O fim do trabalho (i): a capilarização do espírito humano no tecido social

Por força do ofício, a saber, ao organizar conteúdo para uma nova disciplina acadêmica pela qual me deixei atrair por causa de sua vasta liberdade temática, penso cada vez mais sobre a já tão difundida profecia de que, num futuro não muito distante, a maioria das profissões conhecidas, senão sua totalidade, estará extinta.

Não é de hoje que o ser humano se autodefine pelo trabalho. Profissões hereditárias (vide escritórios de advocacia e outros negócios legados de pais para filhos) já eram comuns em tempos medievais, bem como as corporações de ofício. Numa recente entrevista, o “instinto de trabalhar” chega a ser arrolado por James Suzman como uma das possíveis razões para o fracasso da previsão de Keynes (ca. 1930) de que, em mais ou menos 100 anos, a jornada de trabalho seria de apenas 15 horas semanais. Já em A Sociedade do Cansaço, o filósofo coreano/alemão Byung-chul Han sustenta que já não são mais necessários feitores, capatazes e gerentes a assegurar a produtividade, posto que, hoje, cada um é o próprio algoz de si mesmo. Com a abolição do trabalho como principal meio de afirmação da identidade individual, temos aí um problema.

A extinção das profissões não é uma tendência nova, tendo já atingido, por exemplo, leiteiros e datilógrafos e, em breve, chegará a carteiros, telefonistas ou operadores de caixa. Motoristas também logo se tornarão obsoletos, quando veículos autônomos forem mais uma regra do que uma exceção.

É claro que a mídia mais rasa e sensacionalista não tardou a abraçar a ideia, publicando listas das primeiras profissões que devem desaparecer. Tais matérias se baseiam, por sua vez, num extenso artigo de Oxford, por Carl Benedikt Frey e Michael A. Osborne, repleto de fórmulas matemáticas inacessíveis ao leitor leigo, que é, no entanto, bem menos taxativo. Antes de lançar previsões bombásticas, fala da probabilidade de extinção de cada ocupação conhecida em razão de sua facilidade de automação.

Ainda num segmento editorial mais sério, Harari (que, por sua vez, já foi considerado sensacionalista por gente bem séria) preconiza, em Homo Deus, o fim de todas as profissões exceto a de programador de jogos de realidade virtual, nos quais a humanidade, enquanto não for extinta, deve mergulhar na ausência do trabalho. Na escala de extinção sucessiva das profissões conhecidas, Harari também comenta que a profissão médica será uma das últimas a desaparecer, se restringindo, todavia, pouco a pouco aos pacientes mais abastados, já que planos de saúde cada vez menos poderão arcar, frente a robôs e algoritmos para diagnóstico e tratamento, com os comparativamente elevados custos e risco de erro de médicos humanos. Eu próprio já fui censurado por eminentes colegas de profissão ao difundir a previsão de Iván Fischer, célebre maestro húngaro, de que a orquestra, assim como a conhecemos, i.e., como corpo estável, em ca. 30 anos não mais existirá.

Tais exercícios de futurologia distópica se baseiam, via de regra, em avanços tecnológicos, principalmente aqueles que envolvem graus mais elevados de automação. Outro fator importante, derivado da tecnologia, é a onipresença das redes, que faculta a todos o status de persona pública naquilo que bem entender. Tal condição não tem qualquer precedente histórico, pois, até poucas décadas atrás, todo indivíduo era meramente consumidor ou força de trabalho, lhe sendo permitido, no máximo, interferir (ainda que só estatisticamente) na esfera pública, de tempos em tempos, através do voto.

Dada a saturação textual sobre o fim do trabalho pelo avanço da tecnologia, quero salientar aqui um aspecto menos lembrado da extinção das profissões, que é a assimilação pelo homem comum, em caráter diletante, de atividades outrora relegadas exclusivamente a segmentos profissionais. Significa que, enquanto hoje qualquer um é escritor, músico ou fotógrafo (para citar apenas 3 nichos criativos), resta menos espaço para o exercício profissional destas atividades. Para que publicar, a elevados custos, textos de alguém quando qualquer um se autopublica ? Para que produzir, a elevados custos, a música de alguém quando qualquer um produz e promove sua própria música ? Por que uma empresa jornalística manteria fotógrafos em sua folha de pagamento ou, ainda, compraria equipamentos caros quando, hoje, qualquer notícia é prontamente documentada com um celular por quem quer que esteja próximo ao evento ?

Chamo a isto capilarização do espírito humano, por se tratar de atividades com certo grau de ambição artística que foram outrora reservadas a poucos privilegiados que ultrapassassem a barreira do imprimatur ou outros filtros editoriais mas que, graças à pulverização dos meios de produção e distribuição, são hoje acessíveis a qualquer um.

É claro que tais atividades continuarão existindo. Sempre haverá novos Cartier-Bressons e Sebastiões Salgado, ainda que, talvez, mais raros. E é bom que seja mais fácil a qualquer um praticar estas e outras artes. Só será bem mais difícil, senão impossível, contar com elas como meio de subsistência. Para tanto, das duas uma: ou o sujeito abraça uma atividade com alguma demanda ou mercado, ou aposta em programas governamentais de renda mínima. Em ambos os casos, é feliz fazendo o que gosta sem precisar se preocupar em viver daquilo.

Essa nova realidade inexorável sempre me remete às cenas iniciais do filme Interestelar (antes de mergulhar no universo metafísico dos portais de espaço/tempo), nas quais um astronauta, i.e, um indivíduo altamente treinado numa das ocupações mais interessantes que alguém poderia imaginar, se dedica a administrar uma fazenda, obviamente automatizada, para a produção de alimentos, estes sim uma necessidade urgente da humanidade.