Mitos literários (i): da superioridade do grande romance

Desde muito cedo (nem lembro quando) acreditei em duas “cláusulas pétreas” sobre as quais julgava que se erguia toda grande literatura. Uma diz respeito à forma, mais precisamente à extensão da mesma, e a outra, ao conteúdo. Hoje as reputo como não mais do que mitos. São eles:

  1. o romance é um formato literário superior aos outros, mais curtos; e
  2. escritores cuja fantasia transcende o relato autobiográfico são melhores do que aqueles que tecem sua obra exclusivamente a partir experiências por eles vividas.

A eles, então.

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O primeiro mito, sobre a superioridade do romance sobre formas mais curtas, esbarra, de saída, no problema de que superlativos, conquanto toda análise comparativa possa deitar alguma luz sobre a singularidade de obras específicas, tendem a obscurecer, num manto de mediocridade, tudo aquilo que é considerado menos elevado. Mas não é só isso.

Para melhor se entender como o grande romance acabou por adquirir seu status de tour de force literário, há que levar em conta determinantes históricos, comerciais e tecnológicos. Tratemos, pois, inicialmente, do aspecto comercial. Até por que fatores históricos e tecnológicos são melhor analisados como uma coisa só.

Devemos tratar a atividade editorial, em que pesem suas nuances, antes de tudo como uma indústria. E para qualquer indústria, o problema da escala de produção é crucial, por que tem implicações diretas no custo. Do seguinte modo. É mais barato produzir, anunciar e distribuir uma quantidade maior de cópias de um número menor de itens. Daí que a industrialização anda de mãos dadas com a padronização.

Mas o último parágrafo pode ter ficado um pouco nebuloso, porquanto teórico e, logo, abstrato. Tratemos, pois, de ilustrar. Pensem numa estante onde caibam uns 30 romanções ou uma centena de volumes menores. Qual preenchimento da estante (com livrões ou livrinhos) terá o menor custo para toda a cadeia produtiva, da gráfica à livraria, passando pela resenha crítica ?

Menos, Augusto, bem menos. É claro que, dentre as nuances, a que aludi acima, de toda indústria denominada “cultural” (é mais honesto chamá-la de “indústria do entretenimento”), possui especial destaque a demanda, por parte de leitores, ouvintes e espectadores (ou, em que pese soe cruel, consumidores) pela maximização da diversidade. Que se traduz em linhas de produção, campanhas publicitárias e estoques mais onerosos. A administração deste conflito entre, de um lado, padronização e escala e, de outro, diversificação é a alma do gerenciamento da indústria [você escolhe: cultural ou do entretenimento]. Para o negócio, é uma questão de vida ou morte.

Parêntesis. Alguns textos curtos, como os de Poe, adquirem vida própria e terminam por conquistar certa autonomia. Foi o que sucedeu com Bartleby, o escrivão, de Herman Mellvile (autor de Moby Dick). O conto, genial, cabe em 44 páginas. Como justificar sua edição autônoma ? A solução encontrada pela Ubu, uma editora de livros bonitos (como a extinta Cosacnaify (o que dá margem à indagação sobre se este modelo de negócio (i.e., a publicação de livros bonitos) é ou não sustentável)) foi a publicação, como antigamente, de um livro costurado, com páginas que devem ser abertas com uma espátula. Um livro fetiche. Do tipo que temos receio de riscar. Certamente o mais caro (R$/nº de páginas) que já comprei.

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A questão histórico-tecnológica. Não vou, aqui, tornar a um tema que já esmiucei bastante em textos anteriores que é a fragmentação progressiva do discurso (que encantaria Bakhtin) desde a palavra impressa que se lia a luz de velas até o que temos em redes sociais e na internet em geral. Ao longo desta evolução (reparem que não utilizo o termo progresso), narrativas mais longas foram dando lugar a formas mais compactas. As quais, por sua vez, passaram a demandar maiores esforços de concisão por parte de quem escreve, tanto para adequar os textos aos meios que habitam quanto à expectativa dos leitores. A própria expectativa da audiência é condicionada pelo meio em que reside o conteúdo.

Mas voltemos, por um instante, ao romanção enquanto absoluto tour de force literário, i.e., no qual o autor eleva a patamares extremos sua maestria em sustentar o interesse do leitor ao longo de narrativas prolixas. Ora, por que razão devo supor que a habilidade e a criatividade de quem tece um relato enorme são de alguma forma superiores às de quem empreende esforços de concisão para acomodar ideias a contextos de publicação de dimensões mais restritas ?

Como se uma sinfonia fosse, necessariamente, uma realização mais significativa do que um lied (canção) tão somente por que ocupa toda a duração de um disco ou quase toda a de um concerto, enquanto lieder costumam ser agrupados para justificar a ida a um recital ou a compra de um produto fonográfico.

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A conspirar contra meu propósito, declarado no kaput, de me debruçar, aqui, sobre dois mitos literários, está o fato deste texto ter já assumido proporções temerárias para um post, suficientes, ao menos, para desencorajar sua leitura na plataforma onde reside. Some-se a isto o fato de, no decorrer da escrita, eu ter me lembrado de um terceiro mito. Querem um spoiler ? Trata-se da noção, já incorporada ao senso comum, de que qualquer texto publicado num meio de broadcasting seja, por isto mesmo, de algum modo superior a coisas escritas para uma circulação (só teoricamente) mais restrita através do narrowcasting. Instigante, não ? Por hora, mais não digo.

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PS: de uns tempos prá cá, adquiri o hábito de minerar no facebook informações visando ampliar a base de conhecimento sobre a qual escrevo. Pois, como não deve ser novidade para quem me lê, falo muito sobre o pouco que sei. Pelos cotovelos. Ainda não achei a razão ideal entre os volumes de escrita e de leitura. Na última consulta, sobre grandes autores que escreveram mais textos curtos do que longos, amigos a quem sou grato me trouxeram a seguinte nominata: Bioy Casares, Isaac Bashevis Singer, Ivan Bunin, Raymond Carver, Luigi Pirandello, Flannery O’Connors, O. Henry, Julio Cortázar, Leonid Andreiev, Lucia Berlin, Milton Ribeiro, Machado de Assis, Juan Rulfo, Ghassan Kanafani, Katherine Mansfield, Alice Munro e Ernest Hemingway. Não é pouca gente. Isto que é apenas uma amostra, i.e., a lista seria bem maior se a consulta permanecesse ativa por mais tempo. O que me leva a concluir, talvez apressadamente mas não sem uma ponta de indisfarçável triunfo, que minha “tese” sobre a valoração exacerbada do romanção em relação ao conto ou à crônica pode ter, afinal, algum fundamento.

Sobre teorias conspiratórias e outros quetais

Meus filhos descobriram a dialética. Gostam de conversar sobre livros que leio. Dia desses, quando, falando sobre O Intelectual (2006), de Steve Fuller, mencionei que, segundo aquele autor, o modus operandi de todo intelectual é formular continuamente teorias conspiratórias, as quais não seriam, a priori, nem boas nem más, fui advertido por um deles a tomar cuidado quando proferisse esse tipo de coisa para não ser confundido com terraplanistas ou antivacs (tive que perguntar a ele o que era um antivac) e, consequentemente, ridicularizado.

Na hora só achei graça (ele está assim depois de ter lido A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), de Thomas Kuhn; também tive, na juventude, meu momento de fascínio pela razão). Aquilo ficou martelando em minha mente. Como a bela expressão teoria da conspiração (tautológica, já que toda teoria é, por definição, conspiratória) assumiu um caráter tão pejorativo ? Será que ela já nasceu assim, como uma categoria capaz de abranger toda formulação estapafúrdia ? Careço de subsídios etimológicos para responder adequadamente. Mas que é intrigante, é. Súbito, me pareceu natural que Fuller procedesse à reabilitação semântica do termo, do mesmo modo como elogiou os sofistas, oponentes de Sócrates, detratados por Platão.

Toda tentativa de explicação de fenômenos naturais e sociais que ocorrem constantemente à nossa volta surge como uma teoria conspiratória. Explicar algo é encadear premissas em silogismos mais complexos. Se as premissas forem falsas é outra história, mas nenhuma teoria surge de outra forma. Então, de pouco importa se tantas formulações, pejorativa e inadequadamente chamadas de conspiratórias, forem ridículas se ao menos algumas delas servirem para termos uma compreensão melhor de qualquer coisa.

A história, por exemplo, é resultado de conspirações validadas pela aceitação ampla. Não me refiro aos fatos, que são, obviamente, verdadeiros ou falsos. Mas toda correlação entre eles é uma narrativa condicionada pelo espírito dos tempos e necessariamente ideológica – de modo que épocas e grupos distintos podem oferecer narrativas radicalmente diferentes sobre os mesmos fatos.

Todo esse relativismo é ruim ? Não acho. Pois é justamente do conflito entre narrativas contrastantes que podemos esperar algum progresso (ou, é preciso admitir, retrocesso) nas relações humanas.

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A correlação espúria. Toda teoria conspiratória original procura estabelecer alguma correlação entre fatos verificáveis até então não percebida. Por vezes, acerta. Em todos os outros casos, temos o que se convencionou chamar de correlação espúria. Um exemplo. Já demonstraram que, toda vez que um filme com Nicholas Cage é lançado, [ocorrem/se evitam] tragédias. É razoável supor que boa parte da pesquisa científica consiste em procurar aleatoriamente correlações para depois descartar as que forem espúrias.

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Em Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas (1974), Robert Pirsig narra uma saga de autoconhecimento ambientada numa viagem de motocicleta que empreendeu com seu filho de 11 anos na garupa pelo oeste norte-americano. A parte chata do livro (acreditem que há), mais linear, descreve seu progresso pela paisagem. Em meio a isto, intercala, com profundas incursões pela filosofia (“a mãe de todas as disciplinas”), a degradação de sua crença no método científico e, como ele mesmo chama, na “Igreja da Razão”.

Numa das melhores partes deste discurso fascinante que entremeia seu relato de viagem, Pirsig se debruça demoradamente sobre a origem das hipóteses, a seu ver o calcanhar de Aquiles do método – já que este, em momento algum, fornece qualquer pista sobre o surgimento das mesmas.

” A formação das hipóteses é a fase mais misteriosa do método científico. De onde elas vêm, ninguém sabe. A pessoa está sentada num lugar qualquer, pensando na vida, e de repente – zás ! – passa a entender uma coisa que não entendia antes. Até ser testada, a hipótese não é verdadeira, mas ela não provém de experiências. Origina-se num outro lugar. Disse Einstein:

O homem tenta elaborar para si mesmo, do modo que melhor lhe pareça, uma descrição simplificada e inteligível do mundo. Depois, tenta até certo ponto substituir o mundo da experiência por esse universo por ele construído, para poder dominar toda a natureza… Ele faz desse universo e de sua construção o centro de sua vida emocional, para encontrar, assim, a paz e a serenidade que não consegue dentro dos limites a ele impostos pelo turbilhão da experiência pessoal. O objetivo último a ser atingido é chegar àquelas leis elementares universais a partir das quais o universo foi construído a partir de pura dedução. Não há um caminho lógico que conduza até essas leis; apenas a intuição, baseada no conhecimento afetivo da experiência, pode conduzir a elas…

Intuição ? Afetividade ? Palavras estranhas para descrever a origem do conhecimento científico. “

Pirsig se diverte relatando ter percebido diversas vezes, no laboratório, que o que pareceria ser a parte mais difícil do trabalho científico era, na verdade, a mais fácil. Que ao testar uma primeira hipótese já lhe vinha a mente um verdadeiro enxame de novas hipóteses, as quais, por sua vez, ao serem testadas, conduziam necessariamente a outras – de tal modo que se multiplicariam indefinidamente se não fossem descartadas após cada teste. Em dado momento, chegou a formular, jocosamente, uma lei segundo a qual “o número de hipóteses racionais que podem explicar qualquer fenômeno dado é infinito”.

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Fuller, em seu livro supracitado, categoriza os entes pensantes em filósofos, cientistas e intelectuais para, então, fazer distinções entre as categorias, tais como Cortázar em Histórias de Cronópios e de Famas (1962). Ainda que Cortázar nunca tenha definido precisamente o que seria um cronópio ou um fama, é improvável que qualquer leitor minimamente sensível não consiga entender ao que ele esteja se referindo ao tipificar, por meio de exemplos, representantes de cada categoria.

Sei que tais categorias não são estanques entre si, podendo um mesmo indivíduo apresentar simultaneamente traços de mais de uma delas. São, ainda assim, bem úteis para fins didáticos. Tal é o caso, por exemplo, dos autores de ficção científica. Sem se preocupar, enquanto intelectuais, com a fundamentação teórica do que dizem, deitam formulações – como o “gelo 9”, de Kurt Vonnegut, em Cama de Gato (1963), a partir de cuja enunciação cientistas lançam mão de todo seu arsenal teórico para validá-las ou, ao invés, refutá-las.

Nesta longa digressão que se assemelha, no máximo, a um esboço, nada melhor para concluir do que a arrebatadora metáfora de Richard Dawkins, guru maior do ateísmo, que compara, em sua obra Deus, um Delírio (2006), a percepção humana ao que se é dado a ver através da estreita janela de uma burka. As frequências de luz visíveis, por exemplo. Nada suspeitamos do que possa ser “iluminado” por radiações inferiores ao infra-vermelho ou superiores ao ultra-violeta. Do mesmo modo, não enxergamos o que é pequeno demais (o átomo) ou grande demais (a “terra plana”), nem o que se move rápido demais (a luz). Então (conclui), temos que recorrer à ciência para desvendar tudo aquilo que se situa além dos limites de nossa percepção.

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PS: tenho enorme curiosidade por conhecer o que Dawkins teria a dizer sobre o ceticismo de Pirsig.