A ciranda dos formatos & a inviabilidade da indústria da música clássica

Este texto é dedicado aos alunos da turma de 2024 de Tópicos Especiais em Música do Instituto de Artes da UFRGS – que toda segunda-feira pela manhã, faça chuva ou faça sol, ouvem atentamente insights oriundos, na maioria das vezes, de minhas observações e experiência pessoais e, noutras tantas, da wikipedia (sic !)

Sempre que uma nova mídia fonográfica é lançada, é apregoada como um indiscutível avanço sobre o meio hegemônico imediatamente anterior. Foi assim quando os discos de resina (78 rpm) substituíram, na época da Primeira Guerra Mundial, os cilindros de cera; quando os LPs (33 1/3 rpm) e compactos (45 rpm) de vinil suplantaram, por volta de 1950, os discos de 78 rpm e, na década de 1980, quando quiseram que os CDs rendessem obsoletos os discos de vinil.

É claro que houve avanços. Principalmente na qualidade sonora, na capacidade de armazenamento de sons e na crescente miniaturização. Só que algumas virtudes apregoadas nestes momentos de atualização tecnológica são generalizações apressadas e, muitas vezes, francamente falsas. Por exemplo. Quando os 78 rpm apareceram, se dizia que eram “inquebráveis” – o que logo se revelou uma mentira descarada. Com os discos de vinil, se dizia que “aqueles sim eram inquebráveis”. Outra mentira, posto que, embora inegavelmente mais resistentes do que os 78 anteriores, também quebravam. Depois veio o CD, cuja integridade física requer bem mais engenhosidade para ser afetada.

Mas não é só isso. Grande parte do apelo comercial do CD repousa sobre sua suposta durabilidade – que, até certo ponto, é verdadeira. No calor do entusiasmo, se chegou a acreditar que CDs fossem eternos. Afinal, a informação digitalmente codificada, em valores binários (0 e 1), é incorruptível em relação ao desgaste pelo uso, com o passar do tempo, do substrato físico que serve de suporte à informação analógica gravada nos discos de vinil.

E assim foi por muito tempo – tempo, este, suficiente para que grandes discotecas em vinil fossem completamente substituídas por modernos CDs. Foi quando a grande verdade veio à tona, pois hoje sabemos que os disquinhos de películas metálicas com informação binária altamente compacta, a nível microscópico, incrustadas entre superfícies acrílicas transparentes ao raio laser, também são vulneráveis à ação do tempo, seja por degradação do acrílico (sim, plásticos não são inertes nem tampouco eternos), seja pelo ataque de fungos à película metálica.

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Curiosidade: sabem por que a NASA, no intuito de enviar ao desconhecido amostras da vida e da arte na Terra, colocou a bordo das sondas Voyager e outras discos de ouro, idealizados por Carl Sagan, e não CDs ? Acontece que se um dia uma inteligência alienígena eventualmente encontrasse esses artefatos, é razoável supor que a mesma não teria muita dificuldade em descobrir como reproduzir frequências analógicas de um sulco em espiral gravado na superfície de um disco com um furo no centro (giratório, portanto). Já não se pode dizer o mesmo do sinal sonoro binariamente codificado na superfície de um CD, cuja decifração, exigindo um complexo conversor digital-analógico, seria muito mais difícil de implementar, podendo mesmo jamais vir a ocorrer (obrigado, Marcos Abreu !).

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A ciranda das mídias fonográficas também nos oferece um exemplo precoce de obsolescência programada – prática que, outrossim, costumamos associar a um capitalismo tardio.

Para que entendam o caso, um pouco de ambientação histórica. Talvez o maior avanço tecnológico na gravação sonora durante a primeira metade do século 20 não tenha sido a substituição de um formato por outro, mas a introdução, na década de 1920, da gravação elétrica em substituição à acústica. Em poucas palavras, enquanto a gravação acústica é aquela produzida mediante a disposição de fontes sonoras (vozes e instrumentos) diante de uma coifa (corneta) semelhante à de um gramofone, a elétrica faz uso de recém inventados microfones, capazes de transformar sons em sinais elétricos, amplificáveis e amplificados, que viajam através de fios. É enorme o impacto desta técnica na qualidade sonora das gravações resultantes.

Pois bem. Quando a gravação elétrica foi “descoberta”, por volta de 1920, era bem limitada a quantidade comercialmente disponível de discos produzidos com a nova técnica, em relação a um respeitável acervo de gravações acústicas então existentes – insuficiente, portanto, para suprir a demanda por aqueles itens colecionáveis. Face a isto, Victor e Columbia, então as maiores fabricantes de discos dos Estados Unidos, firmaram um acordo para retardar a chegada ao mercado das novas e superiores gravações elétricas, o qual vigorou até 1925.

O que temos, neste caso, é um tipo bem comum de obsolescência programada reversa, isto é, quando o lançamento de um novo produto já disponível é retardado a fim de que se tire o máximo proveito possível de produtos da geração anterior. Mais ou menos como a Apple que, ao lançar o iPhone 4, já tem pronto o 5 e trabalha no desenvolvimento do 6. Isto é o contrário do que ocorre na obsolescência programada tradicional, na qual produtos – como, por exemplo, lâmpadas, automóveis ou compressores de geladeira – são projetados para não durar mais do que um certo tempo, depois do qual consumidores são levados a substituí-los, mesmo que a engenharia e a indústria tenham plenas condições de fazê-los para durar por toda uma existência humana, ou mais. Ou seja: um vez consumidor, sempre consumidor.

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O consumo continuado – e, com ele, a descartabilidade – é um pré-requisito essencial à permanência de qualquer indústria moderna, alinhada ao espírito dos tempos. Desde que se descobriu, há pouco mais de 100 anos, que a música se prestava de alguma forma à industrialização, sempre se buscou a fidelização de consumidores de produtos musicais. Neste contexto, a música popular como hoje a conhecemos foi desenvolvida como uma solução perfeita para o problema. É amplamente sabido que George Martin foi um executivo fonográfico incumbido de achar novidades sonoras capazes de fidelizar compradores de discos. Estava às voltas com gravações de ruídos cotidianos (aqueles curiosos discos, que não emplacaram, ditos de efeitos especiais) quando topou, meio por acaso, com os fab four num clube de Liverpool. O resto é história.

Celebridades recicláveis “vestem” a cada nova temporada novos personagens em novos álbuns. Como barbies que trocam de roupa. Acontece que, ao longo dos anos, é difícil identificar (salvo raras exceções), entre álbuns “adjacentes”, alguma evolução de seus intérpretes. Como em personagens de um romance. Ou então ao se comparar obras juvenis com tardias de um mesmo compositor. Por isto o pop é um eterno (ou até que a fórmula se esgote) “mais do mesmo”.

Até o século 19, a distinção entre música popular e erudita, se existia, não era tão exacerbada (ou tinha outro significado) – com seções separadas, por exemplo, em lojas de discos ou, atualizando, canais de streaming. Quando o pop se estabeleceu, então, como segmento autônomo de produtos industriais, se pensou, por indução lógica, que a música clássica se constituiria num filão igualmente lucrativo para o comércio de discos. A próxima bola da vez. Não foi. Por décadas, possivelmente subsidiada por volumosos lucros do segmento pop, a indústria da música clássica abasteceu o mercado com novos títulos (novos intérpretes) de um mesmo repertório, limitado e redundante, que não tardou a atingir um ponto de saturação. Pois o repertório clássico, conquanto trouxesse, vez que outra, alguma novidade, jamais logrou se renovar na velocidade necessária à existência de uma indústria.

Veio, então, com a derrocada, o livro “Maestros, Obras-primas e Loucura” (2007), de Norman Lebrecht, que ostentava (na edição brasileira) o eloquente subtítulo “A vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica”. Nele, o autor culpa a ganância dos executivos e o estrelismo dos maestros e solistas, ao se sentirem celebridades e se comportarem como tais, pela decadência do setor. Gostei do livro. Tanto que o resenhei.

Só que, mesmo concordando com a ideia de que a super remuneração de protagonistas (maestros, solistas e executivos), num setor que sempre dependeu, mais do que o pop, de coadjuvantes (músicos de orquestra), minou a sustentabilidade do negócio, me inclino a acreditar se tratar, antes, de uma morte anunciada. Pois a indústria de discos de música clássica nunca passou, a meu ver, de uma bolha especulativa ou, se quiserem, parêntese histórico. Explico.

Lembram quando afirmei, um pouco acima, que descartabilidade e o consumo continuado são pré-requisitos para qualquer indústria ? Pois a música clássica simplesmente não oferece esta condição. Um mesmo repertório redundante é continuamente oferecido em novas “versões” que em pouco ou nada diferem de anteriores. Tudo bem que audiófilos possam defender durante horas atributos desta ou daquela gravação de alguma obra. Mas, ao fim, será sempre a mesma obra, mais ou menos fiel a intenção de seu compositor e imediatamente identificável por ouvintes independentemente de quem a tenha gravado. Algo bem diferente da enorme variabilidade entre arranjos e remixes de um mesmo hit tolerável pela ética e estética do pop. Deixemos, por enquanto, a complexa situação do jazz de fora desta discussão.

Com todas as restrições convencionais do universo erudito à liberdade interpretativa, é razoável se afirmar que a liberdade de um intérprete acaba se restringindo (quase sempre) ao andamento de execução de cada obra, inclusive alterações do mesmo (rubato), e, menos frequentemente, diapasão (padrão de afinação, expresso através da frequência de referência, em Hz, da nota Lá). Ainda assim, com as seguintes ressalvas:

  1. o diapasão não varia durante a execução completa de uma obra; e
  2. há uma tendência, corroborada por princípios analíticos, de que versões por diferentes intérpretes para uma mesma obra sejam convergentes para um mesmo rubato, i.e., nos mesmos pontos, ainda que possam variar em intensidade.

Maravilhas do YouTube. Numa busca rápida, encontramos dois vídeos eloquentes que dão conta de ilustrar precisamente o grau de autonomia concedido a intérpretes para abordar obras consagradas pelo gosto popular. O primeiro deles, mais abrangente, justapõe os dois acordes iniciais da 3ª Sinfonia (Eroica) de Beethoven, em versões ao longo de várias décadas, dando uma ideia do que se podia esperar do grau de capricho de cada regente em termos de desvio da intenção do compositor, convenientemente morto:

O outro permite uma comparação mais demorada entre um grupo menor de gravações mais recentes:

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O saudoso Herbert Caro escreveu certa vez sobre diferenças de duração de um mesmo movimento em ciclos completos de sinfonias de Beethoven, tanto por regentes diferentes como por um mesmo regente em diferentes momentos – pois, pasmem, figurões como Karajan, em delírios megalomaníacos, chegaram a gravar, incentivados por barões da indústria, os mesmos ciclos sinfônicos mais de uma vez. Se isto não é doentio, então não sei mais o que é.

Zeca Azevedo, um dos ouvintes mais inteligentes e sensíveis que conheço e com o qual tenho o prazer de trocar ideias vez que outra, me perguntou (e ao Milton Ribeiro) tempos atrás o que achávamos de uma série de boxed sets recomendados por um crítico. Prá quem não sabe, boxed sets são aquelas caixinhas de CDs contendo ciclos completos de obras (por ex., todas as sinfonias de Brahms, todos os lieder de Schubert ou todos os quartetos de cordas de Beethoven), ou ainda integrais de gravações de música popular (jazz inclusive) registradas em ocasiões específicas, incluindo takes alternativos. Por mais interessante e lisonjeira que fosse a pergunta, nem me dei ao trabalho de responder (Sorry, Zeca !). Por dois motivos.

Primeiro, por que a recomendação do tal crítico não vinha em forma de lista, mas de um vídeo. Curto e grosso: considero o hábito atualmente consagrado de envio de áudios e vídeos um sequestro de atenção, o qual deveria, idealmente, ser banido por normas de higiene e bom convívio virtual ou, se preferirem, netiqueta.

Segundo, por que não vejo sentido algum em se colecionar caixinhas com repetidos ciclos completos de repertórios clássicos. É claro que, ao escolhermos nossas “integrais” disto ou daquilo, buscamos alguma orientação. Neste sentido, o vídeo daquele crítico (prá quem tiver paciência de assistir) pode ser de algum valor.

Em meu caso específico, minha escolha pelas sinfonias de Beethoven por Roger Norrington e seus London Classical Players foi orientada por dois fatores, a saber,

  1. minha predileção pelas pancadas mais rústicas de baquetas de madeira sobre as peles naturais dos tímpanos e pela articulação mais… “crocante” de naipes menores de instrumentos de época; e
  2. a premissa, aparentemente óbvia, adotada por Norrington mas sistematicamente rejeitada pela maioria absoluta dos maestros em nome de uma suposta e questionável autonomia de interpretação, de que os tempos (andamentos) de execução anotados por Beethoven em suas partituras efetivamente expressassem a sua vontade enquanto compositor.

Sobre este último hábito, (ainda) tão em moda, de desacreditar os andamentos prescritos por Beethoven para a execução de suas obras em favor de supostas prerrogativas de seus intérpretes – como tempos de execução fossem, imaginem, menos importantes ou secundários para a integridade das obras do que, por exemplo, as alturas e durações precisas de cada um de seus sons ! – é comum que perpetradores deste tipo de atrocidade lancem mão de uma hipótese, que já adquiriu conotação anedótica, a saber, a de que “o metrônomo de Beethoven estava estragado” (sic !).

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PS: após ser notificado da citação, Marcos Abreu enviou (que honra !) os seguintes comentários, que reproduzo abaixo, em nome da precisão da informação e com o devido consentimento.

“… Tem Bolero de Ravel entre 15 e 21 minutos.”

“… Não são fungos que atacam o metal. No caso o alumínio. É ar que entra pelo verniz e ataca o alumínio. Corrosão mesmo. Conforme a fábrica duram mais ou menos. Agora o alumínio fica mais para dentro da borda e o verniz cobre todo o disco evitando a entrada de ar. No caso, o acrílico, com a gravação, é eterno.”

“… o pior é que o cd está sendo morto pela ponta. Não existem mais players. Não serão mais fabricadas as unidades ópticas. Em pouco tempo. Já existem poucos produzindo.”

Celebridades

Disclaimer: se você espera deste post alguma novidade ou revelação bombástica, fuja dele como o diabo da cruz. Se, no entanto, anda atrás de subsídio para reflexão sobre uma realidade hegemônica na qual nossa cultura, queiramos ou não, está imersa, seja muito bem-vindo a estas linhas.

Havia escolhido o atrativo título Por que odeio celebridades, do qual logo desisti, por pelo menos dois motivos: por que estaria 1) de certa forma, traindo o espírito do texto, que é justamente o repúdio deliberado à busca desenfreada pela maximização da audiência (clicks & likes) e 2) ao mesmo tempo, faltando com a verdade na medida em que não odeio celebridades mas, antes, as acho profundamente intrigantes; mais exatamente, pela alta importância que exercem em todos os aspectos da vida contemporânea. Um dos principais pilares de nossa civilização, eu diria.

Pensei, então, em Celebridades, uma teoria – que logo descartei por parecer demasiado presunçoso e também por que a ideia pertence ao grande David Graeber. Daí que ficou só Celebridades mesmo.

Há anos coleciono notícias sobre celebridades pensando em, num futuro vagamente distante, vir a escrever algo que preste sobre as mesmas. Não que já me sinta pronto ou à altura da tarefa. Ao contrário, desisti de chegar a qualquer conclusão importante. Vultos amplamente conhecidos da música, da moda, do esporte e afins não fazem mais do que preencher o imenso vazio do noticiário cotidiano. Não há, aqui, como não lembrar do experimento proposto por Domenico di Masi que consiste em se abster voluntariamente de acompanhar o noticiário tão somente para constatar, depois de algum tempo, que ele é sempre o mesmo.

Quando, há muito tempo atrás, comecei a colecionar notícias sobre famosos, saudei com entusiasmo a descoberta de marcadores que permitiam, com um click, salvar para referência futura páginas de internet visitadas, associadas a etiquetas (tags) que agrupavam vários recortes (como eram chamados no tempo da mídia impressa) sob uma mesma categoria. Sempre fui e ainda sou avesso a ferramentas virtuais pagas e, quando o Delicious (site de marcadores que eu usava) foi comprado pelo Yahoo, passando a ser um serviço oferecido mediante a cobrança de uma assinatura mensal, migrei com minhas já então mais de 7000 páginas marcadas para o Tagpacker, gratuito até hoje.

Entre meus tags mais populosos estão as celebridades e a indústria fonográfica. Marcava coisas como, por exemplo, o vestido de carne de Lady Gaga. Lembro que, naquela época, cheguei a constatar fenômenos repetitivos de pouca importância, tal como a associação num mesmo single, descoberta por algum mago das gravadoras e exaustivamente replicada desde então, da voz de uma cantora com a declamação de um rapper. A indústria da música vivia, então, um momento de grande incerteza, tendo que pular fora do barco da comercialização de mídias físicas, que naufragava, para se adaptar à nova realidade do streaming e das redes sociais.

Recentemente, me decepcionei com os marcadores ao buscar, em vão, uma página que, quando conheci, atraiu muito minha atenção – a saber, um texto brilhante de Norman Lebrecht explicando a permanência de mitos como Elvis Presley e Maria Callas numa era de sucessos fugazes. Inútil. A página tinha saído do ar, meu marcador apontando somente para um frustrante page not found. Menos mal que ainda me lembro da tese defendida por Lebrecht.

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Tecnicamente, podemos definir uma celebridade como uma pessoa que conhecemos sem que sejamos por ela conhecidos. Tal conceito, ainda que correto, permanece numericamente vago. Tratemos, pois, de quantificar. Na era dos mainstream media (jornais, revistas, rádio e TV) ser célebre significava ser conhecido por milhões de pessoas. Com a democratização (apregoada mas não totalmente entregue) trazida pela internet, este limiar caiu para alguns milhares. Para sermos exatos, 5000 é o número cabalístico em relação ao qual o facebook define se as pessoas às quais nos relacionamos são amigos ou seguidores. Quem é conectado a mais de 5000 pessoas (ou perfis) é considerado uma celebridade, dono de uma fan page com seguidores. Já se tiver menos do que isso, não é uma celebridade, tendo apenas uma página pessoal povoada por amigos. Desconheço as diferenças funcionais do algoritmo do facebook no tratamento de amigos e seguidores.

Curiosamente, o número 5000, utilizado pelo face para distinguir amigos de seguidores, é largamente discrepante daquele geralmente reconhecido por antropólogos como sendo o máximo de indivíduos que alguém pode realmente conhecer a ponto de confiar, que é, pasmem, 150. Se uma plataforma social amplia tão generosamente a quantidade de amigos (não de conhecidos) que alguém pode ter, razões para tanto deve haver – as quais fogem, no entanto, do escopo deste post.

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Celebridades sempre foram reconhecidas como role models. Exceto, é claro, as negativas, como Hitler ou Calígula. As mídias sociais, com sua promessa de democratização não plenamente cumprida mencionada acima, trouxeram um novo tipo de celebridade: o influencer. Ou, se quiserem, um role model de nicho. É a celebridade ao alcance de todos.

Celebridade remunera. Celebridades da mídia hegemônica, bisbilhotadas por milhões, ganham somas generosas para anunciar produtos. O que não quer dizer, é claro, que possam viver só disso, pois, antes de venderem grandes marcas, precisam ter alguma carreira exitosa em alguma área como, por exemplo, fazendo gols ou cantando hits de sucesso. Já o influencer, em sua micro celebridade ensejada pela democratização da web, consegue, no máximo, ganhar os produtos que usa ou ter o consumo franqueado em lugares que frequenta, bastando, para tanto, postar fotos usando os produtos ou frequentando os lugares em redes sociais. É a monetização do selfie.

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Se você chegou até aqui, é provável que, como eu, também considere o estatuto da celebridade supérfluo. Perverso, até. É claro que não falo da fama em decorrência de feitos importantes nas artes, nas ciências, na filosofia ou, vá lá, até na política; mas da celebração daqueles cuja contribuição e, portanto, relevância para o mundo seja totalmente nula. Mas nisto acho que concordamos. A pergunta, então, que não quer calar é: por que celebridades existem, hoje mais do que nunca ? Será por que alguns querem ser célebres ? Não creio. Ou talvez por que o sistema econômico vigente, incluindo a publicidade, precisa delas ? Tampouco. Me inclino a acreditar que é por que precisamos delas. Ou por que, ao menos, a maioria das pessoas precisa.

Por um momento, cheguei a pensar que a cultura da celebridade fosse um fenômeno eminentemente urbano. A partir do princípio de que cidades não existem por causa da conveniência econômica, mas por causa da necessidade da proximidade entre vizinhos – a qual, por sua vez, favoreceria a fofoca, esta sim uma necessidade humana primordial. Em contraste, pensei numa vida bucólica em que acordássemos com as galinhas e fôssemos dormir depois de jantar – como se uma existência pudesse ser preenchida exclusivamente pela manutenção da subsistência e qualquer tempo eventualmente ocioso com, sei lá, meditação. Logo abandonei a ideia, por demais simplista, impossível num mundo globalizado e hegemonicamente conectado.

Sigo, ainda assim, perseguindo a fantasia, praticamente uma utopia, de um mundo sem celebridades. É possível ? Suportaríamos ? Comments welcome.

Maestros, obras-primas e loucura (2008), de Norman Lebrecht

Certamente com o legítimo intuito de tornar o volume mais interessante aos olhos de seu público-alvo (melômanos, audiófilos e colecionadores), o subtítulo, ausente no original, aposto à edição brasileira de Maestros, obras-primas e loucura, de Norman Lebrecht (a saber, a vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica), é, no mínimo, desconcertante. Nenhum problema com a parte da “vida secreta” da indústria fonográfica. As fofocas (especialidade de Lebrecht) sobre executivos fonográficos e sua relação com as estrelas de seus catálogos são de primeira mão e muito elucidativas. As coisas se complicam com a expressão “morte vergonhosa” de uma indústria com seus dias contados desde o início. Vergonhosa para quem ? Por que ? Melhor seria tratar a questão como o “parêntesis da indústria da música clássica”. Espero que isto fique mais claro ao fim da leitura deste post.

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O crítico britânico Norman Lebrecht é provavelmente o maior cronista vivo da cena internacional da música erudita (aqui chamada de clássica), nela incluída a intensa atividade de gravação que se constituiu numa indústria durante grande parte do século 20, desde o advento da reprodução em série de gravações em discos de cera, acetato ou vinil, passando pelas fitas magnéticas e pelos CDs, até a implosão destas mídias pelo compartilhamento de arquivos e, mais recentemente, pelo streaming, ambos viabilizados pela internet. Sendo assim, é natural que maestros e executivos constituam a matéria-prima por excelência de seus textos. E do ponto de vista de quem dedica a vida a cobrir os bastidores deste cenário, poderia também ser natural que o livro se constituísse num lamento, como sugere o infeliz subtítulo. Só que não. Lebrecht escreve bem e, portanto, está acima desta tentação tão fácil.

Maestros, obras-primas e loucura (me nego a replicar o infame subtítulo) é dividido em três partes. Na primeira, conhecemos uma história detalhada, rica em datas e nomes, da indústria da gravação de música clássica. Maestros, solistas, orquestras, mídias, selos, técnicos, executivos, nada é deixado de lado. Uma história, inclusive, econômica, explicando como os “seis grandes” selos (RCA, CBS, Decca, EMI, Philips e Deutsche Grammophon), além de incontáveis independentes, se tornaram, através de fusões e aquisições, quatro grandes grupos (Universal, Sony-BMG, EMI e Warner). É a parte do livro, com ca. 150 páginas, para ser lida de ponta a ponta, de preferência sem interrupções e com um lápis à mão para sublinhar furiosamente.

As outras duas são listas, provavelmente compiladas de resenhas publicadas por Lebrecht ao longo de décadas e, como tais, se constituem muito mais como referências para consultas aleatórias. Na primeira (Obras-primas: 100 marcos do século da gravação), aficionados devem encontrar muitos de seus discos favoritos. A segunda é, entretanto, a mais divertida: Loucura: 20 gravações que jamais deveriam ter sido feitas.

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O melhor capítulo da primeira parte é, sem sombra de dúvida, o último, Post-mortem, no qual o autor abandona o papel de historiador para retornar a sua zona de conforto, a crítica, especulando sobre as razões que levaram ao declínio e virtual extinção uma indústria dominante por quase cem anos. Como possíveis causas para o colapso, Lebrecht arrola o excesso de produção; a indestrutibilidade do CD; a extravagância de Norio Ohga, executivo (segundo homem) da Sony, que passou a controlar a DG; a internet e o advento de outras mídias. É aqui que, respeitosamente, ousamos discordar. Não que Lebrecht não tenha, intuitivamente, percebido o problema. Ele até roçou a questão ao se referir, ainda que brevemente, ao excesso de produção. Esclareceremos isto, no entanto, mais adiante, depois de examinar um item no qual ele se enganou de modo gritante.

Falo, é claro, da suposta “indestrutibilidade” do CD. Não vou me deter, aqui, na infrutífera e interminável discussão sobre qual som é o melhor, se o do LP ou o do CD. Deixo esta querela para os audiófilos. Me refiro à durabilidade em si. Desempenhando bem melhor que o LP em quesitos como gama dinâmica (diferença de volume entre os sons mais fracos e os mais fortes), espectro de frequências, relação sinal ruído, “imunidade” quanto ao acúmulo de chiado e ruído residual da transmissão mecânica responsável pelo giro da mídia, o CD, ao longo de sua vida útil, também é inegavelmente mais estável – tão somente, no entanto, até que sua película metálica incrustada em plástico seja atacada por fungos, deixando a sequência de informações binárias nela gravada ilegível para o feixe de laser. Na reprodução, isso se traduz num click muito mais evidente (i.e., audível) do que os cracks de qualquer LP mais gasto. Por vezes, a própria sequência de leitura se perde, o que equivale a quando, num disco severamente arranhado, a agulha salta de um sulco para outro. Constato esta anomalia em CDs comprados há mais de 30 anos. Tenho, no entanto, muitos LPs adquiridos antes disto que ouço sem problemas até hoje.

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É bem fácil e até razoável se culpar o compartilhamento de arquivos pela internet pela extinção da indústria de gravações de música clássica. Não vamos, no entanto, problematizar isto aqui, até por que a questão pertence a um campo bem mais amplo e complexo: o da propriedade intelectual. Deixemos isto, então, para mais tarde.

Curiosamente, a indústria de gravação de música popular continua firme e forte. Apesar do fim das mídias físicas e do concomitante avanço dos meios de streaming. Como tudo isto é muito novo, o direito autoral se tornou objeto de intenso debate, com pouca jurisprudência ou princípios consolidados para a era da conectividade. Não que a indústria da música clássica tenha sido alguma vez uma competidora à altura para a da música popular. Mesmo nos tempos áureos, discos clássicos nunca representaram mais do que uns 20% (numa perspectiva bem otimista) do faturamento do setor. Então por que, desde o início dos anos 90 e culminando em 2000, as gravadoras populares permanecem enquanto os selos clássicos praticamente desapareceram ou, no mínimo, se desfiguraram ?

A resposta, ao nosso ver, reside principalmente na proporção em que cada música é percebida como um atributo maior de seu autor ou, ao invés, do intérprete. Se deixamos fora desta equação a figura do produtor, que abocanha parte substancial dos direitos do que é gravado, é por que ela existe tanto no setor popular como no clássico, sendo, portanto, de pouca utilidade em se tratando de contrastar um e outro.

Numa audição cega de versões de uma sinfonia de Beethoven por, digamos, Karajan ou Haitink, mesmo melômanos experientes identificarão o autor e a obra muito antes de chegarem a um veredito sobre a versão de qual maestro estão ouvindo. Já se ouvirmos versões de Elis Regina e Maria Rita (para citarmos duas vozes parecidas e do mesmo sexo) para uma mesma canção, provavelmente identificaremos a cantora muito antes da música.

Isto quer dizer que, desde que produtores assegurem um fluxo constante de repertório, novo ou velho, para cada intérprete popular, a visibilidade pública de cada novo álbum estará garantida. Mesmo que as canções já tenham tido dúzias de versões por outros intérpretes.

Na música clássica, não. Se algum maestro, incentivado por público, críticos, produtores ou o próprio ego, se lançar à empreitada de gravar pela enésima vez uma obra conhecida, a gravação estará fadada a uma competição inglória contra um volumoso acervo já existente. Sei. Melômanos podem muito bem preferir uma versão a todas as outras que conhecem. Mas dificilmente comprarão uma nova gravação de uma mesma obra se já estiverem satisfeitos com outra. Alem disso, para ouvintes comuns, uma sinfonia de Beethoven será sempre aquela velha e boa sinfonia que ele já tem em sua discoteca, independentemente de quem estiver brandindo a batuta.

Hão de dizer: “Então por que não gravam novos compositores ?” Justo. Há. porém, um problema. Toda indústria vive da desova de excessos de produção, apoiada pela publicidade – a qual, por sua vez, se especializa em nos fazer desejar consumir “mais do mesmo”, como se a felicidade dependesse disto. Ora, toda música composta até o fim do romantismo, incluindo compositores conservadores neoclássicos e neoromânticos, se baseia numa prática comum, na qual todos se debruçam sobre as mesmas harmonias e formas reconhecíveis. Querer que ouvintes comuns apreciem a abolição desse sistema de referência é como deixá-los no mato sem bússola numa noite nublada. Em sua agonia, a indústria da música clássica, ao perceber isto, se voltou, então, para a gravação da dita música antiga (medieval e renascentista), estranha ma non troppo.

Como melômanos existem em número bastante reduzido em relação à população (que gosta, sim, de música clássica, mas é indiferente ao tipo de sutileza que diferencia uma gravação de outra), não se pode dizer que constituam um mercado – o que derruba, por si só, a miragem de ter havido, alguma vez, uma indústria de gravação de música clássica. A música clássica surgiu numa época em que era a única possibilidade para espetáculos públicos, e a tentativa de enquadrá-la numa indústria próspera de reproduções em série só foi possível graças ao sistema de estrelas dos grandes selos, altamente concentrador, à valorização exacerbada de seus produtos (até o ponto em que viraram moda as “caixinhas” com integrais de sinfonias, quartetos, sonatas ou coisa que o valha de um mesmo compositor) e a seu financiamento pelo superávit gerado pela indústria de gravação de música popular.

Até que, por volta do ano 2000, os números revelaram inquestionavelmente o déficit do setor, com discos de milhões de dólares em custos de produção e poucas centenas ou até dezenas de cópias vendidas num ano. Desde então, podemos dizer que o mundo conheceu o que, num futuro não muito distante, talvez venha a ser chamado de parêntesis da gravação de música clássica.

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Dois livros importantes para se entender a indústria da música popular são Os donos da voz e Como a música ficou grátis, respectivamente, de Márcia Tosta Dias e Stephen Witt, resenhados aqui.