Roger Scruton

Decidi escrever sobre Scruton depois de ler uma instrutiva postagem sobre o mesmo por meu amigo Zeca Azevedo (obrigado, Zeca !). Após perceber que meu comentário seria demasiado longo, muito mais do que a postagem que o ensejou, vim ao editor do blog – este espaço mais reservado, onde só entra quem quer, mais afeito à contemplação e à reflexão do que ao fluxo vertiginoso das redes sociais. Para usar de uma imagem: ler um blog é como (ou, ao menos, quero que seja) viajar por uma estrada vicinal, esburacada e com curvas mal (ou não) planejadas, que nos dá tempo de desfrutar da paisagem ao redor; ao contrário de ir por uma via expressa, indiferente a tudo o que há entre os pontos de partida e chegada. Obrigado, Robert Pirsig !

Zeca começa sua postagem/diatribe sobre Scruton se desculpando pelo trocadilho Scruton/escroto. Ora, não é preciso se desculpar, pois a simples menção ao nome do controverso esteta inglês provoca inevitavelmente entre alunos risinhos disseminados, isto quando um deles não chega a sublinhar explicitamente a semelhança entre as duas palavras.

* * *

Roger Scruton (1944-2020) é uma unanimidade. Odiado, por suas opiniões radicais, por praticamente todos que nutrem alguma forma de apreço ou curiosidade pela arte criada a partir do início do século 20. No ano anterior a sua morte, proferiu uma conferência no Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre.

Não vou, aqui, desfiar sua biografia, que está na wikipedia prá quem quiser conhecer. Para nossos propósitos, basta saber que ele dedicou sua vida a atacar toda arte que propunha uma rejeição explícita de cânones válidos para períodos artísticos anteriores. Ao mesmo tempo, defendia, em nome de salvar a arte do futuro, um retorno deliberado a práticas tradicionais mais afeitas a um gosto moldado pelo passado. Seus alvos prediletos: a música serial e a arte visual “moderna”, a qual afirmava ser indistinguível daquela produzida por uma criança (voltaremos a isto). Sua auto-confiança (que detratores talvez prefiram chamar de arrogância) era tamanha que chegou a fundar The Future Symphony Institute, dedicado à restauração de valores musicais tradicionais – o qual, providencialmente mantido no ar após sua morte, ainda oferece acesso instantâneo a muitos de seus polêmicos textos sobre estética e educação.

* * *

Mesmo com todos os óbices levantados em relação a suas posições, mais do que reacionárias, até obtusas (sim, pois, por vezes, chegamos a duvidar que Scruton de fato alcançasse todas as implicações, num sentido mais amplo, de tudo o que ele desqualificava), suas convicções – a saber, sobre a natureza decadente de tantas formas de arte recentes e disruptivas, conquanto sua relevância histórica – são importantes por representarem exemplarmente segmentos numerosos do pensamento atual.

Por isto mesmo, costumo recomendar seus escritos, sem dúvida reacionários, a meus alunos, em oposição a, num outro extremo, o célebre manifesto de Milton Babbitt Who cares if you listen, de 1958, que postula exatamente o contrário, i.e., que o compositor deve prescindir de qualquer apreciação e aprovação por um hipotético público. Babbitt vai mais longe, postulando a universidade como o locus ideal, portanto, para o ofício do compositor.

Costumo lançar os textos de Scruton e o manifesto de Babbit como uma provocação. Munição para debate. A síntese que espero ? Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Nem 8, nem 80. Penso que o dilema entre uma arte totalmente acessível e outra totalmente hermética é o paradoxo crucial a que todo artista está sujeito: comunicação X expressão. Neste contexto, toda a retórica (e eloquência) de Scruton em favor de uma maximização da comunicação na arte é o que de melhor encontrei, até hoje, apesar de seus óbvios calcanhares de Aquiles, sobre a mesma. Todos concordam que arte é sobre expressão. Mas até que ponto a comunicação (e, portanto, a existência de um público) é essencial ? Aí começa o debate.

* * *

Para concluir, dois fatos bizarros sobre Scruton.

Em 2016, ele proferiu, no Festival de Donaueschingen (depois de Darmstadt, o maior “templo” universal das vanguardas musicais), uma palestra sintetizando sua posição conservadora, presumivelmente abominada pela audiência. Tiro o chapéu. Até agora estou em dúvida sobre qual foi o gesto mais corajoso: se o dele ao aceitar falar diante da plateia de Donaueschingen ou o dos organizadores do festival ao convidá-lo (pois é rara e louvável tamanha disposição para ouvir contraditórios !).

A arte contemporânea é indistinguível daquela produzida por uma criança. Sim, é verdade. Mas e daí ? A resposta passa inevitavelmente pela definição de arte, se é que existe uma. Museus e salas de concerto nos ensinam que a arte do passado é caracterizada (mas não definida !) por uma maestria exacerbada do métier. A tal da alta cultura, primeiramente reconhecida pelo domínio do pincel, do cinzel, da harmonia ou do contraponto. Mas será que é só isto ?

A morte de Boulez e o lugar do ouvinte

Boulez 1

A morte de Pierre Boulez trouxe à tona uma sorte de inquietação que eu tinha mas que já havia há muito apaziguado, que tem a ver com o que é esperado de um ouvinte de suas obras ou, até, com a interessante questão de até que ponto sua música, e congêneres, efetivamente pressupõem a existência de ouvintes.

Pois, até o início do século passado, toda música, pública ou privada, pressupunha a existência de alguém que, voluntariamente, a ouvisse. O que equivale a dizer que tudo o que era composto, executado e ouvido, seja em mosteiros, cortes ou salas de concerto, tinha, necessariamente, um que de sedutor, visando um tipo de gratificação que resultasse, no mínimo, num desejo de tornar a ouvir aquilo ou algo semelhante.

Já faz tempo que compositores conquistaram a prerrogativa de criar música que não tivesse, necessariamente, qualquer compromisso com a gratificação e/ou a aprovação pública. Tal estado de coisas foi muito bem colocado por Milton Babbitt num manifesto que acabou por definir a universidade como o lugar ideal do compositor criativo. A partir do documento, cai por terra qualquer obrigação que um compositor anteriormente tivesse com a satisfação do público, devendo o mesmo prestar contas tão somente à própria consciência e a mais ninguém. Tal noção, a saber, de que a música possa ou mesmo deva prescindir de qualquer aprovação pública, está arraigada a grande parte do que vem sendo produzido até hoje.

Assim que soube do passamento de Boulez, me dei conta, ao ler alguns obituários, em sua maioria laudatórios e uns poucos mais ácidos em relação à obra do mito que se foi, de que, embora esteja ciente da importância das ideias musicais do mesmo durante as últimas décadas, pouco ou nada escutei de sua obra. Então, dentre a profusão de músicas que, juntamente com tantos obituários, povoaram minha timeline desde ontem, escolhi aleatoriamente ouvir sua sonatina para flauta e piano. Nenhuma surpresa. Difícil esperar que algum ouvinte (salvo compositores ou entusiastas da originalidade a qualquer preço – mas aí é outra história) queira, espontaneamente, tornar a ouvir aquilo.

Confesso que não suportei ouvir por muito tempo o que me pareceu, no máximo, uma realização de caos sonoro fixada em partitura. Para fugir dos “grilhões” impostos pela tonalidade e formas por ela engendradas, compositores do século 20 recorreram a expedientes variados. Enquanto serialistas recorreram a uma hierarquização arbitrária dos sons – primeiro em relação às alturas (segunda escola de Viena) e, depois disto, estendendo o mesmo princípio a outros parâmetros sonoros (durações e intensidades), outros, chamados estocásticos, recorreram a métodos probabilísticos para lograr resultados que, na prática, soavam incrivelmente semelhantes à música produzida pelos primeiros.

De um modo ou de outro, o cânone obedecido por toda vanguarda imediatamente posterior ao romantismo tardio era não soar, em hipótese alguma, tonal. O que, em nosso entender, só reforçava, pela própria negação, a enorme força da tonalidade em música. Noutras palavras, o nome do jogo foi, para alguns e por certo tempo, procurar novas ordens que emulassem, para os ouvintes, a desordem. Esta distinção é crucial pois, se durante todo o período de prática comum da música tonal a organização formal de uma peça musical era perfeitamente audível e, portanto, aparente, já nas obras daqueles compositores que se tornaram conhecidos como a segunda escola de Viena (Schoenberg, Berg e Webern) os elementos organizadores se tornaram ocultos – como se as formas tivessem se tornado criptografadas, deliberadamente inacessíveis ao ouvinte. Isto é particularmente notável, por exemplo, nos movimentos da ópera Wozzeck, de Alban Berg.

Que se faça uma experiência. Que recepção teria qualquer obra do mítico Boulez se atribuída a qualquer compositor obscuro ? Ou, ainda, até que ponto partes da mesma poderiam ser permutadas ou alteradas deliberadamente sem que qualquer ouvinte, mesmo dos mais treinados, se desse conta de que a obra tenha sido violentamente mutilada ? Isto seria algo impensável no repertório do chamado “período de prática comum”.

Curiosamente, os “pais” da música serial (principal vertente da negação da tonalidade que obcecou tantas das melhores mentes musicais do século 20) flertaram com a música tonal em diferentes momentos de suas vidas. Schoenberg, inventor do primeiro método serial, conhecido como dodecafonismo (a não repetição de qualquer altura antes que as outras 11 da escala cromática tenham sido escutadas), já havia logrado um dos mais perfeitos entendimentos jamais formulados (vide os livros resultantes de anotações de suas aulas em Princeton) da música tonal muito antes de formular a técnica atonal que o consagrou; já Boulez, que estendeu o sistema criado por Schoenberg para as alturas a outros parâmetros musicais, se consagrou como um dos mais importantes regentes de música tonal bem depois de ter inventado o serialismo integral. Ambos chegaram, então, cada um a seu tempo, a uma compreensão extremamente privilegiada do tipo de música, por eles próprios definida como tonal (já que, afinal, antes disto, não fazia qualquer sentido a distinção entre tonal e atonal pela própria inexistência, até então, da segunda categoria), da qual mais quiseram se distanciar enquanto compositores.

* * *

Dentre as anotações soltas para este texto, encontro uma na qual identifico, na música do período de prática comum, um delicado equilíbrio entre o grau de ambição (complexidade) de uma música e sua inteligibilidade, ou perspectiva de compreensão por parte daqueles a quem convencionamos chamar de ouvintes treinados.

Só que, durante o último século, houve uma nítida fratura entre, de um lado, a música mais informada, que se tornou mais complexa e para ouvintes mais especializados nas mãos dos compositores seriais (primeiro os da segunda escola de Viena; depois os do círculo de Boulez, que aderiram ao cânone do serialismo integral) e, de outro, uma simplificação exacerbada, traduzida inicialmente nas formas curtas e contornos tonais básicos do pop e, mais recentemente, na abolição de qualquer melodia que define o rap.

* * *

Talvez o conceito chave mais importante para “signatários” do manifesto de Babbitt seja o abandono deliberado da noção de prazer estético a ser fruído por ouvintes. Consoante a isto, já ouvi de um grande amigo, exímio compositor e guitarrista com uma compreensão musical privilegiada, ante minha predileção por isto ou aquilo, que nenhuma música almeja à gratificação do ouvinte – não sendo, portanto, nenhuma mamadeira (sic !). Pela inteligência e estima que lhe reputo, suponho que possa ter alguma razão. Não obstante, teimo em perseguir, em minha escuta, toda sorte de gratificação. Sou, está claro, incuravelmente hedonista.

Boulez 8