A Tirania do Mérito (2020), de Michael Sandel

Muitas vezes escolho livros por causa de seus títulos e subtítulos. Gosto de nomes provocativos, que contrariem o senso comum, como, por exemplo, Bullshit Jobs – A Theory, The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, ou O Intelectual – a Força Positiva do Pensamento Negativo. No último caso, comprovadamente um subtítulo que não fazia parte do original mas que foi agregado à tradução por um editor com um senso apurado de marketing.

Com A Tirania do Mérito, não foi diferente. Afinal, o que poderia haver de errado com a meritocracia, a qual nos acostumamos a saudar como um dos baluartes das sociedades mais justas, tanto reais como utópicas ? Admito que custei um pouco a concordar com o ponto de vista do autor, praticamente só depois da conclusão da leitura de quase todo o texto – sem dúvida uma virtude do mesmo, pois não há nada mais decepcionante numa argumentação do que percebermos muito cedo onde seu autor quer chegar com ela.

Michael Sandel é fisósofo, professor de Harvard, onde ministra o curso Justiça, que também é o nome de seu livro mais conhecido. Em A Tirania do Mérito, disseca a trajetória triunfante da meritocracia na sociedade e na política norte-americanas, década por década, até a desilusão das classes trabalhadoras com aquilo que chama de credencialismo (ao que voltaremos adiante), que culminou com a retórica populista que elegeu Donald Trump.

O livro é repleto de referências a outros autores e fartos dados numéricos, invariavelmente com atribuição de autoria. Como um bom texto acadêmico, só que de leitura convidativa (reader friendly, eu diria), cada página levando naturalmente à seguinte. Um dos tipos de estudo a que Sandel mais recorre é a analise de discursos presidenciais, se valendo da contagem de palavras (tipo Obama disse, em todos os seus discursos, n vezes isto ou aquilo) para delas depreender ênfases da retórica de cada mandatário.

(como advogado do diabo, eu poderia objetar tal tipo de evidência alegando que um uso maior desta ou daquela palavra poderia estar mais ligado ao nível de redundância ou, ao contrário, de síntese de cada discurso. Mas a própria redundância é em si um traço da linguagem publicitária e todo discurso político é, por excelência, propaganda. Além disso, textos sucintos não costumam ser os mais persuasivos. Por tudo isto, entendo que Sandel esteja plenamente investido de correção metodológica)

Antes de se debruçar sobre a história recente da nação mais poderosa do mundo, o autor regride alguns séculos para auscultar a virtude do mérito em teólogos como Martinho Lutero ou Tomás de Aquino. É aqui que formula, ou melhor, menciona, um dos mais interessantes paradoxos. A polêmica diz respeito à promessa de salvação. Mais exatamente, sobre o que podemos ou não fazer em vida para garanti-la.

Por um lado, há quem acredite que a salvação seja aleatória, i.e., que ela pode se estender a quem não a mereça enquanto quem pratica o bem e vive segundo o cânone cristão é condenado à danação eterna por um simples capricho divino (isto, inclusive, oferece uma explicação teologicamente satisfatória para catástrofes naturais e outros eventos trágicos duros de aceitar sob o domínio da infinita bondade de deus).

Já, por outro lado, há também quem pense que o ser humano pode investir em sua futura salvação praticando o bem durante sua existência terrena. Só que esta “versão” enfraquece a onipotência divina, já que, ao “comprar” um lugar no céu por meio de atos aqui na terra, o homem estaria usurpando a deus o controle sobre seu destino.

(já notaram como os debates teológicos são sempre os mais interessantes ? Não é à toa que Richard Dawkins, guru mor dos ateus, dedica grande parte de seu livro Deus, Um Delírio à análise das provas da existência e da não existência de deus. Então, não dá prá simplesmente se descartar a priori qualquer debate teológico como carente de qualquer sentido. Tenho para mim que toda argumentação deste tipo pode ser validada (ou não) com a simples definição prévia de deus como uma entidade imaginária (ou, como diz Dawkins, sobrenatural). Mais ou menos como a formulação de um número, variável ou partícula sem comprovação experimental possível que ajude a resolver problemas e equações nos campos da matemática ou da física)

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Sandel considera o clima meritocrático que se tornou hegemônico a partir dos anos 50 e 60 algo bem recente na educação superior norte-americana. Antes, as três grandes da Ivy League (Harvard, Princeton e Yale) não mais do que perpetuavam uma elite hereditária que praticamente excluía mulheres, negros e judeus. Foi James Bryant Connant, reitor de Harvard que, a partir da década de 40, inspirou e contribuiu para implementar um sistema de acesso que garantisse a todos a igualdade de oportunidade – sistema, este, designado por Sandel como máquina de triagem.

Antes, porém, de narrar a ascensão do mérito com principal vetor de validação nos mundos norte-americano e global, Sandel se detém longamente no estudo do acesso à educação superior. Faz isto para clarear o significado de credencialismo, que é como chama a primazia de credenciais educacionais na hora de atribuir aos vencedores os melhores empregos e salários. Segundo ele, é a falta de credenciais universitárias que permite ao sistema econômico vigente dizer às massas trabalhadoras que não merecem estar no topo por não terem perseguido a melhor educação possível. Ou, noutras palavras, uma forma fácil de lideranças lavarem suas mãos em relação à crescente desigualdade. Mas não coloquemos o carro na frente dos bois, retornando, por hora, à questão universitária e deixando a arrogância e o ressentimento decorrentes do mérito para mais adiante.

Talvez em nenhum outro lugar como nos EUA a hierarquia entre instituições de ensino superior seja tão exacerbada. A expressão Ivy League, originalmente usada para designar agremiações desportivas de oito universidades, passou também a ser usada para se referir ao grupo de universidades cujos diplomas valem mais do que outros em se tratando de obter uma boa posição no mercado de trabalho. As grandes estrelas da Ivy League são as universidades de Harvard, Yale, Princeton. E, ainda que não pertençam, formalmente, a esta elite, a Universidade de Stanford e o MIT gozam do mesmo status.

Sandel identifica três modos de acesso a universidades de prestígio (presumo que a outras também), aos quais chama de portas da frente, lateral e dos fundos. A entrada pela porta da frente se dá por meio de desempenho em exames democraticamente aplicados; a porta dos fundos é reservada aos filhos de doadores muito ricos, numa versão exemplar da popular máxima pagando bem, que mal tem ?; já a porta lateral é a grande brecha através da qual a índole meritocrática do acesso (ou por que se sabe muito, ou por que se tem muito) é francamente corrompida. Tanto que merece um parágrafo totalmente dedicado a ela.

A porta lateral. Existe um mercado muito aquecido para o acesso facilitado às grandes universidades norte-americanas. Operadores que subornam avaliadores e/ou falsificam portfólios acadêmicos e desportivos (sim, pois algumas universidades tem vagas e bolsas reservadas para atletas de elite que venham a integrar suas equipes) e, é claro, cobram muito bem por isto. Sandel cita um escândalo recente em que um desses agentes amealhou uma pequena fortuna obtendo acesso para rebentos medíocres de famílias abastadas a universidades da Ivy League. Técnicos esportivos encheram seus bolsos e um deles, de uma equipe universitária de vela, ganhou notoriedade por usar toda a propina recebida para equipar o time. Com alguma flexibilidade semântica, se pode dizer que, sem sentir vergonha alguma, utilizou a porta lateral com a mesma lógica da porta dos fundos.

Mas as falhas deste sistema supostamente meritocrático não se resumem a facilidades de acesso. Mesmo quem entra pela porta da frente pode recorrer a um exército de profissionais (conselheiros educacionais) cujos serviços ampliam as chances em exames de acesso não fraudados. E aqui, mais uma vez, quem tem mais leva vantagem. Quem tem mais dinheiro e/ou tempo para estudar. É preciso um certo cuidado ao se comparar sistemas educacionais como o norte-americano com o brasileiro, pois apresentam diferentes peculiaridades. Neste caso, no entanto, é razoável se dizer que, mesmo aqui, um estudante de classe média com tempo de sobra para estudar e pais que possam pagar um cursinho pré-vestibular (por vezes mais caro do que boas escolas particulares) costuma ter mais chances num vestibular ou ENEM do que aquele que trabalha para contribuir com a renda familiar e cursa o ensino médio no turno da noite.

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Torno aqui à pergunta inicial, que atiçou minha curiosidade pelo livro, a saber, o que poderia, afinal, haver de errado com a meritocracia ?. Pela corrupção, descrita por Sandel, nos mecanismos de acesso ao ensino superior, poderíamos inferir que o problema com a meritocracia seria meramente o de que, face a alguns obstáculos, explícitos ou não, ela raramente ou jamais se realiza plenamente.

(isto faz lembrar as célebres falhas de mercado (monopólios, informações privilegiadas, etc.), por causa das quais, para seus defensores, os mercados dificilmente realizam com perfeição sua vocação de árbitros supremos)

Só que, para Sandel, o buraco é mais embaixo. Logo no início da obra, diz que um dos principais problemas da meritocracia é o de que vencedores geralmente acreditam que chegaram ao topo por mérito próprio, desconsiderando fatores importantes como vantagens nas condições de largada ou mesmo a sorte que tiveram. Como consequência, passam a desprezar, ainda que veladamente, os perdedores, os quais consideram desprovidos de talentos e/ou que não se esforçaram suficientemente. Tão martelada é esta narrativa que, com o passar do tempo, os próprios perdedores passam a nela acreditar. É desta forma que, para Sandel, meritocracia gera arrogância e humilhação (e, logo, ressentimento). Também para ele, foi predominantemente este ressentimento contra as elites credenciadas que nutriu, entre trabalhadores, a candidatura e a eleição de Donald Trump.

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Mas basta, por hora, de análises e denúncias. Face a tudo isto, o que tem a dizer Sandel de propositivo para combater o problema que tão bem delineia ? Para começar a falar disto, devo trazer aqui uma informação que deliberadamente omiti até agora, a saber, o subtítulo (original) o que aconteceu com o bem comum ?

São várias as medidas sugeridas mas não implementadas. Uma das primeiras que aparece, para fazer frente à máquina de triagem que gera tanta arrogância e humilhação, seria a criação de uma loteria acadêmica, que distribuísse as vagas existentes exclusivamente por meio de sorteio. Imagino o que devem estar pensando. Logo que li, também fiquei chocado. Para um liberal (como adoradores do mercado gostam se ser chamados), isto soa como a abolição de toda propriedade privada. Mas pensando melhor, até que, para alguém que vê o mérito como origem de tantos vícios, faria muito sentido. Ou, pelo menos, contribuiria para restaurar um senso de gratidão (pelo que faz alguém chegar ao topo) que, segundo Sandel, foi perdido nalgum momento ao longo do caminho.

Também são sugeridas medidas de natureza fiscal. Antes de apresentá-las, é preciso dizer que Sandel reconhece a recuperação da dignidade do trabalho como uma prioridade absoluta, já que a mesma vem caindo aceleradamente, em proporção inversa ao crescimento da desigualdade. A desaceleração e inversão dessas tendências passa inevitavelmente por medidas fiscais, tanto na arrecadação como na distribuição dos recursos arrecadados.

É sabido por todos que, não só nos EUA, a taxação sobre o trabalho é muito maior do que aquela sobre o capital acumulado. A recuperação da dignidade do trabalho passa obrigatoriamente pela inversão desta matriz tributária. É aqui que entusiastas do acúmulo de capital dirão que, ora, capital investido gera emprego; outros podem até invocar a Curva de Lafer (mazela da globalização que não vou explicar aqui). Bullshit. A indústria que o capital acumulado mais movimenta é a das finanças.

Finanças. Segundo Sandel, se trata de uma das indústrias mais improdutivas, senão a mais improdutiva dentre todas. Pois capital só gera mais capital, com juros escorchantes cobrados de setores que efetivamente produzem alguma coisa.

(não tenho os dados. Mas Sandel tem. Uma das virtudes de seu livro é ser fartamente documentado, estando todas as fontes lá prá quem quiser conferir)

Então, nada mais justo do que setores improdutivos como as finanças pagarem mais impostos do que os produtivos como o trabalho. Muito mais. Numa espécie de taxação moralizante, como no caso dos “impostos sobre o vício”, de cobra mais impostos de setores como os de tabaco, bebidas alcoólicas e jogos de azar. Não é preciso ter muita informação para se supor, por exemplo, que, no Brasil, o recém descoberto filão das bets opere sob a proteção de um manto de complacência fiscal (pois, senão, não teria crescido tanto).

Outra urgência levantada é a da redistribuição do montante arrecadado. Nos EUA, no passado recente cresceram os recursos repassados a instituições privadas de ensino superior (para custeio da máquina de triagem) enquanto caíram aqueles alocados, por exemplo, à saúde pública. Não quero encher este post de números mas, para quem quiser conhecer, estão todos no livro.

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Tenho essa mania de resenhar quase tudo o que leio. Pode ser um modo de validação de minhas escolhas ? Pode. Mas prefiro acreditar que anseio por compartilhar.

Penso igual a alguns autores que leio (estes, obviamente mais bem informados do que eu). A outros, não. A alguns, não sei: ainda é cedo para dizer. A Tirania do Mérito pertence a esta terceira categoria. Sem que considere, de imediato, um livro fascinante, é, sem dúvida, um grande livro. Bem escrito. Bem documentado. E, sobretudo, que leva a pensar. Eis o ponto: não é preciso concordar com Sandel em tudo (a tal loteria acadêmica, por exemplo, é meio forte até prá mim), desde que se perceba o quadro que ele tão bem descreve.