É possível ser dono de uma ideia ?

“Um número recente da Veja trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês) ‘incomodações’ na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me impressionou especialmente. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.

É uma figura que sempre me intrigou. A foto da Veja mostra um soldado inglês espichado na calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma máscara de gás, fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados no vão de uma porta, dois ou três de seus companheiros, também em plena parafernália de guerra, esperam tensamente para também entrar no tiroteio. Há fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama. Mas ao lado do soldado que atira, em primeiro plano, está o Popular. De pé, olhando com algum interesse o que se passa, com as mãos nos bolsos e um embrulho embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta parou para ver a guerra.”

“Onde quer que se produza um acontecimento merecedor da atenção da cidade, lá encontraremos o popular, solitário ou em grupo. Eis tudo o que os repórteres nos dizem dele: ‘Um popular que passava pelo local…’ É a testemunha privilegiada de todos os fatos dramáticos ocorridos nas ruas, e que no dia seguinte sairão nos jornais. Se conserva o anonimato, é pela simples razão de que ninguém lhe perguntou o nome, mas sem ele, sem a sua presença casual, muitas ocorrências de desenvolvimento lógico estariam catalogadas entre os mistérios intrincados.

Devemos defini-lo como pessoa que, dirigindo-se a um ponto qualquer na cidade, a ele não chegará – ou chegará atrasado. Porque entre esse anônimo e seu destino subitamente se coloca o incidente urbano que não lhe diz respeito, mas que exige imperiosamente a sua atenção.”

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Assim começam as crônicas homônimas O Popular de, respectivamente, Luís Fernando Verissimo e José Carlos (“Carlinhos”) Oliveira. Ambas tem, além do mesmo título, exatamente o mesmo teor. Publicadas originalmente em Zero Hora ou na Folha da Manhã (LFV) e no Jornal do Brasil (JCO), as duas foram posteriormente compiladas em coletâneas: a primeira em O Popular (José Olympio, 1973), a outra em O Saltimbanco Azul (L&PM, 1979).

Tento presentemente descobrir qual delas foi escrita primeiro. A tarefa é, contudo, ingrata. Isto por que, ao contrário dos arquivos do The New York Times, onde é possível localizar instantaneamente conteúdos por meio de buscas por palavras-chave, os arquivos do Jornal do Brasil fazem parte de uma ambiciosa iniciativa do Google de disponibilizar todos os exemplares dos principais jornais do mundo que, todavia, não permite encontrar matérias específicas a não ser vasculhando manualmente todas as edições abrangidas pelo período de busca.

As crônicas contidas no volume O Popular foram escritas e publicadas originalmente de 1969 a 1972. Já as reunidas n’O Saltimbanco Azul saíram entre 1968 e 1978. Determinar a data da publicação de cada uma delas não é nada simples. Imaginem a trabalheira. Abrir cada jornal; localizar a coluna (a diagramação, bem padronizada, até que ajuda); ampliá-la para identificar o título. Aí vão dias de trabalho dedicado. Não sou, no entanto, arqueólogo nem tampouco garimpeiro – de modo que se, depois de publicar este post, topar com mais estas evidências, acrescento num PS. Até por que pouco importa quem escreveu sua crônica primeiro, já que, como verão a seguir, a índole deste post é justamente contestar o mito da primazia de enunciação.

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As duas crônicas citadas acima não ostentam em comum apenas o título, o que poderia ser considerado um fato corriqueiro. Ao invés, partem inequivocamente de uma mesma ideia – ainda que os dois autores a tenham desenvolvido com vieses totalmente distintos. Veríssimo, mais humorístico (“Não se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido como o Passante. O Transeunte ou o Passante às vezes leva uma bala perdida. O Popular nunca.”); Oliveira, mais dramático (“… surge com um lençol, apanhado ninguém sabe onde, e com ele cobre o infortunado pedestre. Finalmente, em outro passe de mágica, delimita o espaço da morte com quatro velas piedosamente acesas, cujas chamas não há vento nem chuva que consigam apagar.”).

O ponto que quero ressaltar é que, muito antes que cada um deles tivesse capturado (magistralmente, deve ser dito) a ideia, a mesma já pairava no ar, esperando para ser verbalizada, na infinidade de fotos análogas à mencionada por Verissimo. Assim, em vez dos distúrbios na Irlanda do Norte, a imagem poderia muito bem retratar, digamos, um idoso, de boina e com um baguete embaixo do braço, a observar o enfrentamento entre estudantes e a polícia em Paris em 1968. Esta composição fotográfica é um verdadeiro clássico jornalístico e, portanto, até bem provável que tenha sido analisada ou comentada por outros cronistas, em diversas partes do mundo, além de por Verissimo e Oliveira. O que torna evidente que ninguém, pelo simples fato de ter se apropriado, em alguma obra visual, musical ou literária, de uma ideia, pode ser considerado proprietário da mesma, independente de a ter formulado ou enunciado, aparentemente, pela primeira vez.

Por que aparentemente ? Ora, por que, apesar dos esforços de abrangência universal empreendidos pelo Google ou pela Wikipedia, e até o advento de uma web semântica, é impossível garantir a originalidade (aqui entendida como ausência de qualquer enunciação ou formulação equivalente ou análoga anterior) de qualquer ideia.

Por que, então, a relutância da maioria em reconhecer como um mito o princípio da primazia de enunciação ? Simples. O reconhecimento deste mito se constituiria por si só numa revolução cultural que, para começo de conversa, colocaria em cheque toda a doutrina da propriedade intelectual, com implicações tanto no mercado como no mundo acadêmico. Direito autoral, patentes, royalties, a hierarquia acadêmica (fundada sobre um complexo sistema de citações) e a própria figura do plágio teriam que ser revistos.

O tema é tão ramificado, e de abordagem tão complexa, que pretendo tornar a ele em texto(s) vindouro(s). Fiquem, então, por hora, à guisa de provocação, com este achado – uma memória de juventude que levei décadas para resgatar.