Nas próximas eleições federais, vote em candidatos que apoiem a renda mínima universal

Devo a inspiração para esta postagem à notícia sobre uma carreata, ocorrida ontem em Caxias do Sul, pela volta às aulas. Por mais absurdo que o pleito me parecesse, o que mais me chocou foi justamente o caráter de naturalidade de que se revestiu o argumento levantado pelos manifestantes (em sua maioria donos de escolas) – a saber, que pais não tinham com quem deixar as crianças ao voltarem ao trabalho. Pois, em que pesem episódios pouco louváveis de consideração pela infância, tais  como guerras, escravidão e trabalho infantil em lavouras e manufaturas, a humanidade sempre manifestou alguma preocupação com o futuro de suas crianças.

Ainda que, no ocidente, as empresas sejam uma criação medieval que, no entanto, só se difundiu no século XVI, a escolarização obrigatória por lei é um fenômeno bem recente, concomitante à revolução industrial, quando ficaram claras para proprietários de meios de produção as vantagens de se agrupar crianças aos cuidados de profissionais de educação para que seus pais, em idade produtiva, pudessem dedicar a maior parte de seu tempo à geração de lucro para empresários.

A quem este arranjo beneficiou ? Aos empresários, certamente, que puderam enriquecer muito mais rápido. Aos empregados ? Há controvérsias.

Em prol da maximização do trabalho, se pode alegar que excedentes de produção típicos do capitalismo (o último carro para os mais ricos; o último celular para os mais pobres) – bem como o progresso tecnológico astuciosamente “colado” por defensores da economia de fusões e aquisições a este estado de coisas – mantém um ciclo de conforto e consumo impensável em tempos anteriores, em que os meios de produção ainda eram dispersos e não otimizados.

Por outro lado, também se pode argumentar que uma vida em que o tempo de cada um não fosse vendido, ainda que sem os supostos benefícios do conforto e do consumo modernos, permitiria mais satisfação e felicidade individual (isto para não se falar em saúde, tanto física como, principalmente, mental). Infelizmente, ainda não temos uma resposta satisfatória e definitiva para este impasse.

E se agregássemos ao leque uma terceira opção, na qual pudéssemos, ao mesmo tempo, abrir mão da maximização neurótica do tempo de trabalho e preservar e tornar universalmente acessíveis comodidades decididamente vantajosas de avanços tecnológicos recentes, tais como a internet, as vacinas e a medicina diagnóstica ? Esta possibilidade jamais foi testada, o que oferece um argumento bem ao gosto dos defensores da economia de mercado (chega até a lembrar uma fala de Olavo de Carvalho, que define como de direita tudo o que já foi experimentado e deu certo e, como de esquerda, ideias que carecem de comprovação empírica (ca. 1:30 a 2:30 do vídeo abaixo)).

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Mesmo se levado em consideração todo o sofrimento que esta peste já causou, está causando e ainda vai causar, é preciso reconhecer que o vírus, ao nivelar a sociedade pela supressão forçada de coisas supérfluas às quais já havíamos nos acostumado, nos oferece uma oportunidade ímpar (é pegar ou largar), ainda que dolorosa, de escolhermos um futuro melhor que, antes da pandemia, já havia sido descartado como improvável ou mesmo impossível com base no popular e já gasto mito da inexorabilidade do mercado.

É um impasse complicado, no qual se encontram entrincheiradas tanto forças progressistas, como o já célebre manifesto holandês pelo decrescimento, como conservadoras, tais como, por exemplo, líderes políticos tentando desesperadamente salvar uma economia que, muito antes da covid-19, já dava inconfundíveis sinais de desgaste. Diga-se também, de passagem, que a pressa, por parte de políticos e empresários, em levantar a quarentena e devolver a economia à normalidade anterior denota, mais do que irresponsabilidade, o temor de que o isolamento prolongado efetivamente leve as pessoas a repensarem suas prioridades. Ou até a pensarem nelas pela primeira vez, posto que muitos de nossos imperativos econômicos não passam de noções apreendidas ou herdadas em nome de interesses minoritários de terceiros.

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Tendo explorado, talvez num excesso que comprometa a concisão, os caminhos laterais acima, torno ao que me pareceu absurdo – tristemente bizarro, até – na manifestação de ontem em Caxias. Se trata precisamente da naturalidade que o trabalho excessivo, dissociativo do tecido familiar e social, acabou assumindo para a maioria das pessoas, a ponto de alguns defenderem sua retomada mesmo ao custo do risco de, com isto, estarem comprometendo a sobrevivência de gerações futuras. Desenhando: preferem arriscar o futuro de seus descendentes do que a permanência do único modo de vida que conseguem imaginar, mesmo que legítimos bullshit jobs.

Pensem num dia típico familiar. Após uma refeição matinal, muitas vezes não simultânea em razão de horários escolares e de trabalho diferenciados, cada membro de uma família se dirige a seus compromissos diários. Poucos se reencontrarão na hora do almoço. À noite, com sorte partilharão da mesma mesa de jantar para, depois, sucumbirem à televisão, às redes sociais ou aos jogos online até que o sono se abata sobre cada um deles. Oportunamente, em datas festivas todos compensarão tais ausências com presentes que, ao fim e ao cabo, servirão mais para engordar os cofres de empresas dedicadas à fabricação e ao comércio de bens de consumo.

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Uma expressão que vem se popularizando, em escritos sobre possíveis cenários pós-pandemia, é a necessidade de se “descolonizar o imaginário”, sob o custo de, se não o fizermos, estarmos simplesmente retornando a uma economia sabidamente falida, que já vinha “em rota de colisão”, cuja continuidade só pode nos levar a conceber futuros distópicos tais como barreiras migratórias, degradação ambiental, guerras por recursos naturais e convulsões sociais.

Sob tal perspectiva sombria, se destaca uma possibilidade, há muito aventada por economistas menos ortodoxos e até mesmo já experimentada – a saber, a renda mínima universal, não por acaso presente na agenda do supracitado manifesto holandês. A ideia de uma renda mínima costuma ser defendida por quem também advoga uma redução drástica das jornadas de trabalho, como aqui e aqui. Para maiores informações sobre a mesma, incluindo sua história, vantagens e implementações experimentais, recomendo um livro excelente, que resenhei aqui.

Quando se fala em renda mínima, geralmente a pergunta que não quer calar é “de onde virão os recursos ?” Da tributação, ora bolas. Não, evidentemente, de uma tributação horizontal, que cobre a todos um dízimo pelos benefícios a serem oferecidos pelo estado, mas de uma mais vertical, que incida mais pesadamente sobre os grandes lucros. É neste tipo de discussão que gosto de lembrar que o banco que está posando de grande benfeitor público – inclusive com direito a publicidade gratuita na televisão em horário nobre – por ter doado 1 bilhão de reais para o combate à crise sanitária desencadeada pelo coronavírus é o mesmo que lucrou 26,5 bilhões apenas no último ano.

Por mais incrível que possa parecer, a renda mínima vem despontando como uma bandeira da direita (sic !), mais exatamente como uma forma de estimular o empreendedorismo. Em que pese a possibilidade disto vir a ser verdade, a parte da humanidade que advoga uma restauração do equilíbrio na vida humana e no meio ambiente deve saudá-la como a grande mediadora do fim da exacerbação do tempo e do valor do trabalho, bem como do preenchimento deste tempo, uma vez disponível, com atividades mais edificantes, do ponto de vista do crescimento individual, do que a replicação, por toda uma vida, de tarefas repetitivas dentro de uma linha de produção. Falo, é claro, principalmente das artes, que já floresciam muito antes da revolução industrial.

A maior de todas as virtudes da renda mínima parece ser o fato de que, por meio da garantia de sobrevivência independentemente do trabalho, possibilitará a todos a descoberta de que a qualidade de vida não é (ao contrário do que comumente propalado), necessariamente, uma função direta da quantidade de trabalho – i.e., que não é verdade que “quanto mais se trabalha, melhor se vive”. Pois a desmistificação desse valor exacerbado do trabalho, bem como do mito do crescimento ilimitado, se constituem nas mais temidas verdades inconvenientes para o neoliberalismo ou, em última análise, nas únicas capazes (oxalá !) de fazê-lo ruir.

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Rutger Bregman, também conhecido como Senhor Renda Mínima Universal

 

Por que, tanto em jogos de azar como no capitalismo, a banca sempre vence

Conforme demonstra Yuval Noah Harari em Homo Deus, o espírito dos tempos está impregnado nos jogos mais populares de cada época. Consoante a isto, assim como o xadrez encerra uma ideia de finitude de recursos (sempre se termina com menos peças do que se começa) que prevaleceu até a Idade Média, jogos contemporâneos como Minecraft e Civilização obedecem a um pressuposto fundamental de crescimento ilimitado – que se confunde, por sua vez, com a própria definição do capitalismo. Já tratei disto aqui.

Neste post, examinaremos como premissas facilmente refutáveis do capitalismo também se fazem presentes em outros jogos bem populares em nossa época – a saber, a roleta e o jogo de tabuleiro War. Antes, porém, devemos identificar vetores genéricos que atuam em partidas de cada jogo, bem como no que um jogo difere de um esporte. Comecemos por esta última distinção.

Em esportes, o que está em jogo é tão somente o enfrentamento de adversários em competências e habilidades específicas. Ganha o que, por uma combinação de preparo e improvisação (a última sempre depende do primeiro), apresentar o melhor desempenho numa partida disputada segundo regras rigorosas previamente acordadas entre os participantes. Em embates esportivos, resultados dificilmente podem ser atribuídos, portanto, à maior ou menor sorte de qualquer uma das partes. É assim no futebol, no boxe, no atletismo, no turfe e até no automobilismo – onde até a quebra de um motor ou o estouro de um pneu terão a ver com a maior ou menor robustez de equipamentos utilizados por cada equipe.

Nos jogos é bem diferente, pois, ainda que a maioria das modalidades permita, em maior ou menor grau, alguma manipulação racional por parte dos jogadores, à qual chamaremos de estratégia, o êxito ou o fracasso em cada rodada depende, acima de tudo, de eventos aleatórios que fogem a qualquer controle por parte dos jogadores. Como o lançamento de dados, a retirada de esferas numeradas de dentro de um globo ou de cartas de um baralho ou, ainda, o setor onde cairá uma esfera lançada sobre uma roleta giratória.

Nestes eventos aleatórios, ainda que seja impossível se predizer qualquer resultado (daí parte do fascínio exercido por certas modalidades sobre jogadores compulsivos), se pode, no entanto, estimar com absoluta precisão qual a probabilidade de ocorrência de cada evento independente ou de eventos combinados. Temos, então, que os resultados de quaisquer jogos são sempre determinados por uma combinação de habilidade (o domínio da estratégia) e sorte (a componente probabilística). Por esta razão, tais jogos são popularmente conhecidos como jogos de azar.

Deste modo, a roleta, os jogos com dados e cartas e as loterias são jogos de azar. Já o turfe, não. Muito embora nele se tenha institucionalizado o expediente de apostas, não são estas que definem se um jogo é ou não de azar mas, tão somente, sua imponderabilidade ou, se preferirem, sua componente probabilística. Pois mesmo que se tenha vulgarizado a figura do “cavalo azarão” (bem como, no futebol, a da zebra), qualquer apostador sabe da importância da posse de informações de cocheira, capazes de explicar por que um cavalo bom corre ocasionalmente mal e vice-e-versa.

Feita esta distinção, aos jogos.

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Minha curiosidade pelos jogos de azar, bem como minha paciência com os mesmos, só durou até o final da adolescência – que foi quando compreendi, mais do que o princípio probabilístico envolvido (i.e., que, por mais que eu me empenhasse, o resultado jamais dependeria de meus esforços), o fato de que, em partidas prolongadas, há uma tendência crescente e irreversível à vitória daquele competidor que tiver o maior capital acumulado. Examinemos primeiro o caso do célebre jogo de tabuleiro War.

Quem, depois de alguma excitação inicial, não descartou como diversão as invariavelmente longas partidas de War com base na rápida constatação de que aquele jogador que acumulasse, no início do jogo e como resultado do rolar dos dados, mais exércitos sempre vencia ? Complexo ? Reformulo, então, mais sucinto: quem já viu alguém ganhar uma partida de War “de virada” ? Pouco provável, não ?

No início de uma partida de War, temos controle sobre como posicionamos nossos exércitos e sobre o momento de parar de atacar em cada rodada. De pouco importa, no entanto, tudo isto se não contarmos com uma boa dose de sorte no rolar dos dados – únicos responsáveis por nossa conquista de novos territórios ou, ao contrário, pela dizimação de nossos exércitos. Só que isto só vale para o início de cada partida – pois, ao fim de algumas rodadas, com a série de resultados dos dados convergindo para uma média (uma das primeiras coisas que se apreende em cálculo probabilístico), tende a se ampliar a vantagem, obtida no início da partida, de um jogador sobre os demais, os quais são submetidos a uma agonia lenta, irreversível e enfadonha. Exatamente por isto, muitas partidas de War que começam a ser disputadas não chegam a termo, com os oprimidos aceitando de bom grado uma derrota antecipada, por abandono, em troca da liberdade para procurar uma distração melhor.

(num ataque nostálgico, talvez movido pela falsa promessa de oferecer uma alternativa razoável aos jogos eletrônicos, adquiri já adulto um kit de War para jogar com meus filhos. Do que, de pronto, me arrependi. Felizmente, eles também não tardaram muito a descobrir que aquilo era um tédio só – exceto para quem estava ganhando, é claro)

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Talvez não haja jogo mais emblemático dos cassinos do que o de roleta. Muitos fatores contribuem para isto. Primeiro, é claro, o ricochetear da bolinha antes de cair num dos setores numerados. Parece pouco ? Comparem com o lançamento de dados – que, numa fração de segundo, se imobilizam mostrando os números sorteados na face superior. Sob o ponto de vista de um apostador compulsivo, uma eternidade se passa desde o momento em que o crupiê lança a bolinha em sentido contrário ao do giro da roleta até que ela caia numa de suas canaletas. A prolongação do tempo de sorteio potencializa, então, a emoção da expectativa de um resultado favorável. Não estamos interessados, aqui, no entanto, nas nuances psicológicas do jogo – mas, tão somente, em seus aspectos matemáticas.

Se fosse só para apostar em sequências de eventos aleatórios, apostadores se divertiriam lançando moedas em jogos de cara ou coroa sem precisar ir a cassinos. A parte mais importante do glamour do jogo de roleta – assim como de qualquer jogo de azar – reside na aparente complexidade do mesmo, que permite a todo jogador fantasiar sobre a existência de um sistema possível de enriquecimento fácil, capaz de derrotar o cassino ou, no jargão dos apostadores, “quebrar a banca”.

No jogo de roleta, esta aparência complexa é suprida pela variedade de modalidades de aposta com taxas de remuneração diferenciadas. Numa roleta, existe 1 chance em 37 de que um número seja sorteado. Que, para todos os efeitos, devem ser consideradas 36, posto que, numa delas (o zero), a banca ganha tudo. Pois bem. Se você apostar num único número e acertar, ganha 35 vezes o que apostou; uma vez a menos, portanto, do que o número de chances que tem de ganhar, que é de 36. Por conveniência, apresentamos, abaixo, cada possibilidade de aposta existente numa mesa de roleta, com as respectivas chances de vitória e taxas de remuneração.

números por aposta chance de vitória remuneração
1 uma em 36 35 vezes
2 uma em 18 17 vezes
3 uma em 12 11 vezes
4 uma em 9 8 vezes
6 uma em 6 5 vezes
12 uma em 3 2 vezes
18 uma em 2 1 vez

Pelo quadro acima, é fácil se entender por que, numa mesa de roleta, a banca sempre ganha, independentemente da existência do “zero” – a saber, por que, para cada tipo de aposta, a banca (o cassino) paga sempre uma vez a menos do que o número de chances que o apostador tem de vencer. O exame deste quadro também torna evidente a qualquer um que domine rudimentarmente o cálculo probabilístico que derrotas sucessivas podem ser compensadas com apostas crescentes em progressão geométrica até a vitória, em séries reiniciadas após cada vitória ao fim de uma sequência de derrotas.

Desta constatação – a saber, de que apostas em progressão geométrica podem compensar perdas em derrotas sucessivas – derivam todos os sistemas ilusoriamente criados no intuito de “quebrar a banca”. Só que cassinos sabem disto e, mesmo que algum apostador com os bolsos mais forrados se encontre em posição de sustentar séries sucessivas de apostas exponencialmente crescentes, as últimas costumam ter valores limitados por categoria de aposta, de modo a, depois de um certo número de tentativas fracassadas, inviabilizar a recuperação das perdas anteriores numa mesma série. Tem-se, então, que os limites estipulados pela banca acabam por derrubar, mais cedo ou mais tarde, qualquer sistema de apostas.

Tudo isto, que pode ser ilustrado com uma série de tabelas, parece bem complicado, mas pode ser resumido, para jogadores neófitos, na seguinte máxima: não tente, em hipótese alguma, quebrar a banca. Pois é inútil, já que, dada a engenhosa arquitetura do jogo, ela sempre vence. Ou não haveria um negócio lucrativo, que até alguns estados exploram, chamado cassino.

Daí se depreende que a indústria dos jogos de azar só existe por que é a própria banca quem estipula as regras. Pois é fácil se intuir que não existiriam mesas de roleta em cassinos se as taxas de remuneração por vitória fossem iguais ou superiores às chances de acerto em cada faixa de apostas. Isto é elementar. Tão elementar como o fato de se estabelecerem relações escusas e promíscuas entre o poder e o capital a fim de que o último possa operar em benefício próprio dentro da zona de conforto da conformidade com a lei.

Tal vício está no cerne da questão do financiamento de campanhas, ardilosamente contornada no que hora chamam, por aqui, eufemisticamente, de reforma política. Lawrence Lessig, criador do protocolo Creative Commons, propõe, por meio de um movimento chamado Fix Congress Now, uma alternativa razoável a este estado de coisas – a saber, o de que a justiça eleitoral só legitime contribuições de doadores limitadas a um certo montante. Com doações limitadas, por exemplo, a cem dólares (e o consequente banimento das grandes doações), estaríamos livres da principal forma conhecida de pressão corporativa sobre a política.

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Todo este preâmbulo – de, confesso, um jogador desistente que, sem jamais ter apostado um único centavo, tentou insistentemente, em mesas lúdicas e de várias maneiras, quebrar a banca – foi só para dizer que um sistema capitalista, descrito por apologistas como, ao mesmo tempo, autoregulatório e meritocrático, não é nem um nem outro. Vejamos por partes.

Não é à toa que grandes investidores sejam comumente designados por economistas como players. Pois o livre mercado, canonizado pelo pensamento liberal como árbitro supremo de todos os conflitos, não passa de um grande jogo de apostas submetido às mesmas forças que atuam nos jogos de azar. Neste cenário, players desenvolvem suas estratégias principalmente a partir de informações privilegiadas (daí o conceito de sigilo comercial) cujo domínio beira a ilegalidade. Todos os outros fatores cuja interação se apresenta, pela própria complexidade, como mais imponderável constituem a área de expertise das agências de atribuição de risco, que vivem de recomendar ou não o investimento de capitais aqui ou ali.

(dia desses, no intuito de conhecer a retórica do liberalismo mais raso, me diverti ao ver Kim Kataguiri afirmar que a taxação das grandes fortunas seria uma medida inócua, posto que o capital migraria facilmente para onde fosse menos taxado. Como se esta fluidez fosse, antes de um crime, uma espécie de lei natural ou direito adquirido. Deve ser preciso muito estômago e paciência para se debater com gente assim…)

Neste contexto, desfrutam de ampla vantagem aqueles competidores que, por estarem garantidos por um lastro financeiro maior do que os outros, podem correr mais riscos – até se dando, vez que outra, o luxo de perderem. Como apostadores bem capitalizados. Já numa competição mais prolongada, que envolva rodadas múltiplas, tendem inevitavelmente a engolir os menores.

Circula, entre apologistas das virtudes do livre mercado, uma retórica de exaltação do pequeno empreendimento. Bullshit. Se grandes empresas  não voltam seu apetite insaciável a alguns setores econômicos, tal se dá tão somente por que tais setores não lhes oferecem tanta lucratividade como aqueles nos quais investem. É só estudar a fusões. As indústrias da comunicação e farmacêutica, por exemplo, são pródigas em casos de aquisição.  Mas nenhum player parece interessado, no entanto, em adquirir mercadinhos com a mesma sanha que demonstraria em relação a redes de supermercado. Então, há nos setores econômicos mais lucrativos, como em um tabuleiro em forma de mapa mundi sobre o qual se travam partidas de War, uma tendência à existência de um número cada vez menor de competidores maiores.

Com isto, não se pode dizer que o mercado seja nem de longe qualquer coisa parecida com autoregulatório. Já a crítica a sua índole meritocrática é ainda mais fácil – posto que, como num jogo de azar, a banca (leia-se: o competidor que dispuser de melhores condições iniciais) sempre vence. Acreditarei nisto até que historiadores da economia me demonstrem o contrário. Pois, até onde sei, nenhum David consegue derrotar um Golias a não ser na mitologia. Então, está mais do que na hora de começarmos a pensar na supremacia do mercado mais como um conjunto de mitos do que, como nos querem fazer acreditar, um sistema de leis “naturais”.

 

A perversa retórica de que a salvação reside no empreendedorismo

Já disse noutro post que tenho o incurável hábito de assistir ao Jornal Nacional tão somente para auscultar a linha editorial da Rede Globo e, residualmente, para ficar a par do mais recente pacote de maldades do governo federal bem como das últimas peripécias do circo judiciário.

Ouvindo de longe, ontem, apenas o áudio do Jornal Nacional, fui tomado de curiosidade por uma matéria que, supostamente, fomentava o empreendedorismo. Algo sobre abraçar novas carreiras. De um modo tortuoso, a tônica do discurso me pareceu, de imediato, a banalização do desemprego. Achei aquilo muito sintomático,  pois justo quando o alto empresariado obtém o aval do estado, respaldado pelo poder legislativo, para se desonerar de responsabilidades trabalhistas, seu principal arauto (afinal, quem sustenta, por meio de anúncios, a grande mídia ?) toma a si a tarefa de persuadir a população de que sua emancipação e felicidade não dependem da segurança do recebimento de um salário mensal e outros benefícios tidos como supérfluos por defensores das virtudes do mercado – tais como férias remuneradas, décimo-terceiro salário e aposentadoria – mas, tão somente, de arriscadas e improváveis incursões de nanicos no mundo dos negócios. Pois, para o credo liberal, o mundo ideal é povoado não por assalariados mas por pequenos empreendedores. O governo federal estimula essa ideia por meio do Sebrae. Até orquestras, como a OSESP, já contratam músicos como empreendedores individuais.  Ainda assim, quase vomitei ao ver o JN incentivar a audiência a abraçar carreiras autônomas no mesmo dia em que o governo anunciou um novo plano de demissões voluntárias.

Na supra-citada matéria, mostraram um site que já tinha mais de 11 mil seguidores. Ora, curtidas em redes sociais não equivalem de modo algum a intenções de compra. Com efeito, se tivéssemos que pagar por cada coisa que curtimos, seríamos bem mais criteriosos ao pressionar o ícone da mãozinha com o polegar erguido. A dona do mesmo site nos informa sobre alguém que, pelo volume de fotos postadas, já pode ser considerado como o fotógrafo oficial do site. Se a TV fosse interativa, perguntaria de pronto quanto pagou por cada foto. O que mais me irrita nisto tudo é pensar que esta retórica emancipatória possa encontrar, entre a audiência, olhos e ouvidos crédulos. Se fosse na internet, seria automaticamente descartada como algum vírus ou spam. Na tela da TV adquire, no entanto, o benefício da validação.

Indo adiante, é preciso acrescentar que, conquanto muitas iniciativas comercias já tenham se apropriado com êxito de recursos virtuais, a esmagadora maioria dos sites ainda é exclusivamente voltada para a comunicação entre seus mantenedores e visitantes. A web ainda é, portanto, eminentemente um meio de informação. Se, no entanto, os responsáveis por cada site ou blog passassem a tentar vender alguma coisa, arrisco afirmar que, em sua grande maioria, perderiam um volume considerável de leitores.

Sei. Há sites como um prosaico “Viver de blog”, que “ensina” técnicas para potencialização da audiência e monetização do conteúdo. Insisto, ainda assim, que o maior potencial da rede, largamente subaproveitado, reside na comunicação, com especial importância para a educação e a política. Só que ambas precisam mudar radicalmente para desfrutar deste benefício e, ao menos no que se refere à política, tal não é do interesse da classe governante, indiscutivelmente devido à horizontalidade inerente aos protocolos virtuais.

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Como disse acima, o empreendedorismo nanico (na ausência de expressão melhor) já foi banalizado como parte do pensamento liberal, tanto no que tange ao estado mínimo quanto na crença na suprema legitimidade do mercado como mediador de todas as relações humanas.

Uma das coisas que apreendemos, no entanto, lendo Harari, é que nenhuma ideia é naturalizada sem uma poderosa combinação de interesses e esforços, ainda que escusos, a contribuir para sua aceitação. No caso do empreendedorismo individual, é possível identificar, além de campanhas como as da Globo, auto-justificadas com a eloquência de atos falhos, inúmeros interesses em ação.

Primeiro, há que se reconhecer que organizações colaboram para isto. Vejam, por exemplo, o caso da campanha publicitária In doers we trust, lançada pelo provedor de serviços free lance Fiverr, que chegou à minha atenção por meio de uma matéria publicada no New Yorker, crítica em relação à atual onda de empreendedorismo individual, que narra a história de uma mulher, em busca de alguns dólares a mais, que entrou em trabalho de parto enquanto dirigia uma espécie de Über. A esta matéria deve ser creditada a expressão gig economy, traduzível como “economia de bicos”, que bem define a situação à qual governos liberais e empresários mancomunados presentemente querem relegar a sociedade.

Outras organizações, mais antigas, que promovem a desregulamentação trabalhista e a supremacia do mercado, são mencionadas num interessantíssimo artigo publicado pelo The Guardian. Sintomaticamente, magnatas que dirigem estas organizações insistem em permanecer no anonimato, como se a mera publicização de sua relação com tais organizações fosse por si só suficiente para minar seu propósito de promoção da livre iniciativa.

Por aqui, se popularizou, anos atrás, a denominação jocosa de PDV (plano de demissão voluntária) para as acessíveis vans asiáticas adquiridas por ex-funcionários públicos para a venda de cachorros-quentes com os recursos oferecidos pelo governo estadual em troca da auto-exoneração precoce.

Além disso, há hoje um aquecido mercado para palestras de autoajuda, por coachs a afins (que, em sua maioria, jamais abriram um CNPJ), destinadas a indivíduos em busca de estímulo para se lançarem a empreendimentos individuais. Nestes rituais, se promove a ideia de que há um mercado ávido pela iniciativa a ser empreendida por cada um,  dependendo apenas de sua vontade, se vendendo a ideia de que abrir uma empresa é tão fácil quanto montar uma banda de garagem e deliberadamente omitindo o fato de que poucas dentre as empresas abertas efetivamente prosperam.