Atrações locais que “abrem” megashows de celebridades globais recebem alguma remuneração por isto ou, como parece mais lógico, pagam para fazê-lo ?; ou Sobre títulos bombásticos e limitações do streaming

Acompanhando de longe os últimos megashows a acontecerem em minha cidade, me ocorreu perguntar se atrações locais que “abrem” espetáculos de celebridades globais efetivamente recebem algum tipo de remuneração para fazê-lo ou, efetivamente, como me parece bem mais lógico, pagam para estar ali, com toda aquela infraestrutura emprestada e provavelmente a maior audiência que hão de encarar em suas carreiras. Não, a pergunta não é retórica. E por mais preconceito que possa denotar, me apresso em esclarecer que, de acordo com a teoria da qualidade distribuída, ou dispersa, não é de todo improvável que, circunstancialmente, artistas desconhecidos fora de seus nichos locais tenham muito mais qualidade, num sentido amplo, do que as celebridades que guarnecem. Retornaremos a isto em seguida.

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Admito. Títulos bombásticos, ultrajantes, constituem um grande atrativo – razão pela qual a eles recorro com frequência, mesmo sabendo que quem a eles reage mais prontamente muitas vezes sequer lê o texto ao abrigo dos mesmos. Isto é fácil de provar. Num exemplo recente, compartilhei um excelente artigo publicado em Evonomics cujo bem escolhido título rezava How America Hates Socialism without Knowing Why (Como os EUA odeiam o socialismo sem saber por que). A peça estabelece uma arguta correlação entre o grau de confiança no país (i.e., em seus homens públicos, segundo dados da Transparência Internacional) e o apreço de seus cidadãos pelo socialismo. Para meu espanto, um troll comentou, sob a postagem: Parece que a América já está tendo acesso a história e sabendo o que foi o socialismos ao longo destes cento e alguns anos(sic). Normalmente, não reajo a este tipo de provocação. Só que, neste caso, minha curiosidade foi maior e tive que perguntar se o comentarista lera, de fato, o artigo.  É claro que não obtive resposta alguma.

Numa situação mais remota, fui chamado de idiota prá baixo ao postar um texto sob o descaradamente apelativo título Por que gosto de assistir ao jornalismo da Globo. Até agora não sei quantos dos que protestaram com indignação efetivamente leram o que escrevi.

Não quero dizer, com isto, que leio todas as letras miúdas sob os mais chamativos títulos que desfilam na timeline. Até por que o expediente de ler apenas as manchetes em busca de conteúdos que nos interessam é pelo menos tão antigo quanto os jornais impressos – não tendo, aliás, as manchetes outra função senão a de permitir que evitemos a leitura de conteúdos que se nos afigurem como menos relevantes. Só que, para tentar evitar pagar micos, me abstenho de comentar textos que não tenha lido, tão somente a partir de seus títulos.

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Como falávamos acima, a probabilidade de um frequentador contumaz de megashows se deparar ao acaso com shows de abertura de algum modo superiores às celebridades que os sucedem no palco não é, ao contrário do que empresários acreditam, totalmente nula. Até por que muitas bandas hoje célebres mas então obscuras devem ter sido descobertas ao abrirem shows de artistas consagrados. Se este tipo de evento inesperado, “fora da curva”, de fato existe como possibilidade concreta, tal se deve à consistência da teoria da qualidade dispersa, ou distribuída, à qual não cansamos de aludir neste blog, que pode ser mais ou menos formulada como:

Deve haver, oculta sob o manto da diversidade, muito mais qualidade do que qualquer que já tenha sido revelada pela indústria do entretenimento, posto que esta , em sua seletividade predatória, é incapaz de acessar, por meio de seus radares centralizados, o que de melhor existe como fruto da criatividade e expressão artística humanas.

Num paradigma anterior, astros predestinados a algum sucesso nas gravadoras e no showbusiness eram frutos de escolhas arbitrárias, orientadas por perspectivas de mercado, de produtores todo-poderosos. O binômio mais emblemático deste estado de coisas é a exitosa associação entre George Martin e os Beatles – o primeiro, um executivo fonográfico incumbido pela indústria de descobrir sons que, prensados em discos de vinil, constituíssem objetos de desejo imediato do maior número possível de consumidores, e os últimos, um conjunto de jovens menestréis como qualquer outro em terras britânicas. Sei que esta última afirmação tende a angariar, entre defensores irredutíveis dos méritos do quarteto de Liverpool, contraditórios veementes sempre que reiterada neste espaço. Rogo-lhes, ainda assim, que deixem temporariamente de lado a eterna questão do caráter único ou banal da música dos Beatles para, ao menos desta vez, se fixarem na transformação dos meios de acesso ao estrelato desde aquele tempo até agora – esta sim central à presente argumentação.

Desde então,  o showbusiness, adaptativo como qualquer indústria, vem procurando incorporar, sintonizado ao espírito dos tempos, procedimentos de avaliação distribuída, típicos das comunidades virtuais, nos quais a maioria da audiência é quem decide quem vai adiante e quem é eliminado em muitos reality shows. Devemos, no entanto, frisar que isto é o máximo que já se conseguiu até agora em se tratando da tão propalada mas tão pouco implementada televisão interativa. Ao mesmo tempo, muitos concursos televisivos, sejam de canto, dança ou culinária, ainda se mantém fiéis ao formato tradicional de júris compostos por um punhado de celebridades.

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Em nome da concisão (bem como da inteligência dos leitores), não choveremos no molhado falando, aqui, das recentes e radicais transformações sofridas pela indústria do entretenimento nas últimas décadas. Suficiente, então, sublinhar que, para se adaptar à perda do monopólio sobre os meios de produção (estúdios caros e fábricas de LPs e CDs), investidores migraram para o setor de distribuição por meio de streaming.

O streaming (i.e., a transmissão de sons e imagens, residentes em servidores, pela internet) sepultou, ao menos entre consumidores menos especializados, o até então robusto comércio de música e cinema gravados em mídias físicas como CDs e DVDs. Proprietários destes serviços se desoneraram completamente da tarefa de produzir conteúdos para transmissão, cabendo agora a cada artista – de uma base, portanto, supostamente ampla e diversa – produzir seus próprios conteúdos, os disponibilizando para streaming por valores bem mais acessíveis do que, comparativamente, o jabá anteriormente pago pelas gravadoras para a execução repetida de música por estações de rádio. Cabe, ao mesmo tempo, a cada artista a divulgação e a criação de uma demanda por todo conteúdo por ele disponibilizado “na nuvem”.

Como em todo negócio da era digital, provedores de streaming apostam acima de tudo na venda de acesso. Para tanto, competem entre si para oferecer a seus assinantes a maior base possível de conteúdos disponíveis. Daí o custo irrisório de se “subir” qualquer coisa para a nuvem – praticamente destinado apenas a cobrir gastos operacionais de inclusão e manutenção de conteúdos em servidores.

Por mais, no entanto, que o capital cumulativo tenha assumido, ao se adaptar e migrar para a economia digital, aspectos distribuídos das comunidades virtuais, jamais encontrou um modo de se desvincular de sua natureza – que é a de favorecer inevitavelmente as celebridades, como veremos a partir de duas críticas recentemente veiculadas a dois gigantes da distribuição de conteúdos digitais: Spotify e Netflix.

Um compositor amigo meu, desconhecido das multidões (alguém que jamais tocará num megashow) mas que cultiva, há muitos anos, um público consistente e cativo de apreciadores de sua música, se queixou de que, por milhares de execuções da mesma no Spotify, obteve como remuneração não mais do que centavos. Levei a queixa a outro amigo, versado nos meandros da indústria, que de pronto me respondeu que, para se faturar alguma quantia significativa no Spotify, é preciso ter sua música executada milhões de vezes. O que prova que, para se fazer sucesso no Spotify e afins, é preciso ser uma celebridade. Como queríamos demonstrar.

Ao mesmo tempo, a Newsweek publicou recentemente uma matéria denunciando a falta de filmes clássicos na Netflix. Era de se esperar que a exacerbação da seletividade das plataformas de streaming, manifesta na exclusão de conteúdos importantes, fosse mais acentuada na distribuição de filmes do que na de música, posto que o armazenamento de imagens em movimento ocupa muito mais espaço em servidores do que o de sons. O que, no entanto, mais nos interessa, neste caso, é que serviços de streaming não são, ao contrário do que muitos pretendem fazer acreditar, a melhor solução para a distribuição imediata de conteúdos diversificados.

Moral da história: desconfiem sempre de grandes iniciativas capitalistas (big players) apregoando oferecer amplo acesso à diversidade. Nisto, os commons, não lucrativos por definição, permanecem imbatíveis.