O Diário de um Maquinista (Sérvia, 2016)

A sinopse de O Diário de um Maquinista (Dnevnik Masinovode, Sérvia, 2016), de Milos Radovic, começa, de um jeito um tanto inusitado, informando que, durante sua carreira, todo operador ferroviário em atividade mata, sem querer, de 15 a 20 pessoas. Ainda que este fato seja irrelevante em países, como o nosso, com uma malha ferroviária sucateada, o problema assume proporções preocupantes onde esta modalidade de transporte é mais importante – tal como, por exemplo, na Sérvia, palco da narrativa.

As mortes assumem predominantemente a forma de suicidas vagando pelos trilhos ou do abalroamento de veículos encurralados, imprudentemente ou não, na trajetória de locomotivas. Atropelamentos e abalroamentos são tão corriqueiros que ferrovias empregam psicólogos especialmente para atender maquinistas traumatizados por tais acidentes. A cena, logo no início do filme, em que psicólogos entrevistam o protagonista depois do abalroamento de uma van é hilária. Sem, no entanto, mais spoilers por aqui

A familiaridade com a morte não é exclusiva dos ferroviários. Forças militares e profissionais de saúde convivem, em maior ou menor grau, de acordo com o contexto (guerras, crimes, acidentes, epidemias e doenças terminais), com fatalidades. O termo inglês casualties dá uma boa ideia da banalização profilática da morte em nome da saúde mental dos que exercem certas ocupações.

É sempre refrescante travar contato com cinematografias estranhas. Neste filme, a novidade é o tratamento dado à morte – a qual, sempre que ocorre, toma nas telas um lugar de evento principal. Se houver um culpado, como no caso de assassinatos, será um filme policial, provavelmente um whodunit. Se for acidental ou por doença terminal, será um drama. Tais rótulos são de extrema relevância para a classificação em gêneros cinematográficos que domina os cardápios em canais de streamming.

Certamente Milos Radovic, ao roteirizar e dirigir sua história, não pensou em como o produto final deveria ser classificado. Tal dúvida, todavia, uma vez detectada e não dirimida, parece essencial para o Google ou para o canal de streamming Now, os quais classificaram o filme, respectivamente, como drama/comédia e drama/tragicomédia. Para o espectador, tais rótulos levam a priori a uma única certeza: a de se tratar de uma peça de humor negro.

O humor negro flerta com o politicamente incorreto, pois se trata, quase sempre, de brincar com aquilo que não se brinca. No caso, a morte – situação frente à qual devemos show some respect (tento, em vão, me lembrar de um filme no qual a expressão em itálico é uma fala importante). Em seu filme, Radovic não brinca, propriamente, com a morte mas, antes, com as reações dos personagens à mesma, em diversos graus de banalização ou não, tais como na supracitada psicoterapia pós-traumática; na estufa onde o protagonistas cuidadosamente cultiva flores brancas para homenagear suas vítimas acidentais ou na ansiedade de um novato que, em seis meses de profissão, ainda não havia atropelado ninguém.

É comum, em cinematografias alternativas, termos que tolerar uma fotografia que, por vezes em razão da escassez de recursos, deixe algo a desejar em relação a um padrão de excelência ao qual o cinemão já nos acostumou. Neste caso, não. Cores vivas e altos contrastes, principalmente na iluminação de problemáticos interiores, chegam a lembrar os áureos tempos do Technicolor.

O Diário de um Maquinista é um filme delicioso – diferente, provavelmente, de tudo o que você já viu.