Celebridades

Disclaimer: se você espera deste post alguma novidade ou revelação bombástica, fuja dele como o diabo da cruz. Se, no entanto, anda atrás de subsídio para reflexão sobre uma realidade hegemônica na qual nossa cultura, queiramos ou não, está imersa, seja muito bem-vindo a estas linhas.

Havia escolhido o atrativo título Por que odeio celebridades, do qual logo desisti, por pelo menos dois motivos: por que estaria 1) de certa forma, traindo o espírito do texto, que é justamente o repúdio deliberado à busca desenfreada pela maximização da audiência (clicks & likes) e 2) ao mesmo tempo, faltando com a verdade na medida em que não odeio celebridades mas, antes, as acho profundamente intrigantes; mais exatamente, pela alta importância que exercem em todos os aspectos da vida contemporânea. Um dos principais pilares de nossa civilização, eu diria.

Pensei, então, em Celebridades, uma teoria – que logo descartei por parecer demasiado presunçoso e também por que a ideia pertence ao grande David Graeber. Daí que ficou só Celebridades mesmo.

Há anos coleciono notícias sobre celebridades pensando em, num futuro vagamente distante, vir a escrever algo que preste sobre as mesmas. Não que já me sinta pronto ou à altura da tarefa. Ao contrário, desisti de chegar a qualquer conclusão importante. Vultos amplamente conhecidos da música, da moda, do esporte e afins não fazem mais do que preencher o imenso vazio do noticiário cotidiano. Não há, aqui, como não lembrar do experimento proposto por Domenico di Masi que consiste em se abster voluntariamente de acompanhar o noticiário tão somente para constatar, depois de algum tempo, que ele é sempre o mesmo.

Quando, há muito tempo atrás, comecei a colecionar notícias sobre famosos, saudei com entusiasmo a descoberta de marcadores que permitiam, com um click, salvar para referência futura páginas de internet visitadas, associadas a etiquetas (tags) que agrupavam vários recortes (como eram chamados no tempo da mídia impressa) sob uma mesma categoria. Sempre fui e ainda sou avesso a ferramentas virtuais pagas e, quando o Delicious (site de marcadores que eu usava) foi comprado pelo Yahoo, passando a ser um serviço oferecido mediante a cobrança de uma assinatura mensal, migrei com minhas já então mais de 7000 páginas marcadas para o Tagpacker, gratuito até hoje.

Entre meus tags mais populosos estão as celebridades e a indústria fonográfica. Marcava coisas como, por exemplo, o vestido de carne de Lady Gaga. Lembro que, naquela época, cheguei a constatar fenômenos repetitivos de pouca importância, tal como a associação num mesmo single, descoberta por algum mago das gravadoras e exaustivamente replicada desde então, da voz de uma cantora com a declamação de um rapper. A indústria da música vivia, então, um momento de grande incerteza, tendo que pular fora do barco da comercialização de mídias físicas, que naufragava, para se adaptar à nova realidade do streaming e das redes sociais.

Recentemente, me decepcionei com os marcadores ao buscar, em vão, uma página que, quando conheci, atraiu muito minha atenção – a saber, um texto brilhante de Norman Lebrecht explicando a permanência de mitos como Elvis Presley e Maria Callas numa era de sucessos fugazes. Inútil. A página tinha saído do ar, meu marcador apontando somente para um frustrante page not found. Menos mal que ainda me lembro da tese defendida por Lebrecht.

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Tecnicamente, podemos definir uma celebridade como uma pessoa que conhecemos sem que sejamos por ela conhecidos. Tal conceito, ainda que correto, permanece numericamente vago. Tratemos, pois, de quantificar. Na era dos mainstream media (jornais, revistas, rádio e TV) ser célebre significava ser conhecido por milhões de pessoas. Com a democratização (apregoada mas não totalmente entregue) trazida pela internet, este limiar caiu para alguns milhares. Para sermos exatos, 5000 é o número cabalístico em relação ao qual o facebook define se as pessoas às quais nos relacionamos são amigos ou seguidores. Quem é conectado a mais de 5000 pessoas (ou perfis) é considerado uma celebridade, dono de uma fan page com seguidores. Já se tiver menos do que isso, não é uma celebridade, tendo apenas uma página pessoal povoada por amigos. Desconheço as diferenças funcionais do algoritmo do facebook no tratamento de amigos e seguidores.

Curiosamente, o número 5000, utilizado pelo face para distinguir amigos de seguidores, é largamente discrepante daquele geralmente reconhecido por antropólogos como sendo o máximo de indivíduos que alguém pode realmente conhecer a ponto de confiar, que é, pasmem, 150. Se uma plataforma social amplia tão generosamente a quantidade de amigos (não de conhecidos) que alguém pode ter, razões para tanto deve haver – as quais fogem, no entanto, do escopo deste post.

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Celebridades sempre foram reconhecidas como role models. Exceto, é claro, as negativas, como Hitler ou Calígula. As mídias sociais, com sua promessa de democratização não plenamente cumprida mencionada acima, trouxeram um novo tipo de celebridade: o influencer. Ou, se quiserem, um role model de nicho. É a celebridade ao alcance de todos.

Celebridade remunera. Celebridades da mídia hegemônica, bisbilhotadas por milhões, ganham somas generosas para anunciar produtos. O que não quer dizer, é claro, que possam viver só disso, pois, antes de venderem grandes marcas, precisam ter alguma carreira exitosa em alguma área como, por exemplo, fazendo gols ou cantando hits de sucesso. Já o influencer, em sua micro celebridade ensejada pela democratização da web, consegue, no máximo, ganhar os produtos que usa ou ter o consumo franqueado em lugares que frequenta, bastando, para tanto, postar fotos usando os produtos ou frequentando os lugares em redes sociais. É a monetização do selfie.

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Se você chegou até aqui, é provável que, como eu, também considere o estatuto da celebridade supérfluo. Perverso, até. É claro que não falo da fama em decorrência de feitos importantes nas artes, nas ciências, na filosofia ou, vá lá, até na política; mas da celebração daqueles cuja contribuição e, portanto, relevância para o mundo seja totalmente nula. Mas nisto acho que concordamos. A pergunta, então, que não quer calar é: por que celebridades existem, hoje mais do que nunca ? Será por que alguns querem ser célebres ? Não creio. Ou talvez por que o sistema econômico vigente, incluindo a publicidade, precisa delas ? Tampouco. Me inclino a acreditar que é por que precisamos delas. Ou por que, ao menos, a maioria das pessoas precisa.

Por um momento, cheguei a pensar que a cultura da celebridade fosse um fenômeno eminentemente urbano. A partir do princípio de que cidades não existem por causa da conveniência econômica, mas por causa da necessidade da proximidade entre vizinhos – a qual, por sua vez, favoreceria a fofoca, esta sim uma necessidade humana primordial. Em contraste, pensei numa vida bucólica em que acordássemos com as galinhas e fôssemos dormir depois de jantar – como se uma existência pudesse ser preenchida exclusivamente pela manutenção da subsistência e qualquer tempo eventualmente ocioso com, sei lá, meditação. Logo abandonei a ideia, por demais simplista, impossível num mundo globalizado e hegemonicamente conectado.

Sigo, ainda assim, perseguindo a fantasia, praticamente uma utopia, de um mundo sem celebridades. É possível ? Suportaríamos ? Comments welcome.