Por que o jazz é a música do futuro

Com o avanço exponencialmente mais rápido a cada dia da inteligência artificial (leia-se: cada vez mais ocupações até hoje desempenhadas exclusiva ou predominantemente por humanos vem sendo total ou parcialmente automatizadas), todas as profissões conhecidas tendem a desaparecer. Umas antes, outras depois (o famoso estudo de Oxford). É só uma questão de tempo. E com a morte das profissões, está decretado o fim do trabalho. Podemos até duvidar que isto aconteça durante nossas vidas. Mas, queiramos ou não, testemunhemos ou não, se trata de um desfecho histórico inevitável.

Por exemplo. Ainda que a fotografia já tenha sido uma profissão com nichos bem específicos de atuação profissional (jornalismo, publicidade, perícia, etc.), é difícil acreditar que hoje, com todas as facilidades embutidas em telefones celulares, seja mais do que uma ocupação recreativa ou, no máximo, artística. Mas a própria figura do artista profissional, que comercializa o que produz para o consumo de meros espectadores, tende a desaparecer com a universalização da criação artística, hoje privilégio de alguns, doravante ao alcance de toda a população.

Este quadro é demasiado sombrio ? Soo pessimista ? Não acho. Primeiro, por que já está acontecendo. Se já é difícil, senão impossível, se viver de fotografia, o mesmo acontece com a música. Como evitar o encolhimento das profissões musicais quando fica cada vez mais fácil a qualquer um criar e produzir sua própria música ? Isto sem falar no enorme manancial de música do passado que pode ser garimpada a qualquer instante a um custo que tende ao zero. E a produção textual, antes um privilégio de indivíduos mais instruídos, emprega cada vez menos gente, como vimos no post anterior.

Não me entendam mal: falo do fim das profissões, e não das ocupações ! É claro que as últimas continuarão (oxalá !) existindo; só não poderemos mais contar com elas para garantir a subsistência.

O futuro é lúdico. Ao menos se a economia se transformar radicalmente e uma revolução moral permitir que a humanidade deixe de culpar a si própria (e aos outros) pelo ócio. Mas voltemos à música, objeto deste texto.

Por mais abomináveis que possam ser, rótulos também são bem úteis por nos ajudarem a categorizar. Aí incluídos os gêneros musicais. Se a música erudita ambiciona a posteridade, para além da morte do compositor, o pop visa o lucro imediato, desfrutável ainda em vida. Sei, são generalizações um tanto apressadas. É claro que o melhor pop, graças ao culto dos fãs, sobrevive a seus criadores. E a indústria bem que tentou fazer da música clássica um produto. Mas, via de regra, pop é coisa de gente viva e música clássica, de gente morta. E não me venham, por favor, com exceções, que existem, e muitas. Por que minha generalização, por mais tosca que seja, se aplica a uma amostra estatisticamente neutra, a saber, o que mais se ouve no rádio e em concertos.

Mas e o jazz ? Parece correr em banda própria, paralelamente à música conforme vista pela indústria. É como se, nela, a música, pop ou erudita, fosse, de certo modo, domesticada. O jazz, não: permanece uma manifestação selvagem. A maior prova disto é que seus produtores, ao invés de tentar ajustar a música a demandas de mercado, na maior parte das vezes se limitam a capturá-la (uma amostra, como veremos adiante).

Sim, bem que a indústria tentou domar o jazz e, por um breve instante, até conseguiu. Kind of Blue foi um campeão de vendas tão expressivo como um hit pop. Mas já estou, aqui, a falar da exceção. Todo jazzófilo sabe que, por mais discos de músicos icônicos que tenha colecionado, o jazz enquanto risco (a alma de toda improvisação, alicerce do jazz) só acontece em apresentações ao vivo, quase sempre para audiências minúsculas.

Não toco jazz. Tenho profunda inveja de quem sabe e se atreve a improvisar. Mas posso ter ideia da estranheza com que um músico de jazz deve perceber um produtor de gravações do gênero. Ora, todo disco de jazz é não mais do que uma pálida amostra de toda a gama de possibilidades que uma performance poderia ter assumido. É justo isto que o torna tão interessante.

Continuo, mesmo assim, com a ideia de que o produtor de discos de jazz é um profissional condenado ao fracasso por tentar, repetidamente (fez, na verdade, disto uma profissão), capturar num meio reproduzível algo que jamais acontecerá do mesmo jeito no tempo. Por isto mesmo, sou enormemente grato aos bons produtores de gravações de jazz, por quem nutro profundo respeito.

Mas por que o jazz é, afinal, a música do futuro ? Elementar, meu caro Watson: por que é a música do aqui e do agora. Enquanto toca, um improvisador exponencial não está preocupado com a remuneração que poderá auferir da performance, nem tampouco com o que legará à posteridade. Naquele momento, só está preocupado em superar a si próprio, ao que entregou na gig anterior. Neste sentido, é a música mais honesta que conheço. Remuneração e legado interessam, é claro, mas são meramente circunstanciais.

O potencial desempregador da inteligência artificial

Um dos maiores temores em relação à crescente presença da inteligência artificial na vida cotidiana tem a ver com a possibilidade de que ela (ou seus controladores, pois a IA ainda não tem (tem ?) vontade própria) cada vez mais reivindique para si incumbências até então somente atribuídas a humanos. A bem da verdade, isto já está acontecendo, como bem documenta uma excelente matéria da BBC sobre seu emprego na redação de textos.

A gritaria não é novidade alguma. Já no final do século 18, na aurora da revolução industrial, ludistas invadiam tecelagens inglesas e quebravam máquinas temendo que as mesmas ameaçassem a existência de seus empregos. Desde lá pouca coisa mudou. A diferença é que se, antes, novas tecnologias substituíam o trabalho braçal, as de hoje clamam para si operações mentais até pouco tempo consideradas território exclusivo da inteligência humana. Tudo faz parte de uma longa e única narrativa, a saber, a obsolescência progressiva do trabalho humano. Primeiro, o braçal. Agora, o mental.

Isto é bom ou ruim ? Depende de como você encarar. Se definirmos trabalho do modo como é habitualmente entendido numa cultura capitalista, i.e., como emprego, com perpetuação de funções exercidas e manutenção de direitos adquiridos, a automação é preocupante, por ser indiferente ao desemprego que dela decorre.

Se, por outro lado, a automação servisse para garantir a manutenção de atividades reconhecidamente essenciais à sobrevivência e ao bem estar humanos gerando, com isto, mais tempo ocioso para ser dedicado à criatividade e ao lazer, não haveria nada de errado.

Só que o que acontece não é nada disto. Quando alguém é desempregado por alguma nova tecnologia, tal não se dá em nome da desoneração do indivíduo de algo que pode ser feito tão bem ou melhor por uma máquina, de forma automática, mas tão somente em razão da maior lucratividade na operação. Fica claro, então, que o problema não é a automação e sim o lucro. Ou, mais precisamente, a automação a serviço do lucro e não do bem estar humano, como deveria ser num mundo ideal.

Eis a principal razão de não estarmos avançando na direção da previsão de Keynes, a saber, de que, ca. 2030, trabalharíamos em média 15 horas por semana.

Cabe, também, perguntar até que ponto vale a pena (exceto, é claro, pelo fenômeno da desempregabilidade crescente) um humano produzir um texto que já possa ser escrito por um algoritmo. Penso, de imediato, em bulas de remédio, manuais e receitas culinárias (um tipo de manual), mas a lista pode ser rapidamente expandida para incluir textos de referência (dicionários, enciclopédias e artigos acadêmico/científicos), jornalísticos, publicitários (como na supracitada matéria da BBC) ou, por que não, legais. Em suma, toda e qualquer categoria de redação sobreformatada. Isto representaria um passo importante em direção a uma escrita exclusivamente criativa, talvez eliminando, de quebra, o excesso textual (produzido, em grande parte, pela academia) denunciado já em 1989, no New York Times (não incluí o link por que, agora, o NYT também se esconde atrás de um paywall), pela bibliotecária chefe da Universidade de Harvard. Seu apelo, quase uma súplica, à comunidade: “– Por favor, escrevam menos ! Pois já não temos mais onde guardar tanto material, tendo que alugar galpões fora do campus para tanto.” Mas isto (namely, o excesso textual) já é assunto prá outro post. Intitulado, talvez, Why write ?

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Do jeito que se fala em IA, como uma expressão nova, que ainda não existia há poucos anos atrás, pode até parecer se tratar de algo novo. Não houve, no entanto, nenhuma ruptura, como uma descoberta ou evento específico, que interrompesse uma tendência verificável já há muito tempo. Desde os primeiros programas de computadores ou mesmo antes.

No começo do uso de computadores, se podia perfeitamente entender a lógica operante em um programa pelo mero exame de seu código fonte. Era como se as linguagens de programação fossem não mais do que versões mais precisas da verbal. Isentas de ambiguidades. Bastava, então, “ler” um programa para se saber o que ele fazia.

Com o passar do tempo, tarefas mais complexas começaram a demandar um recurso mais frequente a subrotinas e, ao mesmo tempo, interfaces gráficos, mais “amigáveis”, dependentes de um grande volume de cálculos vetoriais. De tal modo que, hoje, a compreensão total, nos mínimos detalhes, de tudo o que um programa (hoje, aplicativo) executa está muito além da possibilidade de abrangência pela mente humana.

Para melhor se entender essa evolução exponencial que a programação computacional, alavancada por tecnologias cada vez mais rápidas e miniaturizadas, teve em poucas décadas, vale a pena lançar mão de uma analogia com o jogo de xadrez.

Entre o leigo e o enxadrista avançado, cujo estereótipo é o russo que disputa competições internacionais, existe um abismo. Como leigo, sei movimentar as peças no tabuleiro e conheço as regras do jogo. Tanto que tenho boas chances ao disputar uma partida com outro leigo, pois consigo prever o desfecho de lances imediatos mais prováveis (i.e., descartados os absurdos).

Notem, no entanto, que, a cada nova jogada “antecipada”, crescem exponencialmente as possibilidades. Tanto que, ao cabo de poucos lances, chega a milhares, até milhões, o número de possíveis desfechos – somente um dos quais interessa, a saber, o cheque-mate. Ao final, ganha geralmente quem conseguir visualizar o maior número de jogadas à frente.

Pois a computação é assim. Se, nos primórdios, era como uma partida de xadrez entre leigos ou quase isto, hoje é como uma disputa entre um Mequinho e um Kasparov. Mas tudo isto, é claro, é totalmente transparente (invisível) ao usuário.

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Disse há pouco que a inauguração do uso da expressão inteligência artificial não está associada a nenhum evento ou tecnologia disruptivos específicos. Talvez isto não seja verdade. Não escaneei pioneiros da ficção futurista (ficção científica é, a meu ver, uma formulação inadequada) para saber, por exemplo, se Asimov se referia, em Eu, robô, ao cérebro positrônico como IA. Certo é, no entanto, que seu uso hegemônico para designar algoritmos e programas a partir de uma certa complexidade se tornou popular a partir do momento em que operações realizadas pelos mesmos puderam não apenas ser confundidas com aquelas executadas pela mente humana, mas levadas a cabo de modo mais preciso, rápido e eficiente. Há quem considere isto um marco histórico a sinalizar o início do fim do trabalho.

Há também quem ache isto, mais do que preocupante, alarmante. Como Harari, num artigo que citei recentemente – o qual, de tão provocativo, suscitou respostas fortes e imediatas como, por aqui, a de Fernando Schüller. Tudo bem que Harari tenha, como já me disseram, uma sensibilidade aguçada para o sensacional ou bombástico. Até por ser bem atuante no super competitivo mercado editorial (é autor de best sellers) e ter, afinal, que promover seus livros. Mas suas análises históricas e especulações futurísticas são prá lá de plausíveis.

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Abre parêntesis. Por vezes, algumas projeções, não mais do que fantásticas, de ficcionistas futuristas – como a de Kurt Vonnegut, em Cat’s Cradle, que imaginou o que chamou de gelo 9, uma nova forma de água com ponto de fusão mais alto que, em contato com mais água, líquida e em temperatura ambiente, a congelaria – são assustadoras ao ponto de não apenas gerar pânico mas induzir a comunidade científica a produzir uma avalanche de artigos refutando a mera possibilidade de existência do gêlo 9 e, com isto, restaurando a tranquilidade. Fecha parêntesis. Ou melhor, ainda não. Vonnegut batizou o capítulo de Cat’s Cradle em que uma banheira contendo a única amostra existente de gêlo 9 despenca de um penhasco (putz, que cacofonia) caindo no oceano, cujo congelamento instantâneo produz um estrondo que se propaga pela superfície de todo o globo, nos mergulhando numa nova era glacial (o cenário da novela de Vonnegut), como “O Grande Ahum“. Pois Ah Um também é o nome de um álbum de Charles Mingus. Aqui, entenderei perfeitamente se alguém disser “– Sim, mas daí ?“. Agora sim, fecha o parêntese.

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Que a IA acabaria por se igualar à humana e, a partir daí, suplantá-la, nunca foi difícil de prever. O motivo é simples. Enquanto a inteligência humana reside num suporte biológico, o cérebro, cuja evolução é medida em milhões de anos, a artificial existe em circuitos que se tornam menores e mais rápidos (portanto mais poderosos) praticamente da noite para o dia. Não tinha como o progresso tecnológico não dar nisso. O que nos traz de volta a pergunta: isto é bom ou ruim ?

Se a sociedade humana continuar a privilegiar a concentração de riqueza sobre sua distribuição, a IA só vai acelerar o desemprego, gerando, com isto, fome, pobreza, desagregação social, guerra e, eventualmente, a extinção da espécie, da vida e do planeta, nesta ordem. Ou nem tanto, pois a IA, sem precisar competir com a humana, talvez opte por preservar o planeta ou mesmo formas de vida não inteligentes. Mas isto não interessa, pois não vai sobrar ninguém prá contar.

Se, por outro lado, o ser humano conseguir abraçar o ócio, se libertando de todos os preconceitos morais sobre o trabalho (que só servem aos grandes acumuladores), aí então será possível vislumbrar um futuro mais auspicioso para a espécie, cujas possibilidades são tantas que prefiro deixar a cargo da imaginação de ficcionistas.

Yuval Noah Harari diz que a Inteligência Artificial hackeou o sistema operacional da civilização humana

Até hoje, a espécie humana deteve o monopólio sobre a inteligência. A recente e galopante evolução das inteligências artificiais coloca, pela primeira vez, esta situação em risco. A ameaça, cada vez mais presente, de que, em breve, não sejamos mais as únicas entidades inteligentes conhecidas é objeto deste ensaio perturbador de Yuval Noah Harari, publicado por The Economist e traduzido a seguir.

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Temores de uma Inteligência Artificial (IA) assombraram a humanidade desde o começo da era do computador. Até agora tais temores estavam voltados para máquinas que usassem meios físicos de matar, escravizar ou substituir pessoas. Mas nos últimos anos surgiram novas ferramentas de IA que ameaçam a sobrevivência da civilização humana de um modo inusitado. A IA ganhou algumas habilidades notáveis para manipular e gerar linguagem, tanto com palavras, sons ou imagens. Assim, a IA hackeou o sistema operacional de nossa civilização.

Linguagem é a matéria da qual quase toda criatura humana é feita. Os direitos humanos, por exemplo, não estão inscritos em nosso DNa. Ao contrário, são artefatos culturais que criamos contanto histórias e escrevendo leis. Deuses não são realidades físicas. Antes, são artefatos culturais que criamos inventando mitos e redigindo escrituras.

O dinheiro também é um artefato cultural. Cédulas são não mais do que pedaços de papel coloridos e, atualmente, mais de 90% do dinheiro não é sequer constituído por cédulas, mas apenas informação digital em computadores. O que confere valor ao dinheiro são histórias que banqueiros, ministros de finanças e gurus de criptomoedas nos falam dele. Sam Bankman-Fried, Elizabeth Holmes e Bernie Madoff não eram particularmente bons em se tratando de criar valor verdadeiro, mas eram contadores de histórias muito capazes.

O que aconteceria quando uma inteligência não humana se tornasse melhor do que o ser humano médio em contar histórias, compor melodias, desenhar imagens e escrever leis e escrituras ? Quando as pessoas pensam sobre ChatGPT e outras novas ferramentas de IA, se remetem frequentemente a exemplos como estudantes usando IA para escrever seus textos. O que acontecerá com o sistema escolar quando crianças fizerem isto ? Mas este tipo de questão ignora o grande problema. Esqueça as redações escolares. Pense na próxima corrida presidencial norte-americana em 2024 e tente imaginar o impacto de ferramentas de IA que possam produzir em massa conteúdo político, fake news e escrituras para novos cultos.

Recentemente, o culto ao qAnon se aglutinou em torno de mensagens online anônimas conhecidas como Q drops. Seguidores colecionaram, reverenciaram e interpretaram Q drops como um texto sagrado. Embora tenhamos razões de sobra para crer que todas as Q drops até agora foram criadas por humanos e robôs meramente ajudaram a disseminá-las, no futuro poderemos ter os primeiros cultos na história cujos textos tenham sido escritos por uma inteligência não humana. Ao longo de toda a história, religiões alegam que seus livros sagrados tiveram uma origem não humana. Em breve isto pode se tornar uma realidade.

Num nível mais prosaico, poderemos em breve entabular longas discussões online sobre aborto, mudanças climáticas ou a invasão russa da Ucrânia com entidades que julgamos ser humanas, mas que na verdade não são. O perigo é que, enquanto não faz qualquer sentido gastarmos tempo tentando mudar opiniões declaradas por um robô de IA, esta poderá, por outro lado, aprimorar suas mensagens tão precisamente que haverá uma boa chance de sermos por ela influenciados.

Através de seu domínio da linguagem, a IA poderá até criar relações íntimas com pessoas e usar o poder da intimidade para mudar opiniões e visões de mundo. Embora não haja indício de que uma IA tenha qualquer consciência ou sentimentos próprios, para que ela fomente uma falsa intimidade com humanos é suficiente que ela possa fazer com que pessoas se sintam emocionalmente ligadas a ela. Em junho de 2022, Blake Lemoine, um engenheiro do Google, declarou publicamente que o chatbot de IA LaMDA, no qual estava trabalhando, se tornara autoconsciente. A alegação controversa lhe custou o emprego. O mais interessante neste episódio não é que a alegação de Lemoine fosse provavelmente falsa. Antes, foi sua disposição em arriscar seu lucrativo emprego por causa do chatbot. Se uma IA pode influenciar pessoas a arriscarem seus empregos por elas, ao que mais poderá induzi-las ?

Numa luta política por corações e mentes, a intimidade é a arma mais importante, e a IA acaba de adquirir a habilidade para produzir em massa intimidade com milhões de pessoas. Todos sabemos que na última década as mídias sociais se tornaram um campo de batalha para controlar a atenção das pessoas. Com a nova geração de IA, o front de batalha está mudando da atenção para a intimidade. O que acontecerá à sociedade e à psicologia humanas quando uma IA travar com outra IA uma luta para falsificar relações íntimas conosco, ambas podendo ser utilizada para nos convencer a votar em determinados políticos ou a comprar determinados produtos ?

Mesmo sem criar “falsa intimidade”, as novas ferramentas de IA teriam uma imensa influência em nossas opiniões e visões de mundo. Pessoas podem vir a usar, como um oráculo absoluto e onisciente, uma única IA como fonte de recomendações. Não é à toa que o Google está aterrorizado. Por que me dar ao trabalho de pesquisar se posso simplesmente perguntar ao oráculo ? As indústrias de notícias e de propaganda também deveriam estar aterrorizadas. Por que ler um jornal quando posso simplesmente pedir ao oráculo as últimas notícias ? E qual o propósito da propaganda quando posso simplesmente perguntar ao oráculo o que comprar ?

Tais cenários não dão conta, todavia, do maior problema. Estamos falando do potencial fim da história humana. Não o final da história, mas só de sua parte dominada por humanos. História é a interação entre biologia e cultura; entre nossas necessidades biológicas e desejos por coisas como comida e sexo e nossas criações culturais como religiões e leis. História é o processo através do qual leis e religião definem comida e sexo.

O que acontecerá ao curso da história quando a IA assumir a cultura e começar a produzir histórias, melodias, leis e religiões ? Instrumentos anteriores como a imprensa e o rádio ajudaram a disseminar as ideias culturais dos homens, mas nunca criaram novas ideias culturais próprias, A IA é essencialmente diferente. A IA pode criar ideias e cultura completamente novas.

Inicialmente, a IA vai provavelmente imitar os protótipos humanos em que foi treinada em sua infância. Mas a cada ano que passar, a cultura de IA irá corajosamente onde nenhum humano jamais foi. Por milênios seres humanos viveram dentro dos sonhos de outros humanos. Nas próximas décadas, talvez possamos nos encontrar vivendo dentro dos sonhos de uma inteligência alienígena.

O medo da IA assombra a humanidade somente desde as últimas décadas. Mas por milhares de anos ela foi assombrada por um medo muito mais profundo. Sempre apreciamos o poder das histórias e imagens para manipular nossas mentes e criar ilusões. Consequentemente, desde tempos muito antigos humanos temem ser aprisionados num mundo de ilusões.

No século 17, René Descartes temia que um demônio maligno o estivesse aprisionando num mundo de ilusões criando tudo o que ele via e ouvia. Na Grécia antiga, Platão contou a famosa Alegoria da Caverna, na qual pessoas são acorrentada numa caverna por toda sua vida contemplando uma parede em branco. Uma tela. Nesta tela, vêm projetadas várias sombras. Os prisioneiros tomam, então, as ilusões que lá vêm por realidade.

Na antiga Índia, sábios budistas e hindus afirmavam que todos os seres humanos viviam aprisionados dentro de Maya – o mundo das ilusões. O que normalmente tomamos por realidade é frequentemente não mais do que ficção em nossas mentes. Pessoas podem travar guerras inteiras, matando outros e desejando ser mortas, tão somente por causa de sua crença nesta ou naquela ilusão.

A revolução da IA está nos levando a encarar o demônio de Descartes, a caverna de Platão e o Maya. Se não formos cuidadosos, podemos ser aprisionados atrás de uma cortina de ilusões que não possamos romper ou sequer perceber que ela existe.

É claro que o novo poder da IA também pode ser usado para bons propósitos. Não me deterei aqui, pois quem desenvolve IA já fala nisto suficientemente O trabalho de historiadores e filósofos como eu é apontar os perigos. Mas certamente a IA pode nos ajudar de incontáveis maneiras, desde achando curas para o câncer até descobrindo soluções para a crise ecológica. A questão que se nos apresenta é como assegurar que as novas ferramentas de IA sejam usadas para o bem e não para o mal. Para fazer isto, primeiro temos que apreciar as verdadeiras capacidades destas ferramentas.

Sabemos desde 1945 que a tecnologia nuclear pode gerar energia barata para beneficiar seres humanos – mas pode igualmente destruir a civilização humana. Reformamos, então, toda a ordem mundial para proteger a humanidade e para garantir que a tecnologia nuclear fosse usada preferencialmente para o bem. Agora, temos que conter uma nova arma de destruição em massa que pode aniquilar nosso mundo mental e social.

Ainda podemos regular as novas aplicações de IA, mas temos que agir rápido. Enquanto ogivas nucleares não podam inventar ogivas nucleares mais destrutivas, a IA pode fazer IAs exponencialmente mais poderosas. O primeiro passo crucial é exigir testes de segurança rigorosos antes que ferramentas poderosas de IA sejam publicamente disponibilizadas. Do mesmo modo que empresas farmacêuticas não podem lançar novas drogas sem antes testar seus efeitos de curto e longo prazo, empresas de tecnologia não devem lançar novas ferramentas de IA antes que elas sejam seguras. Precisamos de um equivalente à ANVISA (Food & Drug Administration, ou FDA, no original) para novas tecnologias, e precisamos para ontem.

Um atraso na implementação pública de IA não faria com que as democracias ficassem para trás em relação a regimes autoritários mais cruéis ? Antes, o contrário. A implementação não regulamentada de IA criaria um caos social que, por sua vez, beneficiaria autocratas e arruinaria democracias. Democracia é conversação, e conversação depende de linguagem. Quando a IA hackeia a linguagem, ela pode destruir nossa habilidade de manter conversações que tenham sentido – destruindo, portanto, a democracia.

Recém encontramos uma inteligência alienígena aqui na Terra. Sabemos pouco sobre ela, exceto que ela pode destruir nossa civilização. Devemos dar um basta à implementação irresponsável de ferramentas de IA na esfera pública e regular a IA antes que ela nos regule. E a primeira regulamentação que eu sugiro é tornar obrigatório que uma IA se declare publicamente como uma IA. Se estou tendo uma conversação com alguém e não sei se esse alguém é humano ou uma IA, é o fim da democracia.

Este texto foi gerado por um ser humano.

Ou não ?

28 de abril de 2023

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Yuval Noah Harari é historiador, filósofo e autor de Sapiens, Homo Deus e da série infantil Unstopable Us. É conferencista no departamento de história da Universidade Hebraica de Jerusalém e co-fundador da Sapienship, uma empresa de impacto social.