Mitos literários (i): da superioridade do grande romance

Desde muito cedo (nem lembro quando) acreditei em duas “cláusulas pétreas” sobre as quais julgava que se erguia toda grande literatura. Uma diz respeito à forma, mais precisamente à extensão da mesma, e a outra, ao conteúdo. Hoje as reputo como não mais do que mitos. São eles:

  1. o romance é um formato literário superior aos outros, mais curtos; e
  2. escritores cuja fantasia transcende o relato autobiográfico são melhores do que aqueles que tecem sua obra exclusivamente a partir experiências por eles vividas.

A eles, então.

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O primeiro mito, sobre a superioridade do romance sobre formas mais curtas, esbarra, de saída, no problema de que superlativos, conquanto toda análise comparativa possa deitar alguma luz sobre a singularidade de obras específicas, tendem a obscurecer, num manto de mediocridade, tudo aquilo que é considerado menos elevado. Mas não é só isso.

Para melhor se entender como o grande romance acabou por adquirir seu status de tour de force literário, há que levar em conta determinantes históricos, comerciais e tecnológicos. Tratemos, pois, inicialmente, do aspecto comercial. Até por que fatores históricos e tecnológicos são melhor analisados como uma coisa só.

Devemos tratar a atividade editorial, em que pesem suas nuances, antes de tudo como uma indústria. E para qualquer indústria, o problema da escala de produção é crucial, por que tem implicações diretas no custo. Do seguinte modo. É mais barato produzir, anunciar e distribuir uma quantidade maior de cópias de um número menor de itens. Daí que a industrialização anda de mãos dadas com a padronização.

Mas o último parágrafo pode ter ficado um pouco nebuloso, porquanto teórico e, logo, abstrato. Tratemos, pois, de ilustrar. Pensem numa estante onde caibam uns 30 romanções ou uma centena de volumes menores. Qual preenchimento da estante (com livrões ou livrinhos) terá o menor custo para toda a cadeia produtiva, da gráfica à livraria, passando pela resenha crítica ?

Menos, Augusto, bem menos. É claro que, dentre as nuances, a que aludi acima, de toda indústria denominada “cultural” (é mais honesto chamá-la de “indústria do entretenimento”), possui especial destaque a demanda, por parte de leitores, ouvintes e espectadores (ou, em que pese soe cruel, consumidores) pela maximização da diversidade. Que se traduz em linhas de produção, campanhas publicitárias e estoques mais onerosos. A administração deste conflito entre, de um lado, padronização e escala e, de outro, diversificação é a alma do gerenciamento da indústria [você escolhe: cultural ou do entretenimento]. Para o negócio, é uma questão de vida ou morte.

Parêntesis. Alguns textos curtos, como os de Poe, adquirem vida própria e terminam por conquistar certa autonomia. Foi o que sucedeu com Bartleby, o escrivão, de Herman Mellvile (autor de Moby Dick). O conto, genial, cabe em 44 páginas. Como justificar sua edição autônoma ? A solução encontrada pela Ubu, uma editora de livros bonitos (como a extinta Cosacnaify (o que dá margem à indagação sobre se este modelo de negócio (i.e., a publicação de livros bonitos) é ou não sustentável)) foi a publicação, como antigamente, de um livro costurado, com páginas que devem ser abertas com uma espátula. Um livro fetiche. Do tipo que temos receio de riscar. Certamente o mais caro (R$/nº de páginas) que já comprei.

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A questão histórico-tecnológica. Não vou, aqui, tornar a um tema que já esmiucei bastante em textos anteriores que é a fragmentação progressiva do discurso (que encantaria Bakhtin) desde a palavra impressa que se lia a luz de velas até o que temos em redes sociais e na internet em geral. Ao longo desta evolução (reparem que não utilizo o termo progresso), narrativas mais longas foram dando lugar a formas mais compactas. As quais, por sua vez, passaram a demandar maiores esforços de concisão por parte de quem escreve, tanto para adequar os textos aos meios que habitam quanto à expectativa dos leitores. A própria expectativa da audiência é condicionada pelo meio em que reside o conteúdo.

Mas voltemos, por um instante, ao romanção enquanto absoluto tour de force literário, i.e., no qual o autor eleva a patamares extremos sua maestria em sustentar o interesse do leitor ao longo de narrativas prolixas. Ora, por que razão devo supor que a habilidade e a criatividade de quem tece um relato enorme são de alguma forma superiores às de quem empreende esforços de concisão para acomodar ideias a contextos de publicação de dimensões mais restritas ?

Como se uma sinfonia fosse, necessariamente, uma realização mais significativa do que um lied (canção) tão somente por que ocupa toda a duração de um disco ou quase toda a de um concerto, enquanto lieder costumam ser agrupados para justificar a ida a um recital ou a compra de um produto fonográfico.

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A conspirar contra meu propósito, declarado no kaput, de me debruçar, aqui, sobre dois mitos literários, está o fato deste texto ter já assumido proporções temerárias para um post, suficientes, ao menos, para desencorajar sua leitura na plataforma onde reside. Some-se a isto o fato de, no decorrer da escrita, eu ter me lembrado de um terceiro mito. Querem um spoiler ? Trata-se da noção, já incorporada ao senso comum, de que qualquer texto publicado num meio de broadcasting seja, por isto mesmo, de algum modo superior a coisas escritas para uma circulação (só teoricamente) mais restrita através do narrowcasting. Instigante, não ? Por hora, mais não digo.

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PS: de uns tempos prá cá, adquiri o hábito de minerar no facebook informações visando ampliar a base de conhecimento sobre a qual escrevo. Pois, como não deve ser novidade para quem me lê, falo muito sobre o pouco que sei. Pelos cotovelos. Ainda não achei a razão ideal entre os volumes de escrita e de leitura. Na última consulta, sobre grandes autores que escreveram mais textos curtos do que longos, amigos a quem sou grato me trouxeram a seguinte nominata: Bioy Casares, Isaac Bashevis Singer, Ivan Bunin, Raymond Carver, Luigi Pirandello, Flannery O’Connors, O. Henry, Julio Cortázar, Leonid Andreiev, Lucia Berlin, Milton Ribeiro, Machado de Assis, Juan Rulfo, Ghassan Kanafani, Katherine Mansfield, Alice Munro e Ernest Hemingway. Não é pouca gente. Isto que é apenas uma amostra, i.e., a lista seria bem maior se a consulta permanecesse ativa por mais tempo. O que me leva a concluir, talvez apressadamente mas não sem uma ponta de indisfarçável triunfo, que minha “tese” sobre a valoração exacerbada do romanção em relação ao conto ou à crônica pode ter, afinal, algum fundamento.

Lusco-fusco

Nada me define melhor do que a tal metamorfose ambulante. Foi só eu declarar, dia desses neste blog, que prefiro escrever de manhã e ler ao entardecer, para me surpreender, agora mesmo, escrevendo pouco depois do pôr do sol. Gosto, no entanto, disto. Significa uma liberdade subitamente adquirida para, sem ter terminado de revisar, formatar e publicar um texto (a parte mais complicada, porquanto burocrática), me lançar despreocupadamente à confecção de um novo. “- Nosso Manny está crescendo.”

Por que lusco-fusco ? Calma. Chegarei lá. Salvo por um pequeno círculo de amigos mais próximos, poucos sabem que me mudei. Pretendia morrer na casa onde morava, lindeira a um cemitério. Os melhores vizinhos que já tive: nunca incomodavam. Basta dizer que, certa vez, toquei até as 2 horas da madrugada (sic !) sem ouvir nenhuma reclamação. Só que uma casa é uma casa. Apesar da autonomia, a manutenção vai ficando mais trabalhosa e pesada e, com o passar dos anos, precisamos, Astrid e eu, pensar na velhice que se aproxima.

E assim, desfrutando de um par de heranças e do fato de um primo, que mora nos EUA, querer se desonerar de um imóvel herdado de seus pais, viemos parar no Centro Histórico de Porto Alegre. Mais precisamente, no último andar de um prédio na colina central. Nunca antes suspeitei da sensação prazerosa que é ter as horas do dia marcadas pelos sinos da Catedral. Mas não é só isto.

Desde criança, me acostumei com noção de que a expressão “vista para o Guaíba” (este rio/lago que tão duramente fustigou a cidade) consistia numa espécie de nirvana imobiliário. Ironicamente, a aceleração da vida acaba deixando pouco tempo para o desfrute desta condição (ia dizer conquista, mas mudei de ideia). Assim, por força de uma combinação de circunstâncias, mais do que por qualquer mérito (outra palavra abominável) pessoal, acabei agraciado com uma vista deslumbrante. Some-se a isto o fato de que espaço, aqui, não falta (o prédio é bem antigo). Mantidas as proporções, é como morar no Dakota (edifício, à margem do Central Park, onde Polanski filmou O Bebê de Rosemary e onde moravam Leonard Bernstein e John Lennon, assassinado diante do mesmo). Tudo bem que exagero um pouco, mas é o que sinto.

É claro que prédios antigos tem, além de vizinhos fascinantes (a vida em condomínio é como uma extensão da família), também vícios arraigados. Antes mesmo de virmos prá cá, meu primo sentenciou, sabiamente, que Astrid deveria ser síndica. Não deu outra: ela é a síndica que todo condômino, daqui ou de outros prédios, jamais sonhou. Ela toma para si os problemas do condomínio como se fossem dela.

É claro que tamanha dedicação tem um custo. Meu lado egoísta insiste em reivindicar sua atenção exclusivamente para mim. Mas acabo cedendo. Sabem aquela pessoa que, de tão empática, precisa de muito mais gente para cuidar do que o habitual ? Pois Astrid é assim. O que me atormenta (não por mim, mas por ela) e, ao mesmo tempo, me orgulha. Complicado conciliar.

O fato de morarmos aqui se deve à Astrid. Não só ela objetivou a decisão (imaginem se um geminiano tivesse que tomá-la: certamente teria perdido a oportunidade) como foi também responsável pela impecável reforma.

Não sou como o Milton, que vive a tecer loas a sua querida Elena. Mais reservado, costumo emprestar minha voz a questões bem menos pessoais. Mas o compreendo perfeitamente e partilho de seu sentimento.

Que me desculpem os que me leram até aqui o tom confidente, mas a vista é, de fato, sensacional (isso prá não falar do espaço). Tanto que, tendo já fotografado alguns crepúsculos, deixo de publicá-los por que, ao menos neste caso, imagens são absolutamente redutoras.

Déficit literário

Disclaimer: depois de ter declarado, dias atrás, não ter tempo para ler ficção, confessei, ontem, meu projeto de recuperação de meu déficit literário (i.e., o que já deveria ter lido mas ainda não li). Como assim, Brutus ? Quanto a esta volubilidade, noves fora o fato de eu ser geminiano, só tenho a dizer o seguinte. Na inocência da juventude, ao ser interpelado por amigos sobre alguma opinião mutante, respondi “- Não me cobrem coerência !”. Difícil descrever o impacto, misto de riso e espanto, da frase sobre os que a ouviram pela primeira vez. Desde então, a uso com frequência para justificar esta metamorfose ambulante.

A estas alturas, nem que eu quisesse conseguiria ler tudo o que gostaria. Então, meu plano é simples, a saber, ler pelo menos uma obra de cada grande autor até agora negligenciado (o que não é pouco !). Para tanto, confio em minha rede de recomendantes. Não há como fugir, por exemplo, da unanimidade acerca de Brás Cubas, assim como o bom senso manda que não me aventure com o Finnegan’s Wake antes de ler Ulysses.

De todas as obras aleatoriamente mencionadas em rede social, como (bem-sucedida) provocação, a que mais reações causou foi, de longe, Crime e Castigo. Mais precisamente, minha confissão de ter abandonado a leitura do livro por achá-lo chato. Devo, portanto, uma explicação. Ou, ao menos, uma tentativa. Mas não sem, antes, agradecer pela ótima recomendação de Charlles Campos sobre a “forma correta” de se ler Dostoiévski, a saber, de uma sentada só. A qual, por sua vez, roça a razão de minha desistência (ou, pelo menos, minha hipótese sobre a mesma), na página 248.

Acontece que, desde a época dos romanções russos (tudo bem: também escreveram e ainda escrevem grandes romances em outros lugares), o tempo de atenção médio dedicado a um único texto despencou. De tal modo que Bakhtin teria se deliciado ao submeter a extrema fragmentação do discurso contemporâneo à sua teoria sobre as interrupções das falas. A comunicação humana (e, portanto, a literatura) é hoje muito mais dominada pelo tweet, pelo post, pela crônica ou, vá lá, pelo conto (nesta ordem) do que, propriamente, pela novela e pelo romance. O cinema, a televisão e, mais recentemente, as conexões virtuais são, com sua eficácia, objetividade e imediatismo, responsáveis por isto.

Posso muito bem, no entanto, estar não mais do que racionalizando minha desistência. O abandono pode ter sido mero esquecimento. Ou, até mesmo, por eu ter achado a coisa chata. Como assim ? Aquelas descrições quilométricas, de várias páginas, cada vez que um novo personagem entra em cena. Não contente em descrever o personagem, o autor recita a história de sua vida. É o estilo, dirão. Me reservo, todavia, o direito de, face a uma objetividade quase cartesiana a que o cinema nos acostumou, sofrer de baixa tolerância em relação a objetos mais prolixos. Minha predileção é por formas de linguagem mais compactas. Questão de gosto.

Gosto ? Sai, Satanás ! Pois quem vos escreve é o mesmo que afirmou categoricamente, esses dias, que, ao contrário do que reza o senso comum, gosto, assim como política e religião, se discute, sim. Tributem, então, esse deslize a meu credo, exposto no kaput, de rejeição consciente e explícita à coerência.

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A predileção pela retórica compacta deve estar na origem de minha dificuldade com a ficção. Pois, enquanto o não ficcionista busca, como forma de expressão ideal, o modo mais simples (menos prolixo) de traduzir seus argumentos em cadeias silogísticas perfeitamente inteligíveis (como expressões matemáticas depois da simplificação dos fatores); o ficcionista enriquece a narrativa dizendo muitas vezes a mesma coisa de modos diferentes. Como, por exemplo, um cineasta que mostra uma mesma cena sob vários pontos de vista. Pela repetição, o espectador/leitor vai formando, então, uma imagem cada vez mais nítida do que o autor quer mostrar.

Conquanto isto possa ser chamado, como já disse, de estilo, tenho pouca paciência com o mesmo (ao menos em literatura). Um exemplo. Abandonei o outrossim excelente Extinção, de Thomas Bernhard, na página 248 (a mesma em que fui derrotado por Crime e Castigo !). Adoro Bernhard, de quem li ótimos livros. Em Extinção, um calhamaço de 476 páginas, ele se entrega ao desafio de escrever um livro com apenas dois parágrafos. Talvez o maior (mais extenso) monólogo interno da literatura. Sem dúvida um belo exercício de virtuosismo. Nas primeiras páginas, o protagonista deixa bem claro que odeia sua família. Mais especificamente, sua mãe. Quanto aos outros, apenas despreza. Até onde li, todo o livro é uma reiteração insistente de tamanho ódio. Permeado de histórias, é claro, a justificá-lo. Virou um livro de sala de espera, i.e., o lia enquanto não podia fazer outra coisa, ansiando por um desfecho digno do tempo investido. Tão logo percebi isto, o abandonei.

Não é novidade, para quem me lê, meu alto apreço pela concisão. Tanto que cunhei a expressão “densidade lógica” para tentar quantificá-la. Em vão. Impossível de ser expressa por valores numéricos (ideias/(nº de palavras), talvez), a densidade lógica se estabelece tão somente por meio da comparação entre sua presença em dois ou mais objetos. Tipo: este texto é logicamente mais denso do que aquele. Talvez por isto minha tardia disposição de ampliar a familiaridade com a literatura de ficção (que remonta à juventude) seja amiúde interrompida pela urgência de entrar em contato com algum texto não ficcional brilhante recém descoberto.

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Qual a relação ideal entre o volume de leitura e o de escrita de cada pessoa ? Existe uma ? Se alguém escreve muito mais do que lê, tende à irrelevância. Por outro lado, sobra pouco tempo para a escrita a quem cede sem freios à sedução da leitura. Talvez, sei lá, algumas horas do dia sejam mais propícias à escrita ou à leitura. Prefiro, por exemplo, escrever pela manhã e ler ao entardecer. Mas não é só isto. Há, para complicar a equação, uma questão de índole mais ideológica que tem a ver com a concessão a apenas uns poucos do benefício do imprimatur.

Ao menos em tese, todos podem escrever. Ainda que, é claro, alguns textos sejam mais interessantes do que outros. O que faz, então, com que só esses poucos (tão poucos que é lícito falar de alguma cultura de celebridades em ação) conquistem o privilégio de ter seu espírito imortalizado em volumes encadernados com lombadas em uma estante ? Ouso supor que há mais bons livros não escritos do que tudo o que repousa nas melhores bibliotecas. Por que, então, tal estado de coisas ? Razões não faltam.

Primeiramente, é claro, por que o ofício do escritor exige dedicação continuada e, portanto, meios de sustento a garanti-la. Mas, também, por que o acesso às gráficas e livrarias depende, acima de tudo, da aprovação de uma casta de editores, que especulam sobre o potencial de venda maciça, estimada em milhares de exemplares, de cópias de cada original apreciado. Conquanto este gradus ad parnassum editorial possa ter mudado muito na atual era da auto publicação, o que sempre houve, desde Guttenberg, e existe até hoje, é um enorme desequilíbrio entre toda criação textual possível do espírito humano e a pequena parcela do mesmo legada à posteridade em tinta e papel. Ou, atualizando, arquivos voláteis.

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Como, então, lidar com esse excesso de coisas a serem lidas, muitas delas jamais escritas ? A vertiginosa Biblioteca de Babel de Borges (Ficciones, 1944), que abarcava todos os livros possíveis e ultrapassava os confins do universo. Na falta de um critério que se sobreponha aos outros (curadoria em suas diversas formas), dou preferência ao que escrevem meus amigos. Assim, diante da impossibilidade de ler tudo o que quero, dediquei, nos últimos anos, especial atenção às criações da Nikellen, do Farinatti, do Milton, do Henrique e do Liberato. Sem qualquer arrependimento. Posso ter esquecido de alguém. Mas tenho sorte em ter os amigos que tenho.

Gosto de ideias utópicas e distópicas, pois ajudam a imaginar mundos melhores. E se, de repente, todos lessem o que pessoas que lhes fossem conhecidas escrevessem, ao invés (ou, pelo menos, além) das grandes obras do cânone do conhecimento universal ? Teríamos uma melhor distribuição do privilégio da autoria ? Ou alguma espécie de sensibilidade mais local, avessa às celebridades e ao mercado global ?

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PS: pouco depois de publicar as linhas acima, fui agraciado com o seguinte comentário, do Charlles Campos, o qual reproduzo mediante consentimento. Bem melhor do que a encomenda, é EXATAMENTE o tipo de reação que quis suscitar. Ganhei meu dia.

Ótimo texto! Obrigado pela citação. Bom, tem muita coisa aí para debate. Eu sou formado em história e jornalismo, além de veterinária. Menciono isso por ser concernente ao assunto, pois são áreas tão díspares mas me tornaram um leitor profícuo em todas elas. Leio muito não ficção, história, biografias, e divulgação científica. Tem meses que me ocupo apenas com não ficção. Semana passada mesmo li o excepcional livro sobre a cientologia, do Lawrence Wright, e agora estou relendo Thimoty Snyder e lendo Carisma e Poder, do Ian Kershaw. Mas, nada se compara à ficção, ao romance. A ficção oferece um leque completo de tudo que tem nos outros gêneros, além do adendo valioso de seu caráter de identificação humana. Eu vi no curso de história o quanto a grande maioria dos professores eram limitados a apenas lerem sobre suas matérias de trabalho, sendo incultos sobre tudo o mais. E creio que isso seja uma lamentável característica do academicismo brasileiro, pois em todos os grandes escritores de história globais se vê que são profundos conhecedores e leitores de literatura. Eric Hobsbawm, Christopher Hill, Thompson, Ginzburg, etc, etc, que são grandes historicistas, dedicam uma substancial parte de suas produções à literatura. Então, eu vejo como uma enorme limitação o leitor não ler ficção. Claro que a regra de Borges vale sobre tudo, e a gente deve ler o que der prazer. Mas há muita ficção que dá prazer, e talvez o problema seja o que Roberto Bolaño, do Detetives Selvagem, uma vez conceituou muito bem, que nós, povos latino-americanos, devemos nosso subdesenvolvimento a não termos literatura de gênero, se referindo às pulp fiction, às fantasias, às narrativas puras. E pode ser um ótimo diagnóstico. Nos falta alguma coisa muito salutar que nos faz achar que tais fantasiações possam ser pouco sérias, ou demasiado infantis. O que talvez explique, abrangendo a percepção do escritor chileno, a paixão militar, a veneração por um patriotismo tosco, e uma deficiência mutiladora de autoconsciência nacional. Como estou divagando de forma espontânea, me permitindo um fluxo de consciência do citado Ulisses, isso casa com uma excelente interpretação escrita pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek da alma norte americana tomando como base os romances de Michael Crichton, o criador de filmes representativos da esfera midiática daquele país, como Jurassic Park.

Ode a meu amigo livreiro

Me tornei um leitor maduro. Explico. Até pouco tempo atrás, tinha lido quase todo meu “repertório” acumulado até pouco antes de completar 30 anos, quando me tornei, segundo aquele a quem dedico este post, “um leitor de catálogos e manuais” (não canso de repetir esta definição que adoro) e, ultimamente, nem isto. Bem, mais exatamente, até o Milton se tornar livreiro – fato decisivo, como veremos adiante, para modificar, espero que de modo duradouro, meu hábito de leitura. Antes, porém, breves considerações sobre trocas de carreiras.

É complicado, para aqueles que , como dizem, já cruzaram o Cabo de Boa Esperança (para não usar termos infelizes como Terceira ou Melhor Idade), redesenhar suas vidas. Primeiro, por já não se poder contar mais com a disposição da juventude. Ou, mais precisamente, é necessário se conciliar a disposição mental (que parece crescer com a experiência) com o declínio da disposição física. Depois, há circunstâncias peculiares a cada campo ocupacional, as quais se dividem em duas categorias – a saber, a confiança de terceiros na capacidade de trabalho e atualização de quem se aproxima da aposentadoria e a própria incerteza decorrente da instabilidade do cenário ocupacional (desgraçadamente conhecido por mercado de trabalho), típica dos dias que correm.

Tais fatos servem para realçar a juventude mental e a ousadia de meu amigo que, depois de, aos 50 anos, deixar uma bem sucedida carreira em tecnologia da informação (é assim que chamam ?) para virar jornalista e, novamente aos 60, largar tudo (bem, quase tudo: ele ainda publica assiduamente em seus blogs) para se tornar livreiro. Não canso de repetir sua história, quase como um mantra de autoajuda para aplacar a insegurança congelante dos mais jovens.

A principal razão de eu considerar seu movimento de virar livreiro um de extrema ousadia é que, mesmo tendo amado a literatura desde (deve haver uma expressão melhor equivalente a “a mais tenra idade”…), Milton comprou uma livraria exatamente quando muitas começam a fechar suas portas, a começar pelas maiores. Tal se deve à suposta “morte dos livros” ensejada pelas mídias digitais e preconizada pelos mais alarmistas. Ora, é claro que o livro não vai morrer, como sustentam sensacionalmente os filósofos do Parêntesis de Gutenberg. Não é possível, no entanto, se acreditar que a leitura de livros e impressos em geral seja hoje tão hegemônica como em tempos anteriores. Bem mais sensato é reconhecer que livros vem se tornando, pouco a pouco, um território de especialistas. É contra esta tendência que se posiciona o intenso ativismo bibliófilo. É também esta tendência que faz da decisão de alguém se tornar livreiro hoje uma de extrema ousadia, exclusiva dos que não nasceram para coisas pequenas.

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So much for the context. Tratemos de nos ater ao prometido no kaput, namely, de como a súbita disponibilidade de um amigo livreiro me tornou um leitor, senão melhor, ao menos mais contumaz. (este é um daqueles posts de desfecho previsível, mas vamos lá)

Semana passada, ouvi de um psicólogo que, ao contrário do que reza o senso comum, as livrarias não estão fechando devido à leitura em meios digitais, mas por causa da Amazon. Em suporte ao argumento, citou um par de livros (o CID (código internacional de doenças) e um outro) que, orçados em grandes livrarias, custavam em torno da terça ou da quarta parte no gigante do comércio online.  Ao externar seu espanto, ouviu de um livreiro resignado o conselho “compre sem hesitar !”. Nossa conversa enveredou, então, pela análise dos fatores econômicos e logísticos por trás de tal discrepância mas que foge, no entanto, ao (vá lá: escopo, de uma precisão semântica indispensável, é um baita clichê…) deste texto.

Antes do Milton comprar a Bamboletras, eu já tinha encomendado lá alguns livros, movido pela facilidade de poder contatar pelo facebook Lu Vilella, sua proprietária anterior. Não foi, no entanto, só pela conveniência que intensifiquei minha relação com a livraria após sua aquisição. Pois é igualmente fácil, além de muito mais barato, comprar livros pela internet e recebê-los pelo correio. De fato, sigo usando o expediente para importar um que outro volume, cuja aquisição por meio de livrarias físicas seria demasiado trabalhosa e demorada, além de onerosa.

Concluo, então, que, mais do que qualquer facilidade, o que ainda me leva a frequentar livrarias (bom, na verdade, apenas uma) é a qualidade da experiência. Não gosto de garimpar em estantes: o excesso de oferta tem para um geminiano um efeito sinestésico paralisante. Não troco por nada, isto sim, a possibilidade de conversar com o próprio livreiro ou seus ilustrados colaboradores. Gente que conhece minhas preferências de leitura e, como tal, é capaz de emitir recomendações confiáveis. O livreiro como curador. Ou, se quiserem, personal booker. E isto é praticamente impossível em grandes livrarias.

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Aos 20 anos, podíamos nos dar ao luxo de ler qualquer coisa que nos caísse nas mãos. Pois o tempo era uma commodity abundante e, portanto, não reputávamos leituras supérfluas como tempo perdido. Aos 60, é bem diferente. Começamos a ver o tempo como mais escasso e, logo, precioso. É por isto que, na maturidade, só consagramos tempo a leituras precedidas por fortes recomendações. Imperiosas, eu diria.

Tão logo me dei conta desta nova realidade, pensei que, doravante, só teria olhos para a não ficção até que, apenas mais recentemente, comecei a me reconciliar também com a ficção, com a qual tive tão pouco contato. Clássicos dos quais sempre ouvira falar sem jamais conhecer por experiência própria. Ainda que não saiba explicar por que bons livros fazem tanto bem, devo o hábito de sua leitura indubitavelmente ao Milton. Vida longa a ele e a sua aconchegante livraria !

Os blogs estão morrendo ?

Hossein Derakshan

Semana passada, Idelber Avelar, que dispensa apresentações, compartilhou um post de um blogueiro iraniano, Hossein Derakshan, que permaneceu ca. 6 anos preso pelo regime de seu país. Conversando com Milton Ribeiro, vim a saber se tratar de um post clássico.  Conferi. Lá pelo rodapé, se informava que sua tradução para o português fora publicada por uma revista mineira em 2015.

Nele, Derakshan lamenta a transformação sofrida pela internet durante o tempo em que permaneceu na prisão. Por volta do início dos anos 2000, a rede mundial se apresentava como um ecossistema de blogs, conectados e dialogando entre si por meio de uma malha de hyperlinks – imunes, deste modo, a qualquer controle por parte de alguma força ou poder central. O que encontrou, no entanto, ao sair da prisão, foram redes sociais de propriedade de grandes players tecnológicos dedicadas a prover seus usuários com feeds ou timelines sequenciais, determinadas por algoritmos especializados em auscultar e satisfazer as supostas preferências de cada usuário de modo a induzi-los a permanecer cada vez mais tempo nestas plataformas ao invés de, como antes, saltarem livremente de blog em blog.

Deste modo, seu célebre post, intitulado “Salve a Internet”, bem poderia se chamar “A morte da blogosfera” ou, mais genericamente, “A morte do hyperlink“. Numa de suas conclusões mais desoladas, Derakshan chega a equiparar  o  facebook à televisão.

Logo que passei rapidamente os olhos pelo texto, me deparei com algo que me pareceu, inicialmente, uma vulnerabilidade do argumento. Repetidas leituras não tardaram a me convencer, entretanto, de que o autor estava, na maior parte do tempo, coberto de razão. Posto ser inegável que a internet, inicialmente uma promessa de libertação da dominação imposta pelos broadcasting media, pouco a pouco se tornou um lugar onde poucos e gigantescos players formatam a informação que a maioria consome. De sorte que, temporariamente, abandonei o propósito de examinar um pouco mais de perto premissas que, de início, me pareceram superficiais ou apressadas. Ao mesmo tempo, me tornei um fã de Derakshan e, de imediato, um combatente em sua cruzada por uma internet mais democrática.

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Uma partícula de seu texto permaneceu, no entanto, reverberando em minha mente. Mais exatamente, quando diz, em tom de espanto, que, ao retomar, num surto de entusiasmo, à atividade blogueira ao sair da prisão em 2014, tudo o que sua super motivada escrita angariou, ao ser divulgada no facebook, foram três curtidas. O que o levou a concluir que, comparativamente a índices anteriores a seu encarceramento em 2008, sua audiência teria minguado drasticamente. Em seguida, culpa as redes sociais em geral e o facebook em particular pelo suposto declínio, em razão de uma suposta seletividade maligna de seu algoritmo.

Notem que, no parágrafo acima, uso o adjetivo suposto(a) duas vezes: primeiro em conexão com o declínio de audiência presumido pelo número de curtidas; depois, associado a alguma seletividade ideológica do algoritmo do facebook. Vejamos, então, por partes.

Ora, qualquer exame rápido das estatísticas de visitação de um blog é capaz de mostrar que o número de visualizações de um post supera em muito o número de curtidas da divulgação do mesmo em redes sociais. Deve ter a ver com a velocidade do feed, que faz com que muitas vezes não tenhamos tempo de curtir o compartilhamento por outrem de páginas que abrimos e lemos, na íntegra ou, na maioria das vezes, em parte.

Sobre a tal seletividade maligna do algoritmo. Ok, acredito em fantasmas e também em muitas teorias conspiratórias. Mas daí para se dizer que o facebook ou congêneres censuram deliberadamente os conteúdos que mostram em razão de posições políticas implícitas nos mesmos, menos. Bem menos. É claro que isto corresponderia ao ideal de muitos vilões de distopias da ficção científica.  Acredito, sim, que algoritmos possam identificar com alguma precisão a índole ideológica de textos compartilhados. Só que dificilmente isto se daria por algum tipo de análise semântica residente em alguma inteligência artificial. Não, ao menos, antes da implementação prática da web semântica sonhada por Pierre Lévy.

Então, é muito mais provável que o caráter ideológico de cada postagem seja determinado não pela leitura e interpretação automáticas de cada texto (imaginem o tempo e a capacidade de processamento que isto consumiria !) e sim pela mera quantificação aritmética de quem curte ou repudia cada publicação. Sabendo-se a inclinação política de cada usuário (o que não deve ser nada difícil), fica igualmente fácil, então, atribuir um rótulo ideológico àquilo que cada um curtiu ou execrou. Mais uma teoria conspiracionista ? Pode até ser. Só que bem mais verossímil, no entanto, do que robôs super inteligentes interpretando o que dizemos.

Postas estas ressalvas, cabe admitir que, conforme acredita Darekshan, seus posts escritos de 2014 em diante podem, de fato, estarem sendo lidos por um número significativamente menor de pessoas do que aqueles escritos antes de 2008. Nem tanto, todavia, em razão da recente centralização da internet em torno das plataformas de redes sociais (que ainda discutiremos neste post) mas, simplesmente, pelo crescimento exponencial da quantidade de blogs existentes desde seu surgimento até os dias que correm.

Até o momento, não obtive nenhum retorno de minha solicitação, pelo facebook, de um gráfico que desse conta deste crescimento. Mas as informações contidas na wikipedia falam bem alto. Quando surgiram, por volta de 1999, havia ca. 50 blogs; no final de 2000, já chegavam a poucos milhares; menos de três anos depois, saltaram para algo entre 2,5 e 4 milhões; hoje estima-se que existam em torno de 112 milhões e que 120 mil seja criados diariamente. Como eu disse, são números eloquentes.

Pensem agora na disputa entre todos estes sites na economia da atenção. Nos primeiros anos da blogosfera, todo autor era uma espécie de celebridade, representando posições independentes e/ou dissidentes em relação aos broadcasting media. Darekshan deixa isto bem claro ao afirmar que “Blogs valiam ouro e blogueiros eram como estrelas de rock quando eu fui preso em 2008.” Ora, é perfeitamente natural, então, que, com a pulverização do número de blogs de lá para cá, quando todo internauta se tornou um blogueiro em potencial, a audiência de cada blog tenha ficado restrita, salvo raras exceções (os tais blogueiros que são como pop stars), a um número progressivamente menor de leitores.

Meu amigo Milton Ribeiro costuma dizer, acho que como consolo a blogueiros neófitos, que a audiência espantosamente mais numerosa de seus blogs se deve fundamentalmente ao fato de já estarem no ar há bastante tempo; ouso duvidar disto, afirmando que seus blogs desfrutam de uma base privilegiada de leitores principalmente em razão dele ter começado quando ainda havia menos, muito menos blogs disputando a atenção de leitores. Quem tem razão ? O futuro dirá. Se daqui a dez ou vinte anos blogs que começaram hoje tiverem a audiência da qual Milton desfruta agora, ele terá razão. Se, no entanto, ostentarem números bem mais modestos, terei eu. Tanto faz, pois nem sei se haverá blogs até lá.

Não acho, no entanto, que o declínio assombroso da audiência dos blogs reflita alguma espécie de caduquice do meio mas, antes, uma irrefutável comprovação da realização de seu ideal – que é, ao menos segundo o que acredito, a possibilidade utópica de que todo e qualquer indivíduo tenha seu próprio lugar de expressão independente e omniacessível, para muito além dos limites de seu círculo pessoal. Já que, a rigor, qualquer um no domínio da linguagem e de alguma habilidade tecnológica (o primeiro é bem mais difícil do que o segundo) pode ter, a custos irrisórios ou inexistentes, seu próprio cantinho no ciberespaço. Outrossim, o anacrônico desejo, explícito ou não, de se tornar uma voz que se erga sobre as demais é, em 2017, absolutamente demodé.

Aqui, devemos falar sobre a incompreensível mania, que não obstante alimenta os sonhos de muitos, de tornar a atividade blogueira algo rentável ou até uma profissão em si. O que é tão óbvio e mesmo ridículo para qualquer um que entenda minimamente a economia da atenção num contexto saturado como o ecossistema de blogs em crescimento exponencial, não parece ser, no entanto, para alguns visionários ou, simplesmente, oportunistas. Por isto, me divirto todos os dias com as dicas monetizadoras de um site chamado Viver de blog, cujo nome é autoexplicativo. Tenho ganas de conhecê-lo. Seus cases de sucesso, ao menos. Só ainda não tive paciência.

Teimoso que sou, continuo achando que quem quer ser um broadcaster e investe num blog está apostando suas fichas no lugar errado. Pois blog são, idealmente e antes de mais nada, células expandidas e interconectadas pertencentes a uma rede neural – cujo poder (no caso, o conhecimento armazenado) reside, antes, distribuído na extensão da rede do que em quaisquer de suas células em particular. Se a proeminência de algumas delas sobre as demais se exacerbar, enfraquecem as conexões, morre a rede e, com isto, todo o conhecimento nela armazenado.

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Como sugeri acima, não acredito que redes sociais sequenciais como o facebook estejam matando na internet sistemas distribuídos como a blogosfera. Tampouco acredito que o facebook conspire contra a ecologia dos blogs ao não facilitar, em suas postagens, a inclusão de hyperlinks. Ao contrário, não apenas o facebook se constitui na mais poderosa ferramenta que conheço para a difusão de publicações em blogs, como facilita tremendamente a inserção de hyperlinks. Como ? – devem estar a me perguntar. A resposta é simples: nos comentários. Então, fica a dica. Se vocês estiverem se sentindo muito limitados por não poderem incluir em cada postagem no facebook mais do que um único hyperlink (o qual será generosamente destacado pelo algoritmo, inclusive com a possibilidade de seleção de uma imagem ilustrativa), basta incluir quaisquer outros no thread de comentários sob a postagem, à razão de um comentário para cada hyperlink que você queira destacar, que o facebook se encarregará do resto, mais facilmente do que em qualquer editor de blog.

É claro que a propalada seletividade do facebook não é nenhum segredo – seu vestígio mais emblemático sendo a configuração default “mais importantes” no canto superior do site, em “feed de notícias” – contra cuja persistência vitupera repetidamente meu amigo Marcos Abreu, mas que pode, no entanto, ser facilmente comutada para “mais recentes”. Por meio deste singelo ajuste, nos tornamos imunes ao intrometido algoritmo que insiste em mostrar o que ele julga “mais importante”.

Mas não é só isso. Autores como Harari bravejam contra a profusão de gatinhos fofos que somos obrigados a ver, volta e meia, na timeline. A resposta a este ranço é um tanto quanto óbvia, pois se os tais gatinhos insistem em aparecer diante de nossos olhos, detemos a responsabilidade exclusiva por convidar ou aceitar amigos que os postam. Não precisaria falar mais disto, mas nunca é demais lembrar que:

1) praticamente todas as postagens em redes sociais pertencem a uma das duas seguintes categorias:

lifecasting – postagens que dão conta do cotidiano de cada um, no intuito de glamourizá-lo, mas que são quase sempre irrelevantes para os outros. Ex.: pratos de comida sem as respectivas receitas; e

mindcasting – postagens, sob a forma de textos na primeira pessoa ou links compartilhados, que trazem em si algum fato ou ideia e buscam angariar apoio, sob a forma de concordância, ou desaprovação para os mesmos.

É, portanto, por meio de postagens de mindcasting que as melhores discussões se materializam em redes sociais.

2) redes sociais podem (ia escrever “e devem” mas, pensando bem, isto fica a critério de cada um) ser configuradas por usuários como personal learning networks (PLNs) – que é uma forma de descrever aquelas redes que congregam perfis notabilizados por compartilharem conteúdo informativo ou crítico.

Ora, configurando nossas redes como PLNs, por meio da análise criteriosa de quem admitimos em nossos timelines, privilegiamos a inclusão de sujeitos mais comprometidos com o mindcasting do que com o lifecasting e asseguramos, com isto, a manutenção de um, vá lá (dando algum crédito a Derakshan), canais de TV altamente customizados, informativos e provocativos.

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PS: Depois que terminei de escrever este post, Jean Scherf postou no facebook, em resposta a minha enquete, o seguinte gráfico:

Eu não queria falar sobre xenofobia, mas…

Logo que conheci o blog Opera e Ballet, de Ali Hassan Ayache, simpatizei com sua prática de replicar textos meus e de outros autores e até com sua militância em favor de muitas boas causas musicais. De modo que dei pouca ou nenhuma atenção às diatribes que lá apareceram contra Marin Alsop à frente da OSESP. Até por sempre ter sido favorável a uma melhor distribuição do poder em instituições culturais (dentre elas as orquestras) entre músicos, maestros, ouvintes, críticos e, vá lá, mesmo patrocinadores. Depois, Lady Alsop dispensa defensores: sua competência e reputação (uma de nada serviria sem a outra) falam por si mesmas.

Então, veio, semanas atrás, a mais explicita incitação à xenofobia que já vi no meio musical. Francamente, quem seria neste país qualquer coisa em música não fosse a contribuição de um ou mais estrangeiros ou descendentes de imigrantes ? Ao ler, estupefato, o ataque endereçado, desta vez, à incrível regente italiana Valentina Peleggi, me limitei a repassar a peça difamatória ao amigo Milton Ribeiro, cuja indignação e maestria verbal se encarregaram de publicizar o ocorrido sem que eu precisasse pronunciar uma palavra sequer. Aqui, a excelente réplica do Milton.

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Até dias atrás, quando a bola da vez do Opera e Ballet passou a ser o spalla da OSESP, o italiano Emmanuele Baldini. De pronto, cutuquei o Milton outra vez – que, no entanto, já tinha dito a Baldini que nada diria sobre o ocorrido, a fim de não dar visibilidade a um ataque tão gratuito – com o que o italiano concordou, apenas agregando que ler um troço daqueles doía (acho que ele não se importará de eu ter revelado isto, principalmente em razão do que escreverei daqui em diante). Dada, então, a sábia reticência do Milton, me coube a missão de tecer este pequeno instrumento de desagravo (da última vez em que fiz isto, me chamaram de puxa-saco).

Vou poupá-los de citar a íntegra do post do Opera e Ballet, destacando, tão somente, duas expressões que saltam aos olhos como grandes disparates, só “deglutíveis” por aqueles que não tenham a mínima familiaridade com a música nem tampouco com o contexto envolvido – a saber, o das orquestras sinfônicas no Brasil e no mundo.

Primeiro, Baldini é chamado por Ayache de “spalla mediano”. Qualquer um que já tenha ouvido o violinista jamais partilharia desta opinião. Em seguida, Ayache declara, com a maior cara de pau, que “Baldini acomodou-se como spalla da OSESP”. Ora, dizer isso é tão absurdo como dizer que Messi ou Neymar se acomodaram a jogar no Barcelona. Ou então (já que falamos de italianos) que algum piloto tenha se acomodado a competir pela Ferrari. Percebem, com isto, o absurdo de se afirmar que alguém se acomodou como spalla da OSESP ? Como é possível se considerar um acomodado quem se encontra no topo de sua carreira ?

É preciso dizer, ainda, em favor da presença de estrangeiros entre nós, que, especialmente em casos como os dos italianos Baldini e Pellegi, pinçados por Ayache como exemplares (num tiro que, felizmente, lhe saiu pela culatra…), sua influência tem um alcance que transcende em muito o âmbito de seu trabalho junto à instituição que os acolhe (neste caso, a OSESP, que ela rege e na qual ele toca numa posição de destaque) – já que ambos perseguem, como missão de vida, oportunidades de compartilhamento de seus conhecimentos em festivais, cursos e programas educativos em nosso país. De tal forma que, sem estrangeiros assim, ainda estaríamos, em áreas tais como a música, em plena idade da pedra.

Então, a frase com que Milton termina seu post de desagravo em favor de Valentina também se aplica perfeitamente ao caso de Baldini, que não deveria ser jamais um problema – mas, antes, um motivo de orgulho para São Paulo.

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Acompanhando de longe a intensificação dos ataques xenofóbicos naquele blog, minha amada Astrid formulou, como sempre, a pergunta crucial: a mando de quem Ali escreve ? Quem paga suas contas ?

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As anotações para este post (e para o próximo, sobre o problema da didática da regência) se amontoaram ao redor de meu PC por vários dias, enquanto aderi à resolução de não escrever uma única linha no blog antes de tocar, na última terça-feira (nem parece que já faz tanto tempo !) a primeira sinfonia de Mahler e, ontem, no lançamento do CD de Leonardo Winter.

Dias antes, quando pensamentos enfurecidos acerca dos recentes episódios de xenofobia ainda dominavam minha mente, Valentina disse ” Vi que vocês vão tocar Mahler 1 !! Fantástico !! Se divirta, tem solos incríveis. ”

Obrigado Valentina ! Obrigado, Leonardo ! Obrigado, Mahler !