A ciranda dos formatos & a inviabilidade da indústria da música clássica

Este texto é dedicado aos alunos da turma de 2024 de Tópicos Especiais em Música do Instituto de Artes da UFRGS – que toda segunda-feira pela manhã, faça chuva ou faça sol, ouvem atentamente insights oriundos, na maioria das vezes, de minhas observações e experiência pessoais e, noutras tantas, da wikipedia (sic !)

Sempre que uma nova mídia fonográfica é lançada, é apregoada como um indiscutível avanço sobre o meio hegemônico imediatamente anterior. Foi assim quando os discos de resina (78 rpm) substituíram, na época da Primeira Guerra Mundial, os cilindros de cera; quando os LPs (33 1/3 rpm) e compactos (45 rpm) de vinil suplantaram, por volta de 1950, os discos de 78 rpm e, na década de 1980, quando quiseram que os CDs rendessem obsoletos os discos de vinil.

É claro que houve avanços. Principalmente na qualidade sonora, na capacidade de armazenamento de sons e na crescente miniaturização. Só que algumas virtudes apregoadas nestes momentos de atualização tecnológica são generalizações apressadas e, muitas vezes, francamente falsas. Por exemplo. Quando os 78 rpm apareceram, se dizia que eram “inquebráveis” – o que logo se revelou uma mentira descarada. Com os discos de vinil, se dizia que “aqueles sim eram inquebráveis”. Outra mentira, posto que, embora inegavelmente mais resistentes do que os 78 anteriores, também quebravam. Depois veio o CD, cuja integridade física requer bem mais engenhosidade para ser afetada.

Mas não é só isso. Grande parte do apelo comercial do CD repousa sobre sua suposta durabilidade – que, até certo ponto, é verdadeira. No calor do entusiasmo, se chegou a acreditar que CDs fossem eternos. Afinal, a informação digitalmente codificada, em valores binários (0 e 1), é incorruptível em relação ao desgaste pelo uso, com o passar do tempo, do substrato físico que serve de suporte à informação analógica gravada nos discos de vinil.

E assim foi por muito tempo – tempo, este, suficiente para que grandes discotecas em vinil fossem completamente substituídas por modernos CDs. Foi quando a grande verdade veio à tona, pois hoje sabemos que os disquinhos de películas metálicas com informação binária altamente compacta, a nível microscópico, incrustadas entre superfícies acrílicas transparentes ao raio laser, também são vulneráveis à ação do tempo, seja por degradação do acrílico (sim, plásticos não são inertes nem tampouco eternos), seja pelo ataque de fungos à película metálica.

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Curiosidade: sabem por que a NASA, no intuito de enviar ao desconhecido amostras da vida e da arte na Terra, colocou a bordo das sondas Voyager e outras discos de ouro, idealizados por Carl Sagan, e não CDs ? Acontece que se um dia uma inteligência alienígena eventualmente encontrasse esses artefatos, é razoável supor que a mesma não teria muita dificuldade em descobrir como reproduzir frequências analógicas de um sulco em espiral gravado na superfície de um disco com um furo no centro (giratório, portanto). Já não se pode dizer o mesmo do sinal sonoro binariamente codificado na superfície de um CD, cuja decifração, exigindo um complexo conversor digital-analógico, seria muito mais difícil de implementar, podendo mesmo jamais vir a ocorrer (obrigado, Marcos Abreu !).

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A ciranda das mídias fonográficas também nos oferece um exemplo precoce de obsolescência programada – prática que, outrossim, costumamos associar a um capitalismo tardio.

Para que entendam o caso, um pouco de ambientação histórica. Talvez o maior avanço tecnológico na gravação sonora durante a primeira metade do século 20 não tenha sido a substituição de um formato por outro, mas a introdução, na década de 1920, da gravação elétrica em substituição à acústica. Em poucas palavras, enquanto a gravação acústica é aquela produzida mediante a disposição de fontes sonoras (vozes e instrumentos) diante de uma coifa (corneta) semelhante à de um gramofone, a elétrica faz uso de recém inventados microfones, capazes de transformar sons em sinais elétricos, amplificáveis e amplificados, que viajam através de fios. É enorme o impacto desta técnica na qualidade sonora das gravações resultantes.

Pois bem. Quando a gravação elétrica foi “descoberta”, por volta de 1920, era bem limitada a quantidade comercialmente disponível de discos produzidos com a nova técnica, em relação a um respeitável acervo de gravações acústicas então existentes – insuficiente, portanto, para suprir a demanda por aqueles itens colecionáveis. Face a isto, Victor e Columbia, então as maiores fabricantes de discos dos Estados Unidos, firmaram um acordo para retardar a chegada ao mercado das novas e superiores gravações elétricas, o qual vigorou até 1925.

O que temos, neste caso, é um tipo bem comum de obsolescência programada reversa, isto é, quando o lançamento de um novo produto já disponível é retardado a fim de que se tire o máximo proveito possível de produtos da geração anterior. Mais ou menos como a Apple que, ao lançar o iPhone 4, já tem pronto o 5 e trabalha no desenvolvimento do 6. Isto é o contrário do que ocorre na obsolescência programada tradicional, na qual produtos – como, por exemplo, lâmpadas, automóveis ou compressores de geladeira – são projetados para não durar mais do que um certo tempo, depois do qual consumidores são levados a substituí-los, mesmo que a engenharia e a indústria tenham plenas condições de fazê-los para durar por toda uma existência humana, ou mais. Ou seja: um vez consumidor, sempre consumidor.

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O consumo continuado – e, com ele, a descartabilidade – é um pré-requisito essencial à permanência de qualquer indústria moderna, alinhada ao espírito dos tempos. Desde que se descobriu, há pouco mais de 100 anos, que a música se prestava de alguma forma à industrialização, sempre se buscou a fidelização de consumidores de produtos musicais. Neste contexto, a música popular como hoje a conhecemos foi desenvolvida como uma solução perfeita para o problema. É amplamente sabido que George Martin foi um executivo fonográfico incumbido de achar novidades sonoras capazes de fidelizar compradores de discos. Estava às voltas com gravações de ruídos cotidianos (aqueles curiosos discos, que não emplacaram, ditos de efeitos especiais) quando topou, meio por acaso, com os fab four num clube de Liverpool. O resto é história.

Celebridades recicláveis “vestem” a cada nova temporada novos personagens em novos álbuns. Como barbies que trocam de roupa. Acontece que, ao longo dos anos, é difícil identificar (salvo raras exceções), entre álbuns “adjacentes”, alguma evolução de seus intérpretes. Como em personagens de um romance. Ou então ao se comparar obras juvenis com tardias de um mesmo compositor. Por isto o pop é um eterno (ou até que a fórmula se esgote) “mais do mesmo”.

Até o século 19, a distinção entre música popular e erudita, se existia, não era tão exacerbada (ou tinha outro significado) – com seções separadas, por exemplo, em lojas de discos ou, atualizando, canais de streaming. Quando o pop se estabeleceu, então, como segmento autônomo de produtos industriais, se pensou, por indução lógica, que a música clássica se constituiria num filão igualmente lucrativo para o comércio de discos. A próxima bola da vez. Não foi. Por décadas, possivelmente subsidiada por volumosos lucros do segmento pop, a indústria da música clássica abasteceu o mercado com novos títulos (novos intérpretes) de um mesmo repertório, limitado e redundante, que não tardou a atingir um ponto de saturação. Pois o repertório clássico, conquanto trouxesse, vez que outra, alguma novidade, jamais logrou se renovar na velocidade necessária à existência de uma indústria.

Veio, então, com a derrocada, o livro “Maestros, Obras-primas e Loucura” (2007), de Norman Lebrecht, que ostentava (na edição brasileira) o eloquente subtítulo “A vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica”. Nele, o autor culpa a ganância dos executivos e o estrelismo dos maestros e solistas, ao se sentirem celebridades e se comportarem como tais, pela decadência do setor. Gostei do livro. Tanto que o resenhei.

Só que, mesmo concordando com a ideia de que a super remuneração de protagonistas (maestros, solistas e executivos), num setor que sempre dependeu, mais do que o pop, de coadjuvantes (músicos de orquestra), minou a sustentabilidade do negócio, me inclino a acreditar se tratar, antes, de uma morte anunciada. Pois a indústria de discos de música clássica nunca passou, a meu ver, de uma bolha especulativa ou, se quiserem, parêntese histórico. Explico.

Lembram quando afirmei, um pouco acima, que descartabilidade e o consumo continuado são pré-requisitos para qualquer indústria ? Pois a música clássica simplesmente não oferece esta condição. Um mesmo repertório redundante é continuamente oferecido em novas “versões” que em pouco ou nada diferem de anteriores. Tudo bem que audiófilos possam defender durante horas atributos desta ou daquela gravação de alguma obra. Mas, ao fim, será sempre a mesma obra, mais ou menos fiel a intenção de seu compositor e imediatamente identificável por ouvintes independentemente de quem a tenha gravado. Algo bem diferente da enorme variabilidade entre arranjos e remixes de um mesmo hit tolerável pela ética e estética do pop. Deixemos, por enquanto, a complexa situação do jazz de fora desta discussão.

Com todas as restrições convencionais do universo erudito à liberdade interpretativa, é razoável se afirmar que a liberdade de um intérprete acaba se restringindo (quase sempre) ao andamento de execução de cada obra, inclusive alterações do mesmo (rubato), e, menos frequentemente, diapasão (padrão de afinação, expresso através da frequência de referência, em Hz, da nota Lá). Ainda assim, com as seguintes ressalvas:

  1. o diapasão não varia durante a execução completa de uma obra; e
  2. há uma tendência, corroborada por princípios analíticos, de que versões por diferentes intérpretes para uma mesma obra sejam convergentes para um mesmo rubato, i.e., nos mesmos pontos, ainda que possam variar em intensidade.

Maravilhas do YouTube. Numa busca rápida, encontramos dois vídeos eloquentes que dão conta de ilustrar precisamente o grau de autonomia concedido a intérpretes para abordar obras consagradas pelo gosto popular. O primeiro deles, mais abrangente, justapõe os dois acordes iniciais da 3ª Sinfonia (Eroica) de Beethoven, em versões ao longo de várias décadas, dando uma ideia do que se podia esperar do grau de capricho de cada regente em termos de desvio da intenção do compositor, convenientemente morto:

O outro permite uma comparação mais demorada entre um grupo menor de gravações mais recentes:

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O saudoso Herbert Caro escreveu certa vez sobre diferenças de duração de um mesmo movimento em ciclos completos de sinfonias de Beethoven, tanto por regentes diferentes como por um mesmo regente em diferentes momentos – pois, pasmem, figurões como Karajan, em delírios megalomaníacos, chegaram a gravar, incentivados por barões da indústria, os mesmos ciclos sinfônicos mais de uma vez. Se isto não é doentio, então não sei mais o que é.

Zeca Azevedo, um dos ouvintes mais inteligentes e sensíveis que conheço e com o qual tenho o prazer de trocar ideias vez que outra, me perguntou (e ao Milton Ribeiro) tempos atrás o que achávamos de uma série de boxed sets recomendados por um crítico. Prá quem não sabe, boxed sets são aquelas caixinhas de CDs contendo ciclos completos de obras (por ex., todas as sinfonias de Brahms, todos os lieder de Schubert ou todos os quartetos de cordas de Beethoven), ou ainda integrais de gravações de música popular (jazz inclusive) registradas em ocasiões específicas, incluindo takes alternativos. Por mais interessante e lisonjeira que fosse a pergunta, nem me dei ao trabalho de responder (Sorry, Zeca !). Por dois motivos.

Primeiro, por que a recomendação do tal crítico não vinha em forma de lista, mas de um vídeo. Curto e grosso: considero o hábito atualmente consagrado de envio de áudios e vídeos um sequestro de atenção, o qual deveria, idealmente, ser banido por normas de higiene e bom convívio virtual ou, se preferirem, netiqueta.

Segundo, por que não vejo sentido algum em se colecionar caixinhas com repetidos ciclos completos de repertórios clássicos. É claro que, ao escolhermos nossas “integrais” disto ou daquilo, buscamos alguma orientação. Neste sentido, o vídeo daquele crítico (prá quem tiver paciência de assistir) pode ser de algum valor.

Em meu caso específico, minha escolha pelas sinfonias de Beethoven por Roger Norrington e seus London Classical Players foi orientada por dois fatores, a saber,

  1. minha predileção pelas pancadas mais rústicas de baquetas de madeira sobre as peles naturais dos tímpanos e pela articulação mais… “crocante” de naipes menores de instrumentos de época; e
  2. a premissa, aparentemente óbvia, adotada por Norrington mas sistematicamente rejeitada pela maioria absoluta dos maestros em nome de uma suposta e questionável autonomia de interpretação, de que os tempos (andamentos) de execução anotados por Beethoven em suas partituras efetivamente expressassem a sua vontade enquanto compositor.

Sobre este último hábito, (ainda) tão em moda, de desacreditar os andamentos prescritos por Beethoven para a execução de suas obras em favor de supostas prerrogativas de seus intérpretes – como tempos de execução fossem, imaginem, menos importantes ou secundários para a integridade das obras do que, por exemplo, as alturas e durações precisas de cada um de seus sons ! – é comum que perpetradores deste tipo de atrocidade lancem mão de uma hipótese, que já adquiriu conotação anedótica, a saber, a de que “o metrônomo de Beethoven estava estragado” (sic !).

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PS: após ser notificado da citação, Marcos Abreu enviou (que honra !) os seguintes comentários, que reproduzo abaixo, em nome da precisão da informação e com o devido consentimento.

“… Tem Bolero de Ravel entre 15 e 21 minutos.”

“… Não são fungos que atacam o metal. No caso o alumínio. É ar que entra pelo verniz e ataca o alumínio. Corrosão mesmo. Conforme a fábrica duram mais ou menos. Agora o alumínio fica mais para dentro da borda e o verniz cobre todo o disco evitando a entrada de ar. No caso, o acrílico, com a gravação, é eterno.”

“… o pior é que o cd está sendo morto pela ponta. Não existem mais players. Não serão mais fabricadas as unidades ópticas. Em pouco tempo. Já existem poucos produzindo.”