuneração de seus membros ? A pergunta não é retórica. Pode até ser que, em pleno século 18, já se falasse em governantes, legisladores e juízes em dedicação exclusiva, sustentados pelo dinheiro público. Difícil, no entanto, acreditar que os vencimentos concebidos pelos iluministas fossem mais do que uma pequena fração dos montantes hoje praticados, frutos de séculos de monopólio do uso da caneta.

Mas por que, num mundo ideal, as prerrogativas de governar, legislar e julgar não poderiam ser exercidas voluntariamente e em tempo parcial por todo e qualquer cidadão ávido de contribuir para um mundo mais justo ?