Eu não queria falar sobre xenofobia, mas…

Logo que conheci o blog Opera e Ballet, de Ali Hassan Ayache, simpatizei com sua prática de replicar textos meus e de outros autores e até com sua militância em favor de muitas boas causas musicais. De modo que dei pouca ou nenhuma atenção às diatribes que lá apareceram contra Marin Alsop à frente da OSESP. Até por sempre ter sido favorável a uma melhor distribuição do poder em instituições culturais (dentre elas as orquestras) entre músicos, maestros, ouvintes, críticos e, vá lá, mesmo patrocinadores. Depois, Lady Alsop dispensa defensores: sua competência e reputação (uma de nada serviria sem a outra) falam por si mesmas.

Então, veio, semanas atrás, a mais explicita incitação à xenofobia que já vi no meio musical. Francamente, quem seria neste país qualquer coisa em música não fosse a contribuição de um ou mais estrangeiros ou descendentes de imigrantes ? Ao ler, estupefato, o ataque endereçado, desta vez, à incrível regente italiana Valentina Peleggi, me limitei a repassar a peça difamatória ao amigo Milton Ribeiro, cuja indignação e maestria verbal se encarregaram de publicizar o ocorrido sem que eu precisasse pronunciar uma palavra sequer. Aqui, a excelente réplica do Milton.

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Até dias atrás, quando a bola da vez do Opera e Ballet passou a ser o spalla da OSESP, o italiano Emmanuele Baldini. De pronto, cutuquei o Milton outra vez – que, no entanto, já tinha dito a Baldini que nada diria sobre o ocorrido, a fim de não dar visibilidade a um ataque tão gratuito – com o que o italiano concordou, apenas agregando que ler um troço daqueles doía (acho que ele não se importará de eu ter revelado isto, principalmente em razão do que escreverei daqui em diante). Dada, então, a sábia reticência do Milton, me coube a missão de tecer este pequeno instrumento de desagravo (da última vez em que fiz isto, me chamaram de puxa-saco).

Vou poupá-los de citar a íntegra do post do Opera e Ballet, destacando, tão somente, duas expressões que saltam aos olhos como grandes disparates, só “deglutíveis” por aqueles que não tenham a mínima familiaridade com a música nem tampouco com o contexto envolvido – a saber, o das orquestras sinfônicas no Brasil e no mundo.

Primeiro, Baldini é chamado por Ayache de “spalla mediano”. Qualquer um que já tenha ouvido o violinista jamais partilharia desta opinião. Em seguida, Ayache declara, com a maior cara de pau, que “Baldini acomodou-se como spalla da OSESP”. Ora, dizer isso é tão absurdo como dizer que Messi ou Neymar se acomodaram a jogar no Barcelona. Ou então (já que falamos de italianos) que algum piloto tenha se acomodado a competir pela Ferrari. Percebem, com isto, o absurdo de se afirmar que alguém se acomodou como spalla da OSESP ? Como é possível se considerar um acomodado quem se encontra no topo de sua carreira ?

É preciso dizer, ainda, em favor da presença de estrangeiros entre nós, que, especialmente em casos como os dos italianos Baldini e Pellegi, pinçados por Ayache como exemplares (num tiro que, felizmente, lhe saiu pela culatra…), sua influência tem um alcance que transcende em muito o âmbito de seu trabalho junto à instituição que os acolhe (neste caso, a OSESP, que ela rege e na qual ele toca numa posição de destaque) – já que ambos perseguem, como missão de vida, oportunidades de compartilhamento de seus conhecimentos em festivais, cursos e programas educativos em nosso país. De tal forma que, sem estrangeiros assim, ainda estaríamos, em áreas tais como a música, em plena idade da pedra.

Então, a frase com que Milton termina seu post de desagravo em favor de Valentina também se aplica perfeitamente ao caso de Baldini, que não deveria ser jamais um problema – mas, antes, um motivo de orgulho para São Paulo.

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Acompanhando de longe a intensificação dos ataques xenofóbicos naquele blog, minha amada Astrid formulou, como sempre, a pergunta crucial: a mando de quem Ali escreve ? Quem paga suas contas ?

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As anotações para este post (e para o próximo, sobre o problema da didática da regência) se amontoaram ao redor de meu PC por vários dias, enquanto aderi à resolução de não escrever uma única linha no blog antes de tocar, na última terça-feira (nem parece que já faz tanto tempo !) a primeira sinfonia de Mahler e, ontem, no lançamento do CD de Leonardo Winter.

Dias antes, quando pensamentos enfurecidos acerca dos recentes episódios de xenofobia ainda dominavam minha mente, Valentina disse ” Vi que vocês vão tocar Mahler 1 !! Fantástico !! Se divirta, tem solos incríveis. ”

Obrigado Valentina ! Obrigado, Leonardo ! Obrigado, Mahler !

on conducting (viii): em resposta a Daniel Barenboim

O eminente pianista e maestro (ou maestro e pianista, são sei bem a ordem) Daniel Barenboim se posicionou, em recente entrevista, claramente contra a prática, já bem comum, de que virtuoses instrumentais, sejam eles solistas ou membros de destaque de orquestras importantes, também façam carreira como maestros. Sim, vocês entenderam direito: ele mesmo, Barenboim – que, como Ashkenazy, Rostropovich, Harnoncourt, Levine e tantos outros – teve, muito antes de subir ao pódio, uma importante carreira como solista.

A questão é bem mais relevante do que, inicialmente, parece. Pois a regência orquestral enquanto disciplina acadêmica é um fato tão novo quanto questionável. Até por que a própria regência é, em si, uma invenção bastante recente. Então, é preciso um olhar atento, até desconfiado, sobre quaisquer instâncias que reivindiquem saber ensinar um modo de aquisição de uma competência ainda pouco entendida.

Tomemos o caso da OSPA. Uma orquestra estatal de uma metrópole cultural secundária. Por insistência de seus músicos mais do que por qualquer outra coisa, vem tendo à frente, nos últimos anos e com excelentes resultados, músicos eminentes que passaram a se dedicar também à regência. Quase como uma segunda ocupação (ao menos no sentido cronológico). Notem que não falo, aqui, de qualquer músico – pois jamais me passou pela cabeça afirmar que todo músico daria um maestro minimamente satisfatório. Longe disto. Falo de gente da estatura de um Leon Spierer (ex-spalla da Filarmônica de Berlim), Per Brevig (ex-primeiro trombonista do Metropolitan Opera), Jacob Slagter (ex-primeiro trompista do Concertgebouw) ou Emmanuele Baldini (spalla da OSESP). Ou ainda de solistas como Maxim Fedotov, François Benda ou Lavard Larsen. Sei que Rauss e Ricci também foram, nalgum tempo, ótimos instrumentistas. E ouvi dizer que Teraoka já tocou contrabaixo. Aposto que tocava muito bem. A ponto de, ao menos, ter dado recitais ou liderado algum naipe antes de se deixar seduzir pelos encantos da batuta.

Walter Boeykens, já no fim de sua carreira como um dos mais importantes clarinetistas de sua época e se dedicando (acho que por esporte (Boeykens era cavaleiro da coroa belga; uma espécie de barão, dizia)), afirmou que cursos de regência não passavam de bullshit, já que nada se comparava a recebê-la, como uma dádiva, de mitos como um Bernstein ou Boulez enquanto solista ou, no mínimo, ocupando uma cadeira importante numa orquestra de ponta. Como Slagter sob Haitink no Concertgebouw. Ou Spierer sob Karajan ou Abbado em Berlim. Faz sentido, não ?

É claro que não desdenho bons regentes que tenham passado, mais por força dos tempos em que vivem do que por qualquer outra razão, por programas acadêmicos de regência. Pois Valentina Peleggi conduziu, afinal, um dos mais memoráveis concertos de que participei. O que sempre sustentarei é que, antes de qualquer instrução específica para atuar como regente, todo bom maestro deve ter tido, obrigatoriamente, suficiente experiência como instrumentista. Valentina é pianista e também toca clarineta e violino. Ora, nenhum maestro consegue apreender a tocar qualquer instrumento uma vez que já tenha adentrado a movimentadíssima ciranda dos pódios.

Chegamos, assim, a um aforismo, empiricamente dedutível, a ser observado por bons gestores culturais e ouvintes mais curiosos, que pode ser formulado como

jamais confiar em qualquer maestro que não seja, pelo menos, um bom pianista (pois pianistas sempre levam, afinal, alguma vantagem sobre os demais músicos quando se trata de ler partituras) – ou, se tocar outro instrumento que não o piano – um músico excepcional.

Falamos, portanto, de, pelo menos, um solista. Menos do que isto, deve ser considerado imperícia ou mesmo oportunismo.

Dito isto, voltemos à diatribe de Barenboim contra os músicos-regentes para lhe sondar a índole. Ora, tenho para mim que, ao desaconselhar o pódio a instrumentistas que considera (não sei segundo qual critério) não-regentes, o eminente pianista/maestro (ou maestro/pianista) deve ter em mente, senão exclusivamente ao menos principalmente, a reserva de mercado. Pois é sabido e comprovado que aprender a tocar uma música exige, na maioria das vezes, muito mais dedicação do que aprender a regê-la. Se duvidarem, é só observar, durante um mesmo concerto, o que faz o solista e o regente.

É também de amplo conhecimento que honorários (além de transporte aéreo, alimentação e hospedagem) de regentes costumam custar mais do que os de solistas de igual projeção. Então, mesmo discordando veementemente de Barenboim nesta questão, entendo perfeitamente suas palavras. Até por que talvez ele não tenha outra saída. A não ser, é claro, se abdicasse de sua condição de celebridade, da qual advém seus ganhos. Por isto mesmo, não deve estar disposto a deixá-la para abraçar uma nova economia.

Muito ainda se há de falar, enfim, nas mudanças paradigmáticas entre os contextos de Barenboim e Lisitsa. Pano para muita manga. Para bem mais do que um post.

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Não gosto de terminar textos com uma frase. Pois jamais parecem ter a importância que uma última frase deveria ter. Então, nada melhor do que terminar este – que é, antes de tudo, uma pergunta – com imagens de alguns músicos-regentes que tivemos o prazer e a honra de ter à frente recentemente. Por que jamais vejo tamanha intensidade emocional em qualquer maestro não-músico (os quais, acreditem, não são poucos…) ?

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