anotações religiosas (ii): Amor ou religião: o que é mais forte ? ou Para ler Richard Dawkins

O que é mais importante: o amor ou o sentimento religioso ? Tenho para mim que seja o amor. Por uma razão muito simples. É mais comum pessoas inteligentes relevarem suas convicções religiosas em nome de um grande amor do que o contrário. Ou já viram alguém deixar de procurar seu objeto de amor por causa de princípios religiosos ? Tudo bem que no caso específico de alguns fanáticos isto possa, de fato, acontecer, mas não é, definitivamente, a evidência que mais encontramos ao auscultar ao redor. Não só pessoas de religiões diferentes conseguem se amar mutuamente, como ateus podem se afeiçoar profundamente a pessoas cuja fé religiosa contraria frontalmente seus princípios. Tanto as religiões reconhecem a força avassaladora do amor que muitas delas não hesitam em abraçá-lo como uma de suas principais bandeiras.

Tais relacionamentos amorosos são não apenas normais (no sentido estatístico), mas neles não há nada de errado ou particularmente acintoso. É como se houvesse valores mais profundos, que realmente importam, do que meras opções pela fé numa denominação religiosa ou noutra. Mais ou menos como naqueles casamentos em que cada um torce por um time distinto de futebol, por vezes rivais entre si, e se divertem com isto.

Richard Dawkins, o mais célebre guru dos ateus, conta, em seu livro Deus, um Delírio (do qual voltarei a falar), que recebeu uma carta de um ateu que se dizia apaixonado por uma pessoa religiosa, que julgava muito boa, pedindo conselho sobre o que fazer a respeito – ao que Dawkins respondeu perguntado se a pessoa era suficientemente boa para o missivista. Sim, ele respondeu isto. Com o que, por outro lado, não posso concordar, pois podemos nos apaixonar por pessoas que professem fés diametralmente opostas a tudo em que acreditamos ou não. Pois o que realmente importa em alguém não tem nada a ver com para que deus (ou deuses) a pessoa reza.

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Richard Dawkins talvez seja mais conhecido por ter sido o “advogado do diabo” no processo de canonização de Me. Tereza de Calcutá. Pois o complexo rito conduzido pela igreja católica para a proclamação de um novo santo, que inclui uma duvidosa contagem de milagres comprovados, também envolve um debate em que um detrator eminente, vulgarmente conhecido como “advogado do diabo”, é convidado a contra-argumentar com uma autoridade eclesiástica a propósito da santidade ou não do candidato. No caso de Me. Tereza, Dawkins demonstrou, em vão, que a religiosa, alcunhada de Anjo da Morte, não só deixava que moribundos, privados de cuidados médicos adequados, perecessem em sua missão humanitária como, também, colaborava com regimes totalitários opressores e genocidas.

Nunca procurei nenhuma obra de Dawkins, talvez por pensar que meu ateísmo não precisava disto e também por deplorar, em geral, todo tipo de literatura proselitista. O modo, no entanto, como Deus, um Delírio me caiu nas mãos é quase humorístico. Estava eu num shopping fazendo hora quando meus olhos foram atraídos para o volume, exibido com destaque na vitrine de uma livraria, pasmem, de índole religiosa. Do tipo que foram, por exemplo, noutra época, a Vozes ou as Paulinas. Ávido de algo para ler enquanto esperava e sabedor da reputação do autor, adquiri, então, o livro na plena convicção de que ele estava ali por engano, ou seja, que seu título fora equivocadamente entendido como um elogio à divindade. Mais ou menos como um livro de auto-ajuda. Tenho certeza de que o proprietário da pia livraria se arrependeria amargamente de comercializar o livro, ainda mais com destaque, se sequer suspeitasse de seu conteúdo.

A leitura se revelou cativante. Seus argumentos eram, mais do que convincentes, eloquentes. Tanto que cheguei sem grande esforço à última página, pronto para resenhá-lo – o que, no entanto, deixei de fazer na época por um vago receio de ofender pessoas queridas com crenças distintas das minhas. O que nos leva diretamente a um dos pilares da argumentação de Dawkins, a saber, a ideia largamente aceita de que religião, assim como gosto ou política, não se discute. Com efeito, quase sempre basta uma simples alusão à fé professada por alguém para que interessantíssimas discussões, plenas de argumentos lógicos, sejam abafadas sob um manto de silêncio e pretenso respeito às crenças de cada um. Dawkins deplora este tipo de atitude, capaz de esvaziar os melhores debates, afirmando que religião se discute, sim.

Digna de nota é, também, a parte que ilustra como a religião pode, desde o antigo testamento até hoje, legitimar genocídios cometidos em nome deste ou daquele deus. Lá, há menção a um experimento conduzido em Israel em que crianças, confrontadas com a descrição bíblica do massacre pelos hebreus dos infiéis que habitavam a cidade de Jericó, acham tudo perfeitamente natural, que “fizeram o que tinha que ser feito” (!).

E por falar em crianças, Dawkins considera hediondas expressões tais como “crianças católicas” ou “crianças protestantes”, já que nenhuma criança possui o entendimento necessário para professar qualquer tipo de fé religiosa. Logo, em seu entender seria muito mais correto se dizer, ao invés, “crianças de pais católicos” ou “crianças de pais protestantes”. No mesmo capítulo, afirma que a conversão de crianças a um culto ou outro é uma prioridade de qualquer religião, já que todas reconhecem ser bem mais difícil convencer um adulto, em pleno gozo de suas faculdades lógicas, a começar a acreditar em entidades sobrenaturais.

Face a angústia diante do desconhecido que a morte costuma trazer (já que ninguém jamais voltou do outro lado para dizer como é lá), Dawkins propõe a celebração dos mistérios desta vida (i.e., da única que comprovadamente existe) sublinhando os limites de nossa frágil percepção. Da seguinte maneira. A luz que enxergamos se situa numa faixa muito estreita de frequências. Isto por que não vemos frequências que se situam abaixo do infra-vermelho ou acima do ultra-violeta. Ou ainda: só enxergamos o que não é muito grande nem muito pequeno. Com microscópios óticos, podemos ver uma célula, mas não um átomo. Já no outro extremo da escala de grandezas, podemos divisar o que está até a linha do horizonte ou, no máximo, com telescópios óticos, planetas que orbitam em nosso sistema solar, mas não o que há em torno de outras estrelas. Para sondar o que existe além de distâncias astronômicas, daquelas que se medem em anos-luz, precisamos recorrer a outros meios, tais como rádio-telescópios.

Para representar tais limitações de nossa percepção, o “advogado do diabo” recorre a uma analogia poderosíssima ao afirmar que muito pouco é dado a se conhecer do mundo quando o mesmo é observado através da estreita fenda de uma burka.

São estas fronteiras do conhecimento determinadas pelos limites de nossa percepção, tais como frequências invisíveis, partículas subatômicas ou os confins do universo, que servem de combustível à ciência e provocam a imaginação humana – razões de sobra, no entender de Dawkins, ele próprio um cientista, para encontrarmos suficiente estímulo ao intelecto na única existência que conhecemos.

Citei Richard Dawkins anteriormente, ainda que de passagem, aqui (penúltimo parágrafo), aqui (último parágrafo) e aqui (nono parágrafo).

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Religiões são narrativas que, assim como as drogas ou o álcool, servem para aplacar o sofrimento humano e a angústia face ao desconhecido. Está na raiz da aceitação da crescente desigualdade social, já que é mais fácil a um excluído aceitar sua condição se houver uma promessa de uma vida melhor após sua morte. Não fosse o consolo da religião, bem como o dos outros supracitados agentes, o grande levante dos mais pobres contra os mais ricos talvez já tivesse ocorrido há muito tempo.

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Há também o problema do sincretismo. No caso brasileiro, se originou como um expediente que permitia a escravos, através da assimilação à religião oficial ou, ao menos, aceita, de cultos afro proscritos e, em razão disto, relegados à clandestinidade. Mais ou menos como cristãos nas catacumbas. Não é, todavia, o que se tem hoje. É comum pessoas batizadas ou iniciadas em religiões mainstream serem concomitantemente adeptas ao espiritismo, a cultos afro, a linhas espirituais de origem oriental e, não raro, à magia, numa espécie de politeísmo ecumênico. Ou, noutras palavras, atualizando um velho provérbio para “rezando bem, que mal tem ?”. Mais ou menos como se, para garantir mais dádivas e/ou maior proteção, fosse possível, como um especulador que distribui seus ativos entre várias linhas de investimento, flertar ao mesmo tempo com diferentes deuses.

Tal situação inevitavelmente me traz à memória as admoestações do temido Pe. Fonseca (quem estudou no Colégio Anchieta de Porto Alegre nos anos 70 conhece), que vedava a todo católico a opção por um pacote multi-espiritual. Falei disto aqui, no quarto parágrafo.

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E como não há nada melhor para concluir um texto pesado, por força de seu assunto, vai aqui um episódio divertido. Quando, faz já algum tempo, disse a um de meus filhos que, embora me considerasse naquele momento um ateu, não descartava a hipótese (talvez para o horror de outros ateus) de que, quando irremediavelmente velho, com o espírito mais frágil, me sentindo desesperançoso e angustiado com a proximidade da morte, venha a abraçar uma fé que me sirva de consolo e prometa um futuro melhor – ao que meu filho prontamente retrucou: “- Mas isto não vale ! É como trapacear com deus.” Ri muito na hora e acho engraçado até hoje. O fato me remete imediatamente a duas coisas: o delicioso conto moral de Edgar Allan Poe intitulado Nunca aposte sua cabeça com o diabo e o popular meme deus está vendo.

(nem depois de ser severamente censurado por um douto amigo (“Non sequitur !”, me disse ele) me sinto culpado por essa mania, mais forte do que eu, de tecer livre-associações . Falando nisso, lembram da parábola do escorpião atravessando o rio sobre o casco da tartaruga, no grande documentário de Orson Welles Verdades & Mentiras ?)

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Richard Dawkins