Sobre o mito da escassez da competência para a regência orquestral (on conducting xiii)

batutas-11Há em todo concerto para escolas o clássico momento em que o maestro empresta a batuta a uma criança sorteada entre as presentes – momento, aliás, da igualmente clássica pegadinha em que fazem o desavisado inocente se mover indefeso diante de uma orquestra que começa a tocar – pasmem ! – uma daquelas danças húngaras repletas de mudanças de andamento. Numa destas, diante da inação do maestro em exercício em interromper alguém que, ouvindo a música, entendera rapidamente qual era a jogada, ouvi de um músico de outro naipe a hilária e emblemática exortação

Interrompe logo ele, maestro – ou vai acabar achando que é fácil !

Ao que, prontamente, corrigi;

Errado: vai acabar descobrindo como é fácil.

Não é preciso ir muito a fundo para perceber que o diálogo acima, conquanto passível de diversas interpretações, denota antes de tudo a proteção ao mito de que a competência para a regência (doravante CRO) seja uma aptidão escassa, i.e., que só uns poucos são aptos a exercê-la. A perpetuação do mesmo talvez se deva ao fato de que a didática da regência orquestral seja, enquanto área ou disciplina acadêmica, um fato ainda muito recente

Deve ser difícil a qualquer instituição de ensino pensar na regência como objeto de um programa acadêmico acessível a muitos. Possivelmente achem que, face ao máximo de tempo semanal que alunos de conservatórios de primeira linha toleram (antes de tudo por causa dos músicos que lhes regem !) tocar em orquestras formativas. Pois a maior parte dos que ingressam em conservatórios ainda quer ser solista. O que é muito bom – pois isto faz deles alunos estudiosos . Tão bom, ao menos, quanto que sejam obrigados, ainda que por imposição curricular, a integrar orquestras acadêmicas durante a maior parte de seus cursos.

Neste quadro demográfico é fácil notar que, nas poucas horas em que uma orquestra acadêmica ensaia (sempre menos, em todo caso, do que a carga semanal de ensaios de uma orquestra profissional !), será possível treinar poucos regentes. Além disto, há quem pergunte por que treinar uma legião de frustrados se as oportunidades de trabalho conhecidas são tão poucas. Não acreditamos que sejam poucas mas, tão somente, mal distribuídas. Só que, em nome da perversa lógica de toda proteção de mercado, já vi um curso universitário de bacharelado em regência orquestral ser extinto.

Em muitos conservatórios são ministradas disciplinas de regência. Só em alguns deles, todavia, há ensaios e aulas conduzidos por grandes maestros. Na falta de orquestras didáticas para todos, é comum que alunos de regência sejam primordialmente treinados “regendo” reduções de partituras orquestrais para um ou dois pianos. Tal problema, o da grande discrepância numérica entre aspirantes ao pódio ou às estantes orquestrais, foi magistralmente solucionado na Finlândia – berço de uma das mais reputadas escolas de regência, praticamente personificada na polêmica figura de Jorma Panula – que declarou, para pasmo e decepção de seus admiradores (alguns dos quais ainda insistem que podia estar bêbado ou, ainda, que suas palavras foram severamente descontextualizadas) que mulheres seriam menos aptas do que homens a dirigir uma orquestra (sic !)

Kiyotaka Teraoka, que estudou na Finlândia, conta que, lá, todo aluno de regência deve obrigatoriamente participar também, como músico, executando um instrumento no qual seja totalmente proficiente, da orquestra integrada e regida por seus colegas. Como única exceção a esta exigência, também são admitidos às classes de regência os pianistas excelentes. Concertistas, no mínimo. É por estas e outras que esses finlandeses estão anos-luz à frente de quem quer que seja na pedagogia da batuta.

* * *

A economia da batuta deve ser intuitivamente vista por muitos mais ou menos como o problema dos técnicos de futebol. Ora, todos sabem que qualquer um que se dispuser a assistir em estádios ou mesmo pela TV disputas travadas entre grandes times se tornará, depois de algum tempo, apto a gritar da porta do vestiário com um plantel a se degladiar. Qual diretoria se atreveria, no entanto, pressionada por uma torcida furiosa, a confiar jogadores caros a alguém sem algum êxito prévio à frente de grandes equipes ? com isto, apenas poucos, de um universo abundante de capacitados (compreensivelmente, em muitos casos, ex-jogadores de expressão) chegam a ocupar os raros postos de trabalho existentes.

(nunca entendi muito bem a função de um técnico de futebol (do mesmo modo, acho, que custei a perceber a de um maestro).

Custo a entender por que raios duas equipes de 11 pessoas que se enfrentam numa arena durante noventa minutos devem ficar, cada uma delas, de algum modo

subordinadas ao comando único de alguém a lhes gritar coisas da boca do vestiário, inaudíveis na maior parte do tempo;

ao invés de, ao contrário,

cada equipe funcionar como uma entidade única e autônoma, orientada por decisões instantâneas tomadas de modo descentralizado (não sei por que suspeito que, na prática, a coisa seja mais ou menos assim) – como, sei lá, por meio da interação entre nodos de uma rede neural.

Falo da diferença entre processos seriais e paralelos. Acho um técnico a gritar e gesticular à beira do campo um troço tão… serial. Mas devo estar, afinal, esperando demais de um esporte organizado.

Na regência orquestral, tampouco é diferente. Na proporção de, ao menos, um pódio para algumas dezenas de estantes, muitas delas para dois músicos)

* * *

O mito da regência orquestral como competência escassa tem, além de, como vimos, a relativa novidade de sua didática como disciplina autônoma, também como razões de sua perpetuação até hoje o protetorado e a proximidade. Já ouviram aquela história de ser a pessoa certa na hora e no lugar certos ? É disto que falo.

O protetorado pode ser mais ou menos descrito como o acesso aos meios (i.e., às orquestras) mediante imposição ou forte recomendação de alguém eminente. Fatores como proximidade pessoal e confiança são sempre determinantes. Dentre os casos conhecidos, podemos citar os de Koussevitzky e Eleazar, Bernstein e Chamis ou, mais recentemente, Masur e Minczuk, só para ficar entre alguns dos que envolvem brasileiros.

A proximidade frequentemente tem a ver com a exposição precoce, pré-escolar e, em muitos casos, familiar, à atividade. Kleiber cresceu vendo o pai reger. Pelo menos até certa idade. Os Wagner são bem conhecidos e, mais recentemente, os Järvi também. E notem que, em famílias de músicos, dentre os mais novos aqueles que tomam para si a ocupação dos pais tendem a superá-los. A propósito, me refresquem a memória: o pai de Bernstein também não foi músico ? De qualquer modo, Bernstein foi o cara certo no lugar certo e na hora certa que, quando faltou um maestro, intrepidamente stepped in. Não desmereço (ao contrário !) nenhuma faceta de sua genialidade (inclusive o talento televisivo que tanto o popularizou !) – mas, fossem os meios de acesso mais… democráticos, por assim dizer, não teríamos conhecido, de sua época, tantos mais Bernsteins ?

Outro exemplo, já esquecido, de um cara que teve o atrevimento de saltar à frente quando, na última hora, precisaram de um regente foi o de um trombonista baixo que assumiu um concerto na Alemanha. É certo que não deve ser nenhum gênio. Mas, de tanto ouvir a música, a conhecia bem. O mais provável, então, é que, dada a escassez de partes compostas para seu seu instrumento (os trombones só comparecem em Beethoven a partir do último movimento de sua quinta sinfonia !…), estivesse ocioso quando o dever o chamou. Então, despretensiosamente, isento de qualquer vaidade, encarou a bronca em nome de um show que tinha que continuar. Colegas devem ter brindado a ele depois. Com razão. Mais entusiasmados podem até achar que, na ocasião, se revelou um grande talento dormente. Prefiro pensar que o episódio tenha muito mais a ensinar. A saber, que a CRO é uma competência enormemente mais abundante do que comumente se pensa. Esta é, no entanto, uma verdade bem inconveniente para alguns.

Nenhuma indústria – em especial a do entretenimento – jamais soube nem teve qualquer interesse em aceitar premissas de que certas competências gerenciais (como muitos ainda entendem a regência orquestral) sejam disponíveis abundantemente. Isto se dá por que a preservação de mitos de competência escassa tenham, na maior parte das vezes, a ver com a maior concentração de lucros.

Outra anedota bem popular (como aquela, factual, com que iniciamos este post) que, olhada a fundo, também remete diretamente ao mito da CRO como uma competência escassa é a de que” ninguém deveria reger a nona sinfonia de Beethoven pela primeira vez. ”

Os mitos de escassez são vitais ao ideário capitalista e, portanto, onipresentes na maior parte dos ambientes corporativos. Pois há, em toda grande organização, muitíssimos postos mais monótonos e menos especializados e, ao mesmo tampo, cada vez menos postos gerenciais à medida que se sobe na pirâmide administrativa. Desgraçadamente, a formulação encontra fáceis analogias na natureza (um filé e tanto para os crédulos !), como nos casos de abelhas-rainha e tais, de modo que tudo conspira para reforçar a crença que seja normal ou natural, para líderes ou gestores de toda espécie, saber mais que seus subordinados.

Mais. Toda indústria de entretenimento anterior à web (brodcasting, media oriented) sempre endossou, explícita ou implicitamente, em qualquer de suas ações, o culto à celebridade – categoria à qual pertencem, além de muitos políticos, executivos, cantores, atores, jogadores e até técnicos de futebol, também, “naturalmente”, os maestros. Eram conhecidíssimos, por exemplo, o apreço e os favores de executivos japoneses a Karajan. E não há guru ou coach corporativo que não ame a metáfora da orquestra como modelo organizacional perfeito.

(difícil, neste cenário, se livrar do estigma de que orquestras funcionem, essencialmente, subordinadas a um protocolo de comando altamente centralizado)

* * *

Praticamente todo bom regente é ou foi, antes de empunhar a batuta, um músico, senão de grande expressão, ao menos completamente proficiente. Os casos são inúmeros, desde Rostropovich, Levine, Ashkenazy, Barenboim (que, para a decepção e desespero de alguns fãs, surpreendentemente se declarou contrário a que músicos orquestrais se sentissem empoderados em relação a assumir o pódio) até brasileiros como Zanon ou Minczuk ou, ainda, membros de destaque de orquestras prestigiosas como Baldini (spalla da OSESP) ou, até (não é piada !), o spalla de violas (!) da Filarmônica de Berlim (Lebrecht disse, tempos atrás, que Sir Rattle o deixou dirigir um concerto antes de se aposentar !…). Até de Karajan ao piano há filmes.

Todavia, como bom cético que sou, sigo no aguardo de vir a conhecer ao menos um caso de um bom regente que não é ou tenha sido, antes, um ótimo musico. Se alguém ainda duvidar disto, é só perguntar para qualquer virtuose que, por razões de saúde, idade, vaidade, finanças ou outras quaisquer, tenha optado, a partir de certo momento de sua carreira, por também atuar como regente, o que levou mais tempo para aprender: se

a tocar seu instrumento ou

a reger uma orquestra ?

Ou, ainda,

a tocar um concerto como solista ou

a reger uma sinfonia ?

* * *

Apesar de importantes progressos na aceitação de que a CRO é muito mais abundante do que até há pouco tempo se supunha, a indústria ainda trabalha primordialmente com a hipótese de que tal habilidade seja bem escassa, a ser prospectada apenas entre uns poucos. Accordingly, posições de destaque ainda são ocupadas por uns poucos.

O que, no entanto, a maioria não percebe é que, conquanto um Dudamel ainda seja tratado pela indústria como um caso isolado de talento excepcional, não é difícil perceber que ele só emergiu por força da existência, num dado contexto (a saber, o célebre El Sistema, da Venezuela), de uma necessidade muito acima da habitual de sujeitos aptos a reger orquestras sinfônicas, no qual ele foi prospectado e prosperou. Só que, como ele, há, muito provavelmente, muitos. Como Payarez, Allondra e outros ainda por serem descobertos.

O ponto onde quero chegar é que pódios mais numerosos e rotativos revelariam, por definição, mais maestros suficientemente bons do que todos os que atualmente conhecemos. Se no, entanto, o acesso aos pódios orquestrais ainda é tão restrito, tal se deve exclusivamente à manutenção de privilégios indevidamente adquiridos.

Não canso de dizer, neste blog e no facebook, que devemos nos engajar, entre outras coisas, numa cruzada pela substituição do mito de que a CRO seja uma competência escassa pela ideia de que a mesma é abundante. Nesta índole, todo programa de treinamento com livre acesso é extremamente bem-vindo. Como, por exemplo a academia de regência da OSESP, dirigida por Valentina Peleggi, onde o acesso universal e isonômico às disputadíssimas vagas é garantido por um rigoroso processo seletivo regulamentado por edital público.

batutas-9

 

 

 

On conducting (xi): para ouvir Carlos Kleiber (i)

Kleiber 2

De todos os regentes icônicos, Carlos Kleiber (1930-2004) é sem dúvida o de biografia mais interessante. Kleiber em poucos fatos: filho de uma americana com um maestro (!) austríaco que foi para a Argentina por se opor ao nazismo, regeu pouquíssimas vezes (ao todo menos de 100 concertos ou récitas de óperas!). Convidado a ocupar o cobiçado pódio da mítica Filarmônica de Berlim depois de Karajan, recusou o posto. Entendemos que o fato de ter deixado poucos registros sonoros e de imagem é o principal responsável por seu relativo ostracismo junto à indústria e, consequentemente, à mídia (até por que os especializadíssimos selos que ainda se dedicam à música sinfônica tendem a privilegiar, por alguma razão, maestros que tenham gravado ciclos completos de obras de um mesmo autor).

Felizmente, há no youtube vários filmes de ensaios conduzidos por Kleiber, bem como farta documentação do que é normalmente aceito como uma de suas especialidades, a saber, a música ligeira vienense.

Abro parêntesis. Muitos já reconheceram que um mesmo regente pode interpretar uma mesma obra de modo bem distinto, em relação aos andamentos, ao longo de suas carreiras. Corno di Bassetto (aliás George Bernard Shaw) observou já em 1890 que o filho de Wagner regeu em andamentos totalmente distintos uma mesma obra de seu pai, no auge de sua carreira e pouco antes de morrer. Também lembro de uma coluna do saudosíssimo Herbert Caro em que constatava a duração crescente de movimentos de sinfonias de Beethoven em ciclos registrados por Böhm e Karajan em momentos distintos. Fecho parêntesis.

Sabedor disso, me abismei diante do fato de que uma mesma polca tocada por Kleiber foi tocada no mesmo andamento em 1986 com a orquestra estatal bávara e depois, em 1992, com a Filarmônica de Viena, num de seus últimos registros. Tal consistência rítmica, tão rara entre maestros, não me chamou tanto a atenção como sua total abstinência de qualquer gesto que tenha como intuito marcar o tempo. Pois, sem qualquer pretensão a controlar o tempo, deixando a orquestra assumir seu próprio pulso, resulta absolutamente livre para conduzir – e aí sim melhor do que ninguém que eu já tenha visto ! – a direção de cada frase. Tenho certeza de que músicos me entendem. Mas os não músicos que tenho como leitores ? A estes, tento explicar de outro jeito. Notem como, particularmente nesta polca (um dos hits incontestáveis da música ligeira), obtém o melhor efeito de uma música extremamente ativa, vivaz, com um mínimo de gesticulação. Quase como se estivesse a reger algo lento. Depois, comparem com o que costumam ver em pódios orquestrais na maioria das vezes. Ou (talvez seja melhor !) não.