Lusco-fusco

Nada me define melhor do que a tal metamorfose ambulante. Foi só eu declarar, dia desses neste blog, que prefiro escrever de manhã e ler ao entardecer, para me surpreender, agora mesmo, escrevendo pouco depois do pôr do sol. Gosto, no entanto, disto. Significa uma liberdade subitamente adquirida para, sem ter terminado de revisar, formatar e publicar um texto (a parte mais complicada, porquanto burocrática), me lançar despreocupadamente à confecção de um novo. “- Nosso Manny está crescendo.”

Por que lusco-fusco ? Calma. Chegarei lá. Salvo por um pequeno círculo de amigos mais próximos, poucos sabem que me mudei. Pretendia morrer na casa onde morava, lindeira a um cemitério. Os melhores vizinhos que já tive: nunca incomodavam. Basta dizer que, certa vez, toquei até as 2 horas da madrugada (sic !) sem ouvir nenhuma reclamação. Só que uma casa é uma casa. Apesar da autonomia, a manutenção vai ficando mais trabalhosa e pesada e, com o passar dos anos, precisamos, Astrid e eu, pensar na velhice que se aproxima.

E assim, desfrutando de um par de heranças e do fato de um primo, que mora nos EUA, querer se desonerar de um imóvel herdado de seus pais, viemos parar no Centro Histórico de Porto Alegre. Mais precisamente, no último andar de um prédio na colina central. Nunca antes suspeitei da sensação prazerosa que é ter as horas do dia marcadas pelos sinos da Catedral. Mas não é só isto.

Desde criança, me acostumei com noção de que a expressão “vista para o Guaíba” (este rio/lago que tão duramente fustigou a cidade) consistia numa espécie de nirvana imobiliário. Ironicamente, a aceleração da vida acaba deixando pouco tempo para o desfrute desta condição (ia dizer conquista, mas mudei de ideia). Assim, por força de uma combinação de circunstâncias, mais do que por qualquer mérito (outra palavra abominável) pessoal, acabei agraciado com uma vista deslumbrante. Some-se a isto o fato de que espaço, aqui, não falta (o prédio é bem antigo). Mantidas as proporções, é como morar no Dakota (edifício, à margem do Central Park, onde Polanski filmou O Bebê de Rosemary e onde moravam Leonard Bernstein e John Lennon, assassinado diante do mesmo). Tudo bem que exagero um pouco, mas é o que sinto.

É claro que prédios antigos tem, além de vizinhos fascinantes (a vida em condomínio é como uma extensão da família), também vícios arraigados. Antes mesmo de virmos prá cá, meu primo sentenciou, sabiamente, que Astrid deveria ser síndica. Não deu outra: ela é a síndica que todo condômino, daqui ou de outros prédios, jamais sonhou. Ela toma para si os problemas do condomínio como se fossem dela.

É claro que tamanha dedicação tem um custo. Meu lado egoísta insiste em reivindicar sua atenção exclusivamente para mim. Mas acabo cedendo. Sabem aquela pessoa que, de tão empática, precisa de muito mais gente para cuidar do que o habitual ? Pois Astrid é assim. O que me atormenta (não por mim, mas por ela) e, ao mesmo tempo, me orgulha. Complicado conciliar.

O fato de morarmos aqui se deve à Astrid. Não só ela objetivou a decisão (imaginem se um geminiano tivesse que tomá-la: certamente teria perdido a oportunidade) como foi também responsável pela impecável reforma.

Não sou como o Milton, que vive a tecer loas a sua querida Elena. Mais reservado, costumo emprestar minha voz a questões bem menos pessoais. Mas o compreendo perfeitamente e partilho de seu sentimento.

Que me desculpem os que me leram até aqui o tom confidente, mas a vista é, de fato, sensacional (isso prá não falar do espaço). Tanto que, tendo já fotografado alguns crepúsculos, deixo de publicá-los por que, ao menos neste caso, imagens são absolutamente redutoras.