Por que o jazz é a música do futuro

Com o avanço exponencialmente mais rápido a cada dia da inteligência artificial (leia-se: cada vez mais ocupações até hoje desempenhadas exclusiva ou predominantemente por humanos vem sendo total ou parcialmente automatizadas), todas as profissões conhecidas tendem a desaparecer. Umas antes, outras depois (o famoso estudo de Oxford). É só uma questão de tempo. E com a morte das profissões, está decretado o fim do trabalho. Podemos até duvidar que isto aconteça durante nossas vidas. Mas, queiramos ou não, testemunhemos ou não, se trata de um desfecho histórico inevitável.

Por exemplo. Ainda que a fotografia já tenha sido uma profissão com nichos bem específicos de atuação profissional (jornalismo, publicidade, perícia, etc.), é difícil acreditar que hoje, com todas as facilidades embutidas em telefones celulares, seja mais do que uma ocupação recreativa ou, no máximo, artística. Mas a própria figura do artista profissional, que comercializa o que produz para o consumo de meros espectadores, tende a desaparecer com a universalização da criação artística, hoje privilégio de alguns, doravante ao alcance de toda a população.

Este quadro é demasiado sombrio ? Soo pessimista ? Não acho. Primeiro, por que já está acontecendo. Se já é difícil, senão impossível, se viver de fotografia, o mesmo acontece com a música. Como evitar o encolhimento das profissões musicais quando fica cada vez mais fácil a qualquer um criar e produzir sua própria música ? Isto sem falar no enorme manancial de música do passado que pode ser garimpada a qualquer instante a um custo que tende ao zero. E a produção textual, antes um privilégio de indivíduos mais instruídos, emprega cada vez menos gente, como vimos no post anterior.

Não me entendam mal: falo do fim das profissões, e não das ocupações ! É claro que as últimas continuarão (oxalá !) existindo; só não poderemos mais contar com elas para garantir a subsistência.

O futuro é lúdico. Ao menos se a economia se transformar radicalmente e uma revolução moral permitir que a humanidade deixe de culpar a si própria (e aos outros) pelo ócio. Mas voltemos à música, objeto deste texto.

Por mais abomináveis que possam ser, rótulos também são bem úteis por nos ajudarem a categorizar. Aí incluídos os gêneros musicais. Se a música erudita ambiciona a posteridade, para além da morte do compositor, o pop visa o lucro imediato, desfrutável ainda em vida. Sei, são generalizações um tanto apressadas. É claro que o melhor pop, graças ao culto dos fãs, sobrevive a seus criadores. E a indústria bem que tentou fazer da música clássica um produto. Mas, via de regra, pop é coisa de gente viva e música clássica, de gente morta. E não me venham, por favor, com exceções, que existem, e muitas. Por que minha generalização, por mais tosca que seja, se aplica a uma amostra estatisticamente neutra, a saber, o que mais se ouve no rádio e em concertos.

Mas e o jazz ? Parece correr em banda própria, paralelamente à música conforme vista pela indústria. É como se, nela, a música, pop ou erudita, fosse, de certo modo, domesticada. O jazz, não: permanece uma manifestação selvagem. A maior prova disto é que seus produtores, ao invés de tentar ajustar a música a demandas de mercado, na maior parte das vezes se limitam a capturá-la (uma amostra, como veremos adiante).

Sim, bem que a indústria tentou domar o jazz e, por um breve instante, até conseguiu. Kind of Blue foi um campeão de vendas tão expressivo como um hit pop. Mas já estou, aqui, a falar da exceção. Todo jazzófilo sabe que, por mais discos de músicos icônicos que tenha colecionado, o jazz enquanto risco (a alma de toda improvisação, alicerce do jazz) só acontece em apresentações ao vivo, quase sempre para audiências minúsculas.

Não toco jazz. Tenho profunda inveja de quem sabe e se atreve a improvisar. Mas posso ter ideia da estranheza com que um músico de jazz deve perceber um produtor de gravações do gênero. Ora, todo disco de jazz é não mais do que uma pálida amostra de toda a gama de possibilidades que uma performance poderia ter assumido. É justo isto que o torna tão interessante.

Continuo, mesmo assim, com a ideia de que o produtor de discos de jazz é um profissional condenado ao fracasso por tentar, repetidamente (fez, na verdade, disto uma profissão), capturar num meio reproduzível algo que jamais acontecerá do mesmo jeito no tempo. Por isto mesmo, sou enormemente grato aos bons produtores de gravações de jazz, por quem nutro profundo respeito.

Mas por que o jazz é, afinal, a música do futuro ? Elementar, meu caro Watson: por que é a música do aqui e do agora. Enquanto toca, um improvisador exponencial não está preocupado com a remuneração que poderá auferir da performance, nem tampouco com o que legará à posteridade. Naquele momento, só está preocupado em superar a si próprio, ao que entregou na gig anterior. Neste sentido, é a música mais honesta que conheço. Remuneração e legado interessam, é claro, mas são meramente circunstanciais.

Rieufobia

Dia desses me deparei, na algaravia do facebook, com o seguinte comentário, sob uma postagem de divulgação de um texto sobre o estupendo ensemble parisiense sans baton Les Dissonances:

Sempre que músicos conversam surge a rieufobia. Por que?

Em ambientes musicais, tal pergunta soa francamente retórica e revestida de fina ironia. Só que a maioria dos leitores deste blog, que chegam até ele principalmente por meio de anúncios do Sul21 em redes sociais, não é constituída de músicos. Até mesmo entre meus amigos no facebook há muitos que não são músicos. Por isto, decidi responder à interessante pergunta (juro que pensei bastante nela) usufruindo da atemporalidade, da permanência e da introspecção inerentes ao blog.

Não estaria muito longe da verdade se simplesmente dissesse que o que André Rieu oferece a seus apreciadores não passa de uma embalagem vazia. Pois a importância absolutamente secundária da música em todo o complexo cênico vendido em suas apresentações seria suficiente para corroborar esta resposta.

Se fosse apenas para brigar com campos adversários, haveria evidência suficiente para chamá-lo, assim como tantos outros que se apropriam de elementos musicais a fim de produzir um encanto irresistível em audiências mal formadas e/ou informadas, de charlatão. Tal qualificação não suscitaria reações adversas em quem quer que tenha algum conhecimento musical e nutra um certo apreço pela música. Tal querela, no entanto, não valeria a pena.

Sigo, então, perseguindo o propósito de explicar em termos objetivos por que o que Rieu optou por fazer, conquanto lucrativo, não passa de… charlatanice (me desculpem se não encontro palavra melhor que o descreva).

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Inicialmente, examinemos o público que se encanta com seus espetáculos comparativamente às audiências que efetivamente buscam, em concertos presenciais ou gravações, a fruição musical e a ampliação do repertório que conhecem.

Tomemos, inicialmente, o típico melômano com vasto conhecimento musical. Seu repertório conhecido, conquanto abrangendo vários séculos, algumas dúzias de compositores e centenas de obras, é por definição incompleto. Nosso amigo melômano tem profunda consciência disto e faz da exploração de territórios desconhecidos e inexauríveis uma missão de vida.

Num nível intermediário, temos os apreciadores de música que “comem o mingau pelas bordas”. Pertencem a esta categoria aqueles capazes de identificar, após ouvidos uns poucos acordes, trechos da quinta e da nona sinfonias de Beethoven, do primeiro concerto de piano de Tchaikovsky, do segundo de Rachmaninoff, de Carmina Burana, da Pequena Serenata Noturna de Mozart, das Czardas de Monti, das Estações de Vivaldi, da Ária na Corda Sol ou do coral Jesus Alegria dos Homens de Bach, do Bolero de Ravel, de algumas valsas vienenses e de umas poucas árias de óperas. A ópera é um nicho bem especializado, mas é pouco provável que a maioria de seus apreciadores já tenha ouvido obras inteiras, de onde suas árias favoritas foram desmembradas.

Representantes das duas categorias acima, conquanto frequentem salas de concerto (os da primeira muito mais do que os da segunda), sabem que não podem restringir a descoberta de novas obras ao repertório habitual de conjuntos a cujas apresentações tenham acesso. Por isto, costumam investir pesado na formação de discotecas ou, mais recentemente, em serviços de streamming. Bem, estou sendo otimista. Na verdade, acho que só os membros da primeira categoria fazem da audição de gravações de repertório novo um hábito regular.

Um terceiro modo de relação com a música dita “clássica” é o praticado por pessoas que nunca ou muito raramente (só em casos circunstanciais, como, por exemplo, quando não tem como recusar um convite) frequentam concertos de qualquer espécie. É o público, por excelência, dos concertos populares (que prefiro chamar de demagógicos), o qual, mesmo sem empreender qualquer esforço ou iniciativa para ouvir orquestras ou conjuntos de câmera aos quais tenha acesso, acredita, talvez por ter ouvido falar, que a música faça bem para a alma, que é uma maneira de manter jovens no bom caminho, que concertos ao ar livre são ótimos para popularizar uma manifestação cultural de outro modo “elitista” e até que a música tenha alguma influência na aprendizagem (o célebre efeito Mozart). De quebra, a música clássica confere a quem professa algum apreço pela mesma um certo verniz cultural.

Concertos demagógicos em geral e os de André Rieu em particular contemplam exclusivamente os integrantes desta terceira categoria. Todos os restantes padecem, como bem disse meu comentarista, de rieufobia.

 

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Um dos maiores problemas dos concertos demagógicos é a ideia de que a música pode ser levada às audiências por amostragem, com trechos selecionados de muitas obras concebidas para serem ouvidas na íntegra. Como num desfile variadíssimo de épocas, lugares, gêneros e estilos, somos contemplados com um mosaico aleatório de recortes cujo único objetivo é angariar o aplauso fácil. Nestes eventos, a imersão mais prolongada no universo de uma obra ou autor, como em concertos sinfônicos, está fora de qualquer questão.

Notem que concertos sinfônicos com mais de uma hora de duração costumam ter no máximo três ou quatro obras, não sendo raros aqueles com apenas duas ou até mesmo uma só. Suponho que a enorme profusão de “números” curtos, entrecortados por aplausos, em concertos populares tente emular, de algum modo, uma dinâmica de espetáculo específica da música popular, limitada, ao mesmo tempo, historicamente pela duração do que cabia num lado dum disco de 78 rpm e também pelo próprio exaurimento de suas formas depois de 3 ou 4 minutos.

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Muito da apologia que se faz dos espetáculos capitaneados por Rieu está fundada na soberania absoluta do gosto popular. Só que, neste caso, não faz sentido algum se falar numa opção por um tipo de espetáculo por parte de ouvintes que não têm a menor ideia da vastidão daquilo que ignoram. A imensa popularidade, portanto, de Rieu e congêneres é, no fundo, reflexo de um problema maior de educação.

Conquanto Rieu tenha alcançado, ainda que por méritos próprios, uma evidência que o coloca como símbolo internacional desta espécie de degeneração da música de concerto, está longe de ser seu representante exclusivo. Sua versão nacional mais conhecida é o pianista e maestro João Carlos Martins, que já virou até filme e enredo de escola de samba. Os agravantes, no caso de JCM, são a exploração do próprio “coitadismo” e o pretenso trabalho social que desenvolve.

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O surgimento de personagens como Rieu,  que personificam para uma parcela numerosa do público o que se poderia chamar de “a cara da música clássica” (do mesmo modo que, até pouco tempo atrás, os “3 tenores” encerravam para muitos o significado do canto lírico), é um fenômeno típico da época em que vivemos – na qual a celebração da autoria deu lugar à primazia absoluta da figura do intérprete. Pois se antes os grandes festivais serviam principalmente como plataforma de lançamento para compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil ou Milton Nascimento (ainda que os mesmos fossem, incidentalmente, intérpretes de suas próprias obras), o que temos hoje, em reality shows como Fama ou The Voice, é a busca incessante por novos invólucros descartáveis para antigos sucessos. Esta tendência reflete perfeitamente uma opção exercida pela indústria do entretenimento que, não sem razão, talvez por perceber que a autoria sofre períodos recessivos nos quais bons autores não conseguem suprir a demanda permanente por novidades, se volta para a fabricação de celebridades fugazes capazes de dar ares novos a velhas canções repaginadas.

A música erudita desfruta atualmente de um status de anacronismo e elitismo em parte por resistir a se alinhar a esta tendência, i.e., nela a autoria ainda prevalece sobre a interpretação. Explico. Por mais notórios que sejam os regentes ou solistas, a parte mais assídua e expressiva do público que aflui a concertos sinfônicos ainda sai de casa primordialmente para ouvir obras de fulano ou beltrano do que, propriamente, “versões” das mesmas por este ou aquele maestro ou solista. Prova disto é que obras conhecidas por intérpretes desconhecidos ainda atraem muito mais público do que obras desconhecidas por intérpretes célebres. Neste contexto, figuras como Rieu, que logram uma popularidade análoga à de muitos artistas pop, constituem uma grande exceção, só possível devido às concessões cometidas em detrimento da qualidade da experiência musical.

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A exuberância visual de um espetáculo de Rieu também merece uma análise mais demorada, com dois pontos a serem destacados. Primeiro, temos os trajes de gala, com flagrante sugestão de indumentárias de época, como a reforçar uma ideia de deslocamento mágico entre o que se passa no palco e o cotidiano de quem assiste a esses shows.  Como se, através do espetáculo oferecido, o público pudesse se transportar, ainda que por breves instantes, a  mundos distantes e/ou inexistentes de luxuosas cortes de outrora. Algo como um complexo de Sissi. Ou a suposta magia de um desfile na Sapucaí.

Segundo, salta à nossa percepção o fato de que, enquanto concertos são idealizados primordialmente para serem ouvidos, o circo de Rieu é concebido essencialmente para ser visto. Não tenho como afirmar que existam à venda muito mais DVDs do que CDs do músico – o que constituiria uma tremenda inversão dos números do mercado da música clássica. Posso, no entanto, sustentar que seus DVDs possuem muito mais apelo aos ouvintes do que seus CDs. Já que, enquanto os primeiros não conhecem nenhum produto concorrente, já os últimos competem em franca desvantagem com inúmeras outras gravações das mesmas obras.

Até que ponto esta maior resistência de assimilação aos formatos visuais oferecida pela música de concerto em relação à popular está por trás da baixa popularidade da primeira quando comparada à do universo pop, no qual André Rieu deve ser incluído, é uma pergunta que não sei responder.