A educação a distância e o enfraquecimento da voz docente

Blogar é procrastinar. Isto por que, a menos que tenhamos um blog dedicado (tido, neste caso, como referência em sua área temática) e, consequentemente, monetizado, sempre que nele mergulhamos – e, acreditem, manter um blog toma muitas horas – estamos adiando tarefas mais urgentes, quase sempre associadas a nosso(s) modo(s) de sustento. É como se o blogueiro estivesse sempre prestes a ouvir de entes próximos a clássica exclamação, atribuída à esposa de Richard Strauss“- Vá compor, Richard !”.

Dito isto, interrompo temporariamente o burocrático (e, por vezes, difícil) trabalho, ensejado pela pandemia, de verter ao Moodle (plataforma ultra formatada de educação a distância) disciplinas acadêmicas que ministrei por  décadas, em encontros presenciais, periódicos e, por que não dizer (ainda que isto possa causar horror a algum teórico da educação), improvisados. Não estou, com isto, preconizando a prática a quaisquer docentes. O planejamento e a sequenciação pedagógica são, sem sombra de dúvida, absolutamente necessários a professores encarregados, num modelo escolar, de administrar a aquisição de um enorme volume de conhecimentos a um grande número de alunos.

Tal não é a situação, no entanto, no caso específico de aulas individuais ou em pequenos grupos de instrumento musical, que transcorrem numa abordagem clínica, em que os passos imediatamente seguintes são determinados a cada instante em razão da escuta docente.

Mas não vim aqui para reclamar disto – até por que, se em décadas de magistério, ainda não tivesse apreendido a ajustar planos de ensino e quetais a esta imponderabilidade intrínseca, melhor teria sido mudar logo de profissão.

A peste está colocando em cheque, entre tantas outras coisas, pressupostos educacionais há muito naturalizados e poucas vezes criticados – dentre os quais o tradicional binômio professor/livro-texto, sobre o qual repousa grande parte da atividade escolar. Mais ou menos como no caso de um ator preso a um script, quase toda interferência docente se dava no sentido de maximizar, por meio de estímulos positivos e inibição de eventuais desvios de processo, a assimilação de conteúdos pré-estabelecidos. Não que tais conteúdos, em grande parte conhecimentos e habilidades, não fossem essenciais à aquisição de artes e ofícios. Muito antes o contrário. Só que a curiosidade, a capacidade crítica e a auto-aprendizagem podiam muito bem passar ao largo da vida acadêmica de muitos estudantes outrossim brilhantes. Não canso de lembrar do caso de uma colega de um de meus filhos, dentre as melhores de sua turma, com notas irrepreensíveis, que, de certa feita, perguntou se o Japão ficava na Europa.

Hoje, dependendo de como se posiciona em relação aos meios de pesquisa e aquisição de conhecimento facultados pela web, um estudante depende cada vez menos, em sua formação, da voz docente. Bons professores sabem disto e, antes de se renderem obsoletos, se reinventam. Em vez de respostas, oferecem perguntas. No lugar de certezas, dúvidas. E, sobretudo, antes de investirem qualquer fonte de uma autoridade suprema, ensinam meios de validação capazes de equipar sujeitos para a escolha de suas próprias referências.

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Leituras obrigatórias são um tipo sofisticado de violência. “- Ah, mas o prazer da leitura só se adquire com a força do hábito, e leituras obrigatórias são o que há de melhor em se tratando de incutir tal hábito”, dirão os defensores da escolarização – aos quais retrucarei de pronto: “- Mas nenhum prazer se compara ao da descoberta casual de um grande livro – a qual se dá muito mais frequentemente por recomendação confiável do que por imposição curricular.”

(a língua inglesa dispõe de uma palavra adorável e intraduzível – serendipity – para designar a descoberta casual)

Estamos imersos numa cultura de textos sagrados. Em se tratando de escritos religiosos, não faltarão filósofos, intelectuais ou cientistas a lhes minar a credibilidade ou a própria relevância. Na arte, infelizmente, a situação é um pouco mais complicada. Pois, ainda que sempre possamos nos apoiar sobre uma crítica mais lúcida e/ou arguta, o mercado está aí para subverter as hierarquias estéticas, de tal modo que hordas ainda se deixam levar pelo “sábio consenso das maiorias” que consagra bestsellers e blockbusters. Em música tampouco é diferente. O que só nos leva a concluir que, nestes casos, o livre artbítrio não é assim tão livre.

O mantra do consumo cultural acrítico é o célebre “gosto não se discute”, tão invocado em defesa de obras que não resistem a uma apreciação mais demorada. Ora, gosto se discute sim. A pretensa inatacabilidade do gosto lembra muito a revolta de Richard Dawkins em relação à aura de respeito (enquanto não questionamento) que cerca toda e qualquer crença religiosa. Mas isto já é outro assunto.

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A sala de aula e a internet. Dois paradigmas educacionais contrastantes. No primeiro, o lugar do professor é um de autoridade. Mais do que ser quem controla o processo, é através dele que o mesmo se dá. Depois que uma aula começa, ninguém entra e ninguém sai. Celulares, quando permitidos, são ostensivamente indesejáveis. Neste formato, não cabe ao aluno questionar o propósito ou a eficácia das atividades propostas, já que fazem parte de um contrato previamente estabelecido entre, de um lado, instituições e professores e, de outro, alunos ou seus pais ou responsáveis e tacitamente aceitas, portanto, por ambas as partes.

Alguns  aspectos questionáveis, ainda que velados, do estado de coisas acima descrito, muitos deles resumidos na oposição entre saberes dos mais novos e dos mais velhos, foram escancarados com a implementação praticamente hegemônica, ensejada pela peste,  de formatos de educação a distância, antes restritos apenas a segmentos do ensino superior. Crianças tendo aulas em casa, situação antes impensável, se tornou o novo normal. Nesta modalidade, a voz de professores, que antes imperava em ambientes compulsoriamente silenciosos, está agora restrita a apenas uma  das múltiplas janelas que podem se abrir diante de cada aluno, ao sabor de sua atenção flutuante.  Isto é ruim ? Não necessariamente. Se há, por um lado, um evidente enfraquecimento da autoridade docente, existe também, claramente, um empoderamento discente. Ainda que poucos saibam utilizá-lo, em razão de não terem tido tempo de serem treinados para tanto.

Noutras palavras: se hoje ficou bem mais fácil a quem não quer não assistir a uma aula, também é verdade que agora só assiste a uma aula quem quer – o que é muito melhor !

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