Contra a especialização

Nos últimos dias, exercitei obsessivamente um brevíssimo, porém altamente exposto, solo de clarineta que toquei duas vezes, felizmente sem intercorrências fatídicas (pois tocar é sempre uma loteria: por mais que se esteja preparado, na hora é sempre como chutar a gol: nunca se sabe quando vamos estufar a rede ou lançar a pelota pela linha de fundo ou, no máximo, acertar a trave). Acho, portanto, justificável que, durante esses dias, não tenha dado atenção alguma a este blog, nem tampouco tirado fotos da orquestra em ação – outra atividade à qual me dedico com grande prazer.

Agora, livre temporariamente de responsabilidades musicais, torno com alegria a escrever e fotografar. Admito que este comportamento disperso, com a atenção fragmentada entre atividades díspares entre si, por maior que seja minha afinidade com cada uma delas, é totalmente contrário ao cânone da boa conduta profissional dominante em nossa sociedade. Contextos altamente competitivos, acirrados pela ideia do mercado como medida ideal de todo esforço humano, impelem indivíduos a se dedicarem ao máximo – e, portanto, exclusivamente – a qualquer coisa na qual queiram ter sua competência reconhecida.  É a cultura da especialização como via única para a otimização da eficiência e consequente maximização do crescimento e do lucro.

Vivemos num mundo de especialistas e, pior, tendemos a confiar mais, para a realização de qualquer tarefa, em quem a ela se dedique exclusivamente. O capitalismo espera que ninguém perca tempo com qualquer coisa que não seja aquilo que saiba fazer melhor. Assim, por exemplo, músicos que queiram triunfar neste ambiente devem praticar o máximo que puderem, abrindo mão de quaisquer outras paixões, tais como o cultivo de plantas, a culinária, a fotografia, a escrita ou outras “dispersões”.

Não há dúvida que a especialização exacerbada é benéfica para o mundo corporativo. Nele, empreendimentos resistem ou declinam em razão de superarem outras iniciativas com as quais competem. Nesta arena, o trabalho de indivíduos mais dedicados ou especializados costuma ser determinante.

Mas tal estado de coisas é, afinal, bom para o ser humano ? O que é melhor: uma vida de dedicação a algo no que se possua notória excelência; ou, ao contrário, uma existência voltada para um conjunto de atividades nas quais se obtenha mais gratificação ?

É aí que economistas, políticos e gestores de um lado e psicólogos, antropólogos e afins de outro divergem. Não resta dúvida de que a especialização incensada por lideranças nos últimos quinhentos anos produziu e continua produzindo um crescimento sem precedentes na história humana. É cada vez maior, no entanto, o grupo de estudiosos a sustentar que caçadores-coletores pré-históricos, que não viam necessidade de produzir mais do que o necessário para a própria subsistência e podiam, com isto, se dedicar mais a atividades lúdicas, eram mais felizes.

Esta última afirmação é polêmica, principalmente por que a cultura capitalista, por meio da mola mestra da publicidade, já naturalizou, entre os segmentos incluídos, a noção que a felicidade está intrinsecamente associada ao consumo e ao acúmulo de bens materiais (caçadores-coletores não acumulavam – até por que isto não fazia, para eles, sentido algum).

Quem acompanha este blog sabe que venho me dedicando, nos últimos meses, a traduzir e difundir artigos publicados em Evonomics que procuram desmistificar a ideia de que a exacerbação do trabalho e a especialização crescente constituam uma espécie de virtude, sendo até parte da natureza humana (esta última um arcabouço semântico do qual muitas ideologias, econômicas e religiosas, buscam tirar proveito). Uma antologia destes textos pode ser lida aqui, aqui, aqui e aqui.

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É preciso uma boa dose de coragem para se interpor ao cânone da especialização que faz com que a maioria se dobre à escravidão de uma ocupação única. Por isto, não canso de enaltecer a juventude de espírito de um amigo que, aos 50 anos, abandonou uma carreira consolidada como profissional de informática para se tornar jornalista e, aos 60, virou livreiro.

Também refleti muito sobre a preocupação de uma amiga de que seu filho visse o êxito num concurso público como panaceia para tudo em sua vida. Restrições à ideia de que uma vida de dedicação ao estado e, em última instância, ao povo são comuns entre os que conhecem o serviço público por dentro, com todos os seus vícios e limitações. Por outro lado, não deixo de ser simpático à noção de que empregos públicos, que garantem alguma estabilidade sem a ameaça de demissão iminente ao menor desvio do máximo de produtividade exigido pelo mercado, são benéficos à plenitude existencial do ser humano – que, desde que não se descuide de suas responsabilidades mínimas, pode “respirar” e se dedicar melhor à matriz de seus interesses, quase nunca restrita a uma única atividade.

De resto, vale lembrar que o homem universal de Leonardo da Vinci não teria, hoje, a menor vez.

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Depois de haver escrito o post acima, me dei conta de que a pirâmide acadêmica, com seus progressivos níveis de pós-graduação, é co-responsável (juntamente com o mercado) pela manutenção do mito que atribui maior importância a alguém quanto maior seja o estreitamento do foco sobre seu objeto de interesse. Neste cenário, agências de fomento governamentais incentivam o estudo de temas cada vez mais restritos e específicos, como se a proximidade do olhar fosse por si só capaz de melhor revelar a verdade.

 

De espectadores a participantes (ii): mais sobre o fim da genialidade

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No último post de 2015, tergiversei sobre o fim da genialidade. Ali, sustentei que, historicamente, todo gênio é imediatamente reconhecido por seus contemporâneos. Minha generalização foi tão apressada quanto desastrosa, como muito bem apontou Andrei (por favor se apresente melhor !) no seguinte comentário, a propósito dos gênios postumamente reconhecidos:

“É inerente à noção de genialidade o fato de que ela é prontamente reconhecida em todo gênio por seus contemporâneos.”

Na realidade diversos gênios foram reconhecidos apenas postumamente, vide Bach, Poe, Kafka e tanto outros.

Face ao mesmo, me vi forçado a reformular o argumento para

dada a pluralidade exacerbada de enunciações (artísticas ou científicas) facultada pelos meios de divulgação atuais, é hoje praticamente impossível distinguir o gênio dentre seus contemporâneos – cabendo, portanto, tal tarefa exclusivamente à posteridade.

Premissa que leva, de imediato, à indagação sobre quem será reconhecido, no futuro, como gênio de nossa época.

Uma ótima metáfora para nosso tempo é o ruído branco, a saber, aquele som, semelhante a um chiado, resultante da soma de todos os sons possíveis, no qual se tornam indistinguíveis quaisquer sons “puros” componentes do ruído resultante. Se, sob o domínio dos broadcasting media (aí incluído o “mercado” editorial), a reprodução maciça de enunciados era um privilégio de poucos, é hoje impossível a qualquer inteligência, humana ou artificial, mapear a totalidade de falas que habitam concomitantemente o espaço virtual. Ao menos antes da realização da web semântica perseguida por Lévy.

Por isto, não creio que a identificação dos gênios de hoje seja meramente um problema de julgamento histórico. Sustento, ao contrário, que a genialidade, como elevação do espírito de poucos indivíduos em relação à grande maioria dos de seu tempo, pode, sim, se encontrar em processo de extinção. Para melhor entender como isto ocorreria, é útil nos debruçarmos sobre o mito do homem universal.

Olhando de perto a biografia de tantos gênios, notamos que, frequentemente, sua área de curiosidade transcende os limites de uma única disciplina, transitando, por vezes, até entre os domínios da ciência e da arte. Como o artista e inventor Leonardo da Vinci, o escritor e fotógrafo Lewis Carroll ou o físico e músico Albert Einstein. Até na literatura a amplitude de excelência comparece, mais emblematicamente na figura de um Sherlock Holmes. De pouco importa se Einstein tocasse bem ou mal o violino; se as fotos de Carroll fossem motivadas por uma paixão clandestina que hoje seria vista como franca pedofilia; ou, ainda, se a inquietude de espírito de Holmes pudesse ser atribuída ao vício, hoje proibido, em cocaína. O que tais biografias, reais ou ficcionais, sugerem é que, para as mentes mais agudas, é por vezes difícil se restringir àquilo que convencionamos chamar de ofício. Algo de que a maioria costuma se ocupar por toda a vida e de que deriva o próprio sustento, sem ter tempo para se dedicar mais seriamente (ao menos perante os outros) a qualquer outra atividade. Pois reza o senso comum que, além da profissão (que, até poucos séculos atrás, já foi hereditária), todo foco de interesse restante seja reconhecido, quando muito, como um hobby (mas deixemos de lado, por hora, o fim das profissões – tema complexo a merecer um texto totalmente a ele dedicado).

Por muito tempo, o mito do homem universal enquanto excelente em várias ocupações, idealmente realizado em da Vinci, foi tido como uma exceção numa civilização na qual todo indivíduo não tinha outra possibilidade a não ser optar, por força da competição, por algo no que se especializar. Acreditamos que tal estado de coisas esteja profundamente enraizado em determinantes econômicos. Mas isto não nos interessa tanto.

Interessa, sim, deter o olhar sobre fatores tecnológicos que fizeram com que o mito do homem universal, antes apenas pouquíssimos entre muitos, se tornasse, hoje, muito mais a regra do que a exceção. Interessa, também, notar que

como os limiares para que algo fosse reconhecido como arte se alteraram em contextos mais recentes; e que

como o conhecimento e o imaginário deixaram de ser propriedade de umas poucas mentes para se tornarem objetos compartilhados por inteligências coletivas, ou líquidas.

A arte sempre foi definida e categorizada por técnicas específicas – sendo, portanto, sua tipologia determinada não pelo conteúdo mas, invariavelmente, pela técnica utilizada pelo artista. Deste modo, temos, como grandes categorias, o desenho, a pintura, a escultura, a literatura, o teatro, a fotografia ou a música, entre outras, ficando dicotomias como figurativo/abstrato ou tonal/atonal (associadas ao conteúdo), por exemplo, como classificações secundárias.

Ora, até pouco tempo atrás (mais precisamente até os grandes avanços tecnológicos da segunda metade do século 20) toda técnica devia ser longamente praticada até a obtenção de um domínio razoável a ponto de ser exercido para a criação de obras mais perenes. Por isso, é razoável dizer que as tecnologias computacionais vieram no sentido de facilitar toda e qualquer atividade, facultando, com isto, pela primeira vez, a figura do artista de pronta entrega. Ou alguém seria capaz de dizer que a fotografia com filmes é tão fácil como a digital ? Ou que o projeto arquitetônico era de domínio tão simples antes do CAD ? Ou que fazer um filme antes era tão fácil como fazer um video agora ? Ou, ainda, que era tão fácil escrever antes da recursividade dos editores de texto ?

Mencionei, no post anterior, o fato de vivermos numa era de autoria quase universal. Para que tal condição, facultada por novos meios, existisse, foi necessária uma redução dos patamares antes associados à estatura artística. Da sinfonia ao rap, do grande romance ao tweet ou do óleo ao rabisco, o que vemos em todas as áreas é o encurtamento das formas, a simplificação da complexidade e a legitimização da colagem. Isto não é bom nem ruim mas, simplesmente, uma etapa evolutiva. Fruto, provavelmente, da fragmentação de todo discurso entre múltiplos autores. O que nos permite especular sobre o retorno, talvez, num futuro não muito distante, das grandes formas.

O que quero dizer com isto é que, se antes, por força do tempo necessário ao ao domínio técnico de qualquer arte ou ofício, o mito do homem universal era um privilégio de poucos, hoje, dada a universalização de acesso aos meios, a condição de homem criativo plural se encontra ao alcance de todos. Então, num mundo em que qualquer um pode escrever e publicar, todo portador de um smarphone é um fotógrafo em potencial e um sampler faz de qualquer um um músico, penso, sim, que é bem menos provável do que antes a emergência de sujeitos que venham a ser reconhecidos, por contemporâneos ou pela posteridade, como intelectos privilegiados de nossa época.

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Sempre me agradou bastante a formulação do Parêntesis de Gutenberg, à qual já aludi por diversas vezes, que preconiza o fim da escrita. Mesmo que a previsão esteja errada (oxalá !), a ideia (de um intervalo histórico) não deixa de ser interessante. A ponto de poder ser facilmente transposta para outras coisas. De tal modo que gosto de pensar que, num futuro melhor, poderemos não ter mais a publicidade, os broadcasting media, as profissões, a representação política e toda centralização (verticalização) administrativa, pública e privada, dentre tantas outras coisas que já se encontram naturalizadas como necessárias e inerentes ao funcionamento da sociedade. Daí a magnitude da tarefa de como imaginar um mundo sem elas. Mais horizontal. Por essas e outras, teimo em manter este blog.