Por que não ouço rádio (ii)

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Nos últimos dias, esta lista pipocou em meu timeline, guarnecida por cabeçalhos que variavam do conformismo à indignação. De pronto chamou minha atenção que ela era compartilhada praticamente como um meme por pessoas que reputo como musicalmente esclarecidas. Bem esclarecidas. Especialistas, até, na maioria dos casos. Talvez por isto, não me dei ao trabalho de verificar a fonte da informação, nem de conhecer o universo amostral. Pois, dependendo da região de abrangência geográfica, da estação pesquisada ou mesmo do fato dela ser de AM ou FM, é claro que a lista seria sempre bem diferente.

Supondo, então, pela credibilidade dos compartilhadores e pelo senso comum de quem já zapeou por um dial de rádio, que os dados da lista estejam corretos, chegamos inevitavelmente ao problema de explicar por que músicas tão ruins sejam também, senão as mais escutadas, pelo menos as mais tocadas por estações de rádio. E, indiretamente, à imponderabilidade semântica da palavra popular.

Pois o “gosto popular”, no sentido daquilo que as pessoas escolhem ouvir, é largamente condicionado por aquilo que as mesmas conhecem. Ao mesmo tempo, hoje as pessoas conhecem muito mais a música que toca em meios de comunicação de massa (broadcasting) e, em contextos mais conectados, nas redes sociais; do que aquela que (quando há) é produzida ou praticada em cada lugar. Então, o rádio ainda é, principalmente entre os segmentos menos conectados, o maior vetor de conhecimento de praticamente tudo o que alguém pode querer ouvir. Pois, como disse Adorno (em defesa da música de Schoenberg), “só se gosta daquilo que se conhece.”

(lembro sempre de Bruno Kiefer dizendo, numa aula de música brasileira, se se enganavam os que tomavam por música popular aquilo que ouviam no rádio)

Percebem o ciclo vicioso ? Enquanto produtores e gravadoras dominarem, mais comumente pelo expediente do jabá, a programação do que é tocado em estações de rádio comerciais, a audiência não será mais do que massa de manobra, doutrinada para o consumo de bens que anunciantes queiram vender, aí incluídos e principalmente os produtos sonoros.

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Do pouquíssimo que sei de economia, consta como um dos princípios pétreos do estado liberal o de permitir (leia-se ao capital empreendedor) a exploração dos segmentos mais rentáveis da economia e assumir aqueles que, conquanto deficitários, são essenciais à preservação do tecido social. Como saúde, educação e segurança. Entusiastas de um estado mínimo já falam abertamente de um certo caráter supérfluo da cultura e até mesmo da extinção de disciplinas e redução de investimentos em educação pública. E a direita, hora empoderada, vê na cultura e mesmo em disciplinas como história, filosofia, sociologia, artes e afins pólos de geração e irradiação de pensamento de esquerda. Mas isto já é outro assunto.

O que nos interessa, neste momento, é que muitos grupos demográficos, ainda sem acesso à internet, ainda estão exclusivamente conectados (e de modo apenas unidirecional, ao contrário do que se dá na web !) ao mundo por meios de broadcasting. Então, mesmo que as frequências de rádio e os canais de televisão aberta sempre tenham sido sustentados por receitas próprias, oriundas da cessão de tempo de broadcasting a anunciantes, isto não significa que a exploração do que é veiculado (em ondas que, afinal, existem de fato num espaço público !…) no rádio e na TV deva ser concedida “naturalmente” (i.e., tendo por base exclusivamente históricos exitosos de investimentos privados no setor) à iniciativa privada. Qual o ganho público ? Quem lucra mais: produtores ou espectadores ? Se forem estes os critérios, então, o atual sistema de concessão de frequências de rádio e TV claramente não satisfazem.

Em emissoras públicas, ao contrário, a atribuição de relevância a cada conteúdo jornalístico ou artístico concorrente à grade de programação é orientada sempre pelo interesse público – que não é, como vimos acima, o gosto do público (pois o que cada um gosta de ver não é, na maioria das vezes, o que cada um gostaria de ver, fosse maior o leque de opções). Nelas também se dá o predomínio de músicas e outros conteúdos produzidos localmente e/ou por pequenos produtores e tendo em foco personalidades locais ao invés de celebridades.

Então, conquanto deva haver vários outros motivos, só as razões elencadas acima já são, por si só, suficientes para que se queira abolir, por norma constitucional, a concessão de licença para operação de prefixos de rádio e TV a entidades cuja existência não seja dedicada, por força estatutária, ao interesse público, garantido por meio de dispositivos de controle social. Como universidades, fundações culturais, museus, teatros e afins. Com programações orientadas por diversidade cultural e mérito artístico, por exemplo (algo que, por definição, não há no rádio nem tampouco na TV privados). Notem, também, que deixei igrejas fora desta lista (pois religião e interesse público não tem nada a ver um com o outro). Imaginem passear por um dial povoado por estações geridas por instituições assim.

Se esta miragem não lhes parecer por demais utópica, defendam a imediata revisão dos critérios para concessão de frequências de rádio e canais de televisão, em nome da inclusão de dispositivos que garantam o controle social sobre seu interesse público. Obrigado.

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