Mitos literários (ii): da superioridade dos relatos fantasiosos sobre aqueles baseados em fatos reais, autobiográficos ou não

Desde muito cedo me acostumei com a ideia de que só se conhece um grande escritor a partir de seu segundo livro, depois que transcende o relato autobiográfico. Noves fora o fato de um autor poder muito bem criar histórias a partir da própria fantasia antes de cometer seu primeiro texto confessional, entendo hoje que tal crença não passa de um mito. Noutras palavras: a qualidade de um texto não depende de sua inspiração ter saído da fantasia do autor ou de sua própria experiência pessoal ou de outros fatos reais.

Ao pensar em obras magistrais baseadas em experiências pessoais de seus autores, me veio imediatamente à mente os contos de Lucia Berlin, publicados postumamente, ou os 6 volumes (apenas 4 deles traduzidos para o português) da saga A Minha Luta, de Karl Ove Knausgard. Outros textos aportados como autobiográficos por Maria de Abreu, Luciana Etchegaray e Marcelo Borba, são, respectivamente, O Idiota, de Fiódor Dostoiévski, Memorial de Aires, de Machado de Assis, e Ecce Homo, de Friedrich Nietzsche.

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É claro que as duas categorias (fantasia X realidade (autobiográfica ou não)) não são mutuamente excludentes, i.e., provavelmente na maioria dos casos o texto resultante é um amálgama de criações fantasiosas mescladas com pitacos de experiência pessoal do autor ou de outrem.

A componente real de cada obra de ficção é, no entanto, geralmente difícil de ser identificada, posto que advinda de episódios da vida privada de cada autor ou de terceiros nem sempre explicitados em biografias de domínio público. Até por isto, constituem uma espécie de eixo temático preferencial em textos críticos especulativos. Ou seja, são objeto favorito de teses e resenhas.

São comuns, por exemplo, histórias que partem de fabulações sobre a vida e/ou a obra de personalidades históricas. De certo modo como os docudramas e algumas cinebiografias mais licenciosas. Há, nesta categoria, uma obra prima que se ergue sobre a maioria das outras: Doutor Fausto, de Thomas Mann, cuja trama alude a inovações musicais introduzidas por Arnold Schoenberg. Só que o livro é, sob muitos aspectos, maior do que o argumento de partida que Mann tomou emprestado. Bem maior. Pertence ainda a esta região híbrida, entre a realidade e a ficção, a novela O Ruído do Tempo, de Julian Barnes, inspirada na vida de Shostakovich.

Interessantíssimo, também, o experimento literário A Literatura Nazista na América, de Roberto Bolaño. Nele, o autor cria um relato totalmente fictício emulando o estilo de uma obra de não ficção, a saber, uma antologia de biografias, só que de personagens totalmente imaginários. Uma obra singular que tenta, de algum modo, borrar, ainda que artisticamente, a outrossim rígida fronteira entre as categorias mutuamente excludentes da ficção e da não ficção.

Tão bom é o exercício estilístico de Bolaño, supracitado, que um leitor desavisado bem poderia “arquivá-lo” numa estante junto a obras de não ficção. Aqui me assola um pensamento aleatório, descomprometido, passível de desenvolvimento posterior: já se deram conta de como o ato de posicionar um livro numa coleção equivale, de certa forma, a domesticá-lo ? Fecha parêntesis.

A possibilidade, a que aludo no parágrafo anterior, de que uma obra seja inadvertidamente classificada junto a outras que não tenham nada a ver com seu teor me traz de imediato à memória um fato divertido, ao qual devo meu primeiro contato sério, porquanto primário, com a obra de Richard Dawkins, guru mor dos ateus. Estava eu fazendo hora num shopping quando avistei, na vitrine de uma livraria religiosa, o livro Deus, um Delírio, de Dawkins, de quem, até então, somente tinha ouvido falar. Ora, era evidente que a obra estava ali por acidente, pois era totalmente alienígena em relação ao restante do acervo da livraria. Provavelmente, o livreiro, induzido pela ambiguidade do título (lembram da igreja Brasas – louvor e adoração ?), o tomara por um texto apologético. É claro que resgatei imediatamente o pobre volume daquele contexto hostil à sua essência, o comprando e devorando em tempo recorde. Os argumentos de Dawkins são avassaladores. Mas já estou falando de não ficção. Melhor deixar para depois. Fecha outro parêntesis.

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Este é um mito complicado de ser reconhecido, principalmente por que as narrativas oriundas da fantasia de seus autores (total ou parcialmente, como vimos acima) são mais numerosas do que as predominantemente autobiográficas ou inspiradas por fatos reais. Muito mais. Passando os olhos pelas lombadas dos livros na estante, há mais obras de ficção criadas a partir da fantasia de seus autores do que derivadas de suas experiências pessoais ou de outrem. Vários fatores contribuem para este estado de coisas.

Inicialmente, o fato de que toda escrita profissional, enquanto atividade que se estende por grande parte da vida de um autor, por vezes durante toda ela, implica numa produção continuada. Ora, isto é incompatível com a utilização sistemática e exclusiva de experiências vividas como ponto de partida – por que, afinal, biografia, por mais rica que seja, cada um só tem uma. Face a este impasse, a fantasia se constitui como um recurso inesgotável e, portanto, irresistível.

Contribui também para a hegemonia esmagadora de histórias fantasiosas, total ou predominantemente, o fato de ser impossível a qualquer autor se referir a coisas como, por exemplo, pessoas que voam, animais que falam ou consciência pós morte sem recorrer à imaginação.

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Há um gênero de ficção exclusivamente composto de narrativas fantásticas, a saber, a ficção científica, com todos os seus subgêneros (obrigado, Nikellen: sem você eu jamais saberia que existe algo chamado steampunk !).

A dicotomia entre o real e o imaginário (categorias, como vimos, por vezes superpostas) não se aplica, evidentemente, à literatura de não ficção, exclusivamente devotada ao universo experimental. Senão, estaria incorrendo, voluntariamente ou não, num certo tipo de falsidade ideológica. Como frequentemente ocorre em textos proselitistas tais como, por exemplo, os publicitários e panfletários.

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Falando assim, pode parecer que eu não reconheça valor em narrativas exclusiva ou predominantemente advindas da imaginação. Longe disso. A fantasia sempre foi, é e sempre será um valioso recurso disponível para escritores tecerem suas histórias. O que se torna problemático é quando a imaginação por si só se torna um indicador de qualidade literária valorizado de forma exacerbada, muito mais do que outros igualmente importantes. O mito a que me refiro é, portanto, o de que histórias baseadas primordialmente em dados de realidade, sejam elas derivadas da própria experiência pessoal de seus autores ou não, são, por definição, inferiores àquelas onde a fantasia corre solta. Noutras palavras, o que quero dizer é que importa menos se os ingredientes são reais ou fantásticos do que, propriamente, aquilo que um autor faz com eles.

Mitos literários (i): da superioridade do grande romance

Desde muito cedo (nem lembro quando) acreditei em duas “cláusulas pétreas” sobre as quais julgava que se erguia toda grande literatura. Uma diz respeito à forma, mais precisamente à extensão da mesma, e a outra, ao conteúdo. Hoje as reputo como não mais do que mitos. São eles:

  1. o romance é um formato literário superior aos outros, mais curtos; e
  2. escritores cuja fantasia transcende o relato autobiográfico são melhores do que aqueles que tecem sua obra exclusivamente a partir experiências por eles vividas.

A eles, então.

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O primeiro mito, sobre a superioridade do romance sobre formas mais curtas, esbarra, de saída, no problema de que superlativos, conquanto toda análise comparativa possa deitar alguma luz sobre a singularidade de obras específicas, tendem a obscurecer, num manto de mediocridade, tudo aquilo que é considerado menos elevado. Mas não é só isso.

Para melhor se entender como o grande romance acabou por adquirir seu status de tour de force literário, há que levar em conta determinantes históricos, comerciais e tecnológicos. Tratemos, pois, inicialmente, do aspecto comercial. Até por que fatores históricos e tecnológicos são melhor analisados como uma coisa só.

Devemos tratar a atividade editorial, em que pesem suas nuances, antes de tudo como uma indústria. E para qualquer indústria, o problema da escala de produção é crucial, por que tem implicações diretas no custo. Do seguinte modo. É mais barato produzir, anunciar e distribuir uma quantidade maior de cópias de um número menor de itens. Daí que a industrialização anda de mãos dadas com a padronização.

Mas o último parágrafo pode ter ficado um pouco nebuloso, porquanto teórico e, logo, abstrato. Tratemos, pois, de ilustrar. Pensem numa estante onde caibam uns 30 romanções ou uma centena de volumes menores. Qual preenchimento da estante (com livrões ou livrinhos) terá o menor custo para toda a cadeia produtiva, da gráfica à livraria, passando pela resenha crítica ?

Menos, Augusto, bem menos. É claro que, dentre as nuances, a que aludi acima, de toda indústria denominada “cultural” (é mais honesto chamá-la de “indústria do entretenimento”), possui especial destaque a demanda, por parte de leitores, ouvintes e espectadores (ou, em que pese soe cruel, consumidores) pela maximização da diversidade. Que se traduz em linhas de produção, campanhas publicitárias e estoques mais onerosos. A administração deste conflito entre, de um lado, padronização e escala e, de outro, diversificação é a alma do gerenciamento da indústria [você escolhe: cultural ou do entretenimento]. Para o negócio, é uma questão de vida ou morte.

Parêntesis. Alguns textos curtos, como os de Poe, adquirem vida própria e terminam por conquistar certa autonomia. Foi o que sucedeu com Bartleby, o escrivão, de Herman Mellvile (autor de Moby Dick). O conto, genial, cabe em 44 páginas. Como justificar sua edição autônoma ? A solução encontrada pela Ubu, uma editora de livros bonitos (como a extinta Cosacnaify (o que dá margem à indagação sobre se este modelo de negócio (i.e., a publicação de livros bonitos) é ou não sustentável)) foi a publicação, como antigamente, de um livro costurado, com páginas que devem ser abertas com uma espátula. Um livro fetiche. Do tipo que temos receio de riscar. Certamente o mais caro (R$/nº de páginas) que já comprei.

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A questão histórico-tecnológica. Não vou, aqui, tornar a um tema que já esmiucei bastante em textos anteriores que é a fragmentação progressiva do discurso (que encantaria Bakhtin) desde a palavra impressa que se lia a luz de velas até o que temos em redes sociais e na internet em geral. Ao longo desta evolução (reparem que não utilizo o termo progresso), narrativas mais longas foram dando lugar a formas mais compactas. As quais, por sua vez, passaram a demandar maiores esforços de concisão por parte de quem escreve, tanto para adequar os textos aos meios que habitam quanto à expectativa dos leitores. A própria expectativa da audiência é condicionada pelo meio em que reside o conteúdo.

Mas voltemos, por um instante, ao romanção enquanto absoluto tour de force literário, i.e., no qual o autor eleva a patamares extremos sua maestria em sustentar o interesse do leitor ao longo de narrativas prolixas. Ora, por que razão devo supor que a habilidade e a criatividade de quem tece um relato enorme são de alguma forma superiores às de quem empreende esforços de concisão para acomodar ideias a contextos de publicação de dimensões mais restritas ?

Como se uma sinfonia fosse, necessariamente, uma realização mais significativa do que um lied (canção) tão somente por que ocupa toda a duração de um disco ou quase toda a de um concerto, enquanto lieder costumam ser agrupados para justificar a ida a um recital ou a compra de um produto fonográfico.

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A conspirar contra meu propósito, declarado no kaput, de me debruçar, aqui, sobre dois mitos literários, está o fato deste texto ter já assumido proporções temerárias para um post, suficientes, ao menos, para desencorajar sua leitura na plataforma onde reside. Some-se a isto o fato de, no decorrer da escrita, eu ter me lembrado de um terceiro mito. Querem um spoiler ? Trata-se da noção, já incorporada ao senso comum, de que qualquer texto publicado num meio de broadcasting seja, por isto mesmo, de algum modo superior a coisas escritas para uma circulação (só teoricamente) mais restrita através do narrowcasting. Instigante, não ? Por hora, mais não digo.

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PS: de uns tempos prá cá, adquiri o hábito de minerar no facebook informações visando ampliar a base de conhecimento sobre a qual escrevo. Pois, como não deve ser novidade para quem me lê, falo muito sobre o pouco que sei. Pelos cotovelos. Ainda não achei a razão ideal entre os volumes de escrita e de leitura. Na última consulta, sobre grandes autores que escreveram mais textos curtos do que longos, amigos a quem sou grato me trouxeram a seguinte nominata: Bioy Casares, Isaac Bashevis Singer, Ivan Bunin, Raymond Carver, Luigi Pirandello, Flannery O’Connors, O. Henry, Julio Cortázar, Leonid Andreiev, Lucia Berlin, Milton Ribeiro, Machado de Assis, Juan Rulfo, Ghassan Kanafani, Katherine Mansfield, Alice Munro e Ernest Hemingway. Não é pouca gente. Isto que é apenas uma amostra, i.e., a lista seria bem maior se a consulta permanecesse ativa por mais tempo. O que me leva a concluir, talvez apressadamente mas não sem uma ponta de indisfarçável triunfo, que minha “tese” sobre a valoração exacerbada do romanção em relação ao conto ou à crônica pode ter, afinal, algum fundamento.