Sobre marcadores e celebridades

Costumo utilizar marcadores (bookmarks, em inglês), que são etiquetas com nomes de categorias, para salvar, para referência futura, toda página da internet que, numa leitura cuidadosa ou rápida, se afigure como de algum interesse. Deste modo, acumulei, desde 2009, quando comecei a usar a plataforma de marcadores Delicious, mais de 7000 páginas marcadas.

Dentre minhas categorias mais populosas, se destacam, entre outras, as de music economics, celebrities, album, orchestral crisis e fontes como Norman Lebrecht, The Guardian ou brainpickings. Pensadores da internet como Clay Shirky, Cory Doctorow, Henry Jenkins e Howard Rheingold também mereceram categorias próprias. Numa analogia com o conhecimento acadêmico, podemos, então, afirmar que tais categorias resumem exemplarmente o que, num programa de pós-graduação, seria considerado, respectivamente, como as “linhas de investigação” adotadas por alguém, bem como seu elenco de “gurus”.

Só que, anos atrás, o Delicious foi comprado pelo Yahoo e, desde junho último, numa tremenda puxada de tapete, o site opera em modo read only, tendo perdido, portanto, toda a funcionalidade para armazenar novas páginas. Tiveram ao menos o decoro de manter a coisa no ar por tempo suficiente para que usuários desesperados, como eu, tivessem tempo de migrar com seus dados para outras plataformas. Meu desespero, no caso, não se trata de nenhum eufemismo, posto que todo meu conhecimento adquirido ao longo da última década passou a correr o risco de, por não estar mais acessível, se pulverizar.

Foi quando decidi, semanas atrás, empreender uma cruzada em busca tanto de uma nova plataforma com um bom prognóstico de sobrevivência (por que nessas horas sempre confiamos tanto no Google ?) como de um meio prático para executar a migração. Pois 7000+ páginas não é pouca coisa. O Delicious tentou facilitar a tarefa, disponibilizando uma ferramenta para gravar um arquivo HTML que pudesse ser importado por seus concorrentes. De pouco adiantou, entretanto, pois os aplicativos de migração davam pau (como eu disse, 7000+ é uma quantidade atipicamente grande) em meio à operação de importação.

O que me fez sair atrás de um editor de HTML para fracionar o arquivo em partes menores, mais manejáveis pelo algoritmo de importação do Google Bookmarks, meu novo hospedeiro de marcadores. Não sem antes, no entanto, promover uma faxina nas páginas hospedadas no Delicious, no intuito de reduzir significativamente seu número. Em vão, pois só logrei eliminar ca. 1000 páginas. É sobre o que constatei neste processo que falarei daqui em diante.

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Antes, porém, de examinar mais de perto os links eliminados, algumas palavras sobre por que me tornei tão obcecado por marcadores. Tem a ver, principalmente, com a velocidade do feed nas redes sociais e, ao mesmo tempo, a necessidade de aglutinar notícias, fatos ou descobertas descontínuos no tempo e isolados por tudo aquilo que acontece entre eles em categorias, definidas por um mesmo headline, capazes de alguma significação mais permanente. Deste modo, tudo aquilo que vem no feed que, de algum modo, reverbera singularmente em nossa mente, entra em ressonância com um conjunto de outros fatos, já coletados ou não, que, embora nada signifiquem isoladamente, podem dizer muito se considerados em conjunto.

O hábito de salvar marcadores se torna, assim, extremamente útil quando da recuperação de referências para pesquisa ou citação. Pensem, se quiserem, por analogia, naquela profusão de papeizinhos com notas afixados às páginas de documentos impressos levantados e perscrutados na fase de revisão bibliográfica de qualquer tese acadêmica. Pois os marcadores virtuais vieram para render essas etiquetas obsoletas, tanto pela facilidade de recuperação de informações como pela de cruzamento entre as mesmas.

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Há 24 horas atrás, estava, com lhes disse acima, às voltas com o problema de ter que reduzir drasticamente, para futura exportação, os links que armazenara no Delicious. Nesta situação, um método se afigurava como absolutamente necessário, posto que não teria tempo de examinar cada um dos links antes de decretar sua permanência ou exclusão. De sorte que ataquei, de pronto, aquelas categorias mais numerosas sobre as quais não pretendia mais me concentrar. Curioso como nossos interesse mudam, ainda que só consigamos perceber isto quando distanciados no tempo.

Quando comecei a salvar marcadores em 2009, estava obcecado pela indústria fonográfica, querendo anunciar como um arauto ou profeta uma realidade que, para qualquer observador mais atento, já estava caindo de maduro – a saber, o declínio de certas mídias e formatos e, com eles, da própria indústria. Pois poucas coisas mudaram tanto nas últimas décadas, sob efeito da internet, como o modo como ouvimos música e a forma como ela é produzida e distribuída. Testemunhamos o empoderamento dos autores e o esfacelamento dos impérios do disco, que reinaram absolutos por cerca de 50 anos.

O primeiro conjunto de links salvos que descartei sumariamente foi aquele gerado quando de minha descoberta do compartilhamento gratuito, reunidos sob o sugestivo marcador free music. Foi um enxugamento formidável. Posso afirmar, hoje, que salvei muito mais páginas de blogs e álbuns do que efetivamente cheguei a ouvir. Tempo perdido. Pois não há nada mais fácil do que descobrir, instantaneamente, de onde baixar qualquer coisa que queiramos ouvir. Num dos poucos links que preservei, alguém pontifica que ouvimos muito mais a música que compramos do que aquela que baixamos. Pode ser. Devo ler com atenção.

Procedi, então, às igualmente numerosas categorias celebrities e album, além de fontes especializadas na indústria fonográfica como hypebot e pitchfork. Nesta etapa, excluí centenas de referências a pessoas como Rihana, Milley Cirus, Britney Spears, Katy Perry, Lady Gaga, Kanye West, Will.i.am, Jay-Z, Madonna e afins. Foi quando confirmei algo de que, por muito tempo, sempre suspeitara – a saber, a tremenda redundância verificada entre os factoides exaustivamente divulgados como notícias por estes atores. Tanto que vale a pena uma compilação dos gêneros assumidos pelos mesmos.

Em primeiríssimo lugar, celebridades e seus produtores competem entre si para ver quem emite mais anúncios sobre planos futuros, do tipo “A banda X lançará até o mês Y o primeiro disco depois de Z anos !”. Em seguida, vem as notas de lançamento de cada novo álbum, invariavelmente apregoado como algo inovador. Acompanham estas notas aquelas sobre o sobe e desce de cada artista em vendas de discos, audições em rádio e outras plataformas e visualizações em redes sociais. Como numa bolsa de valores.

São também frequentes os anúncios de colaborações em forma de dobradinha entre um rapper e um cantor ou cantora. Só que nem sempre produtores acertam e, com isto, nos deparamos frequentemente com imbroglios envolvendo desmentidos, insultos e até pedidos de desculpa. Ao fim e ao cabo, de pouco importa se as colaborações se concretizam, já que os encontros e desencontros estão na mídia, a um custo muito mais barato do que o de casamentos e divórcios entre celebridades.

No lado B da indústria do entretenimento, são também muito comuns os cancelamentos de shows e os casos de hostilidade em relação a celebridades, como copos jogados pelo público em Axl Rose ou garrafas d’água em Justin Bieber. E como não há nada para quebrar o marasmo do noticiário upbeat, bombam as notícias sobre cada vez que uma celebridade é flagrada pisando na bola. Como o uso ocasional de cocaína por Lady Gaga, de maconha por um tal de George Michael, a agressão de um fã por Justin Bieber ou, ainda, as 19 tentativas empreendidas por Ozzy Osbourne até obter, finalmente, uma carteira de motorista.

Dentre os grandes micos nacionais, se destacam o fiasco novaiorquino de Ivete Sangalo (episódio que deve ter ensinado muito a produtores nativos sobre o equívoco de se comparar protagonistas de degêneros regionais como aché, tchê, pagode e sertanejo a celebridades pop internacionais) e o imbroglio de Xuxa no twitter (aquele em que culpou Sacha por seus atentados linguísticos).

Outra categoria interessante são os leilões. Como, por exemplo, do piano empregado em gravações dos Beatles ou do vaso sanitário (sic !) usado por John Lennon. Jamais duvidem da devoção de um fã. Acrescente-se à trivia do célebre piano a indignação dos fãs do quarteto de Liverpool com o uso do mesmo por Lady Gaga, como se isto se constituísse numa profanação do icônico instrumento.

Quando a indústria constata a exaustão criativa de seus elencos atuais, se volta invariavelmente a seus acervos históricos. Foi assim que, dentre os links que deletei, encontrei notas bombásticas sobre reedições como, por exemplo, a das primeiras gravações, ainda em mono, de Bob Dylan e até, pasmem, a publicação póstuma de músicas inéditas de Michael Jackson. Neste departamento, a cereja do bolo é, a coleção de “duetos” não consentidos entre Renato Russo, já morto, e terceiros – as quais foram recebidas naturalmente, como um grande achado, longe de se constituírem em algo ligeiramente macabro. E, aproveitando a deixa, passemos a um último tópico – que, compreensivelmente, deverá suscitar certa revolta entre muitos fãs.

De todas as categorias a mais especial é, sem sombra de dúvida, a morte. Pois não há nada mais extraordinário – e, portanto, monetizável – em relação à mesmice produzida por qualquer celebridade pop ao longo de sua carreira do que a própria morte. As luxuosas reedições de gravações, os onerosos ingressos para shows de tributo e os altos valores alcançados em leilões de objetos pessoais de, digamos, um Elvis Presley, Michael Jackson, John Lennon, Kurt Cobain ou Amy Winehouse estão aí para provar que mais vale investir em seus espólios do que em suas obras em vida. Para pelo menos um analista, a morte precoce teria literalmente salvado, senão a carreira, ao menos a obra de Jackson.

Mais: é bem mais interessante para uma celebridade, sob o ponto de vista econômico, ter sua vida interrompida abruptamente, por acidente, assassinato, overdose ou suicídio, no auge de sua capacidade criativa do que por morte natural aos seus 80 anos, já tendo enfrentado o declínio e o esquecimento. É só comparar os obituários de uns com os de outros, que aparecem, respectivamente, em capas e nas últimas páginas – ou, ainda, o tempo relativo que lhes é consagrado pela TV.

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PS: tão logo terminei de escrever este post, lembrei deste, bem mais denso, de Norman Lebrecht (um dos primeiros links salvos em meus marcadores, em 2009), sobre o por que do não surgimento, após suas mortes, de mitos com a força de Elvis Presley e Maria Callas. Prestem atenção na parte em que ele culpa os executivos fonográficos desde os anos 70, que “are not in the market for uninsurable risks”. Melhor citação: “cultural narcolepsy”.