Mitos literários (ii): da superioridade dos relatos fantasiosos sobre aqueles baseados em fatos reais, autobiográficos ou não

Desde muito cedo me acostumei com a ideia de que só se conhece um grande escritor a partir de seu segundo livro, depois que transcende o relato autobiográfico. Noves fora o fato de um autor poder muito bem criar histórias a partir da própria fantasia antes de cometer seu primeiro texto confessional, entendo hoje que tal crença não passa de um mito. Noutras palavras: a qualidade de um texto não depende de sua inspiração ter saído da fantasia do autor ou de sua própria experiência pessoal ou de outros fatos reais.

Ao pensar em obras magistrais baseadas em experiências pessoais de seus autores, me veio imediatamente à mente os contos de Lucia Berlin, publicados postumamente, ou os 6 volumes (apenas 4 deles traduzidos para o português) da saga A Minha Luta, de Karl Ove Knausgard. Outros textos aportados como autobiográficos por Maria de Abreu, Luciana Etchegaray e Marcelo Borba, são, respectivamente, O Idiota, de Fiódor Dostoiévski, Memorial de Aires, de Machado de Assis, e Ecce Homo, de Friedrich Nietzsche.

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É claro que as duas categorias (fantasia X realidade (autobiográfica ou não)) não são mutuamente excludentes, i.e., provavelmente na maioria dos casos o texto resultante é um amálgama de criações fantasiosas mescladas com pitacos de experiência pessoal do autor ou de outrem.

A componente real de cada obra de ficção é, no entanto, geralmente difícil de ser identificada, posto que advinda de episódios da vida privada de cada autor ou de terceiros nem sempre explicitados em biografias de domínio público. Até por isto, constituem uma espécie de eixo temático preferencial em textos críticos especulativos. Ou seja, são objeto favorito de teses e resenhas.

São comuns, por exemplo, histórias que partem de fabulações sobre a vida e/ou a obra de personalidades históricas. De certo modo como os docudramas e algumas cinebiografias mais licenciosas. Há, nesta categoria, uma obra prima que se ergue sobre a maioria das outras: Doutor Fausto, de Thomas Mann, cuja trama alude a inovações musicais introduzidas por Arnold Schoenberg. Só que o livro é, sob muitos aspectos, maior do que o argumento de partida que Mann tomou emprestado. Bem maior. Pertence ainda a esta região híbrida, entre a realidade e a ficção, a novela O Ruído do Tempo, de Julian Barnes, inspirada na vida de Shostakovich.

Interessantíssimo, também, o experimento literário A Literatura Nazista na América, de Roberto Bolaño. Nele, o autor cria um relato totalmente fictício emulando o estilo de uma obra de não ficção, a saber, uma antologia de biografias, só que de personagens totalmente imaginários. Uma obra singular que tenta, de algum modo, borrar, ainda que artisticamente, a outrossim rígida fronteira entre as categorias mutuamente excludentes da ficção e da não ficção.

Tão bom é o exercício estilístico de Bolaño, supracitado, que um leitor desavisado bem poderia “arquivá-lo” numa estante junto a obras de não ficção. Aqui me assola um pensamento aleatório, descomprometido, passível de desenvolvimento posterior: já se deram conta de como o ato de posicionar um livro numa coleção equivale, de certa forma, a domesticá-lo ? Fecha parêntesis.

A possibilidade, a que aludo no parágrafo anterior, de que uma obra seja inadvertidamente classificada junto a outras que não tenham nada a ver com seu teor me traz de imediato à memória um fato divertido, ao qual devo meu primeiro contato sério, porquanto primário, com a obra de Richard Dawkins, guru mor dos ateus. Estava eu fazendo hora num shopping quando avistei, na vitrine de uma livraria religiosa, o livro Deus, um Delírio, de Dawkins, de quem, até então, somente tinha ouvido falar. Ora, era evidente que a obra estava ali por acidente, pois era totalmente alienígena em relação ao restante do acervo da livraria. Provavelmente, o livreiro, induzido pela ambiguidade do título (lembram da igreja Brasas – louvor e adoração ?), o tomara por um texto apologético. É claro que resgatei imediatamente o pobre volume daquele contexto hostil à sua essência, o comprando e devorando em tempo recorde. Os argumentos de Dawkins são avassaladores. Mas já estou falando de não ficção. Melhor deixar para depois. Fecha outro parêntesis.

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Este é um mito complicado de ser reconhecido, principalmente por que as narrativas oriundas da fantasia de seus autores (total ou parcialmente, como vimos acima) são mais numerosas do que as predominantemente autobiográficas ou inspiradas por fatos reais. Muito mais. Passando os olhos pelas lombadas dos livros na estante, há mais obras de ficção criadas a partir da fantasia de seus autores do que derivadas de suas experiências pessoais ou de outrem. Vários fatores contribuem para este estado de coisas.

Inicialmente, o fato de que toda escrita profissional, enquanto atividade que se estende por grande parte da vida de um autor, por vezes durante toda ela, implica numa produção continuada. Ora, isto é incompatível com a utilização sistemática e exclusiva de experiências vividas como ponto de partida – por que, afinal, biografia, por mais rica que seja, cada um só tem uma. Face a este impasse, a fantasia se constitui como um recurso inesgotável e, portanto, irresistível.

Contribui também para a hegemonia esmagadora de histórias fantasiosas, total ou predominantemente, o fato de ser impossível a qualquer autor se referir a coisas como, por exemplo, pessoas que voam, animais que falam ou consciência pós morte sem recorrer à imaginação.

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Há um gênero de ficção exclusivamente composto de narrativas fantásticas, a saber, a ficção científica, com todos os seus subgêneros (obrigado, Nikellen: sem você eu jamais saberia que existe algo chamado steampunk !).

A dicotomia entre o real e o imaginário (categorias, como vimos, por vezes superpostas) não se aplica, evidentemente, à literatura de não ficção, exclusivamente devotada ao universo experimental. Senão, estaria incorrendo, voluntariamente ou não, num certo tipo de falsidade ideológica. Como frequentemente ocorre em textos proselitistas tais como, por exemplo, os publicitários e panfletários.

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Falando assim, pode parecer que eu não reconheça valor em narrativas exclusiva ou predominantemente advindas da imaginação. Longe disso. A fantasia sempre foi, é e sempre será um valioso recurso disponível para escritores tecerem suas histórias. O que se torna problemático é quando a imaginação por si só se torna um indicador de qualidade literária valorizado de forma exacerbada, muito mais do que outros igualmente importantes. O mito a que me refiro é, portanto, o de que histórias baseadas primordialmente em dados de realidade, sejam elas derivadas da própria experiência pessoal de seus autores ou não, são, por definição, inferiores àquelas onde a fantasia corre solta. Noutras palavras, o que quero dizer é que importa menos se os ingredientes são reais ou fantásticos do que, propriamente, aquilo que um autor faz com eles.

anotações religiosas (ii): Amor ou religião: o que é mais forte ? ou Para ler Richard Dawkins

O que é mais importante: o amor ou o sentimento religioso ? Tenho para mim que seja o amor. Por uma razão muito simples. É mais comum pessoas inteligentes relevarem suas convicções religiosas em nome de um grande amor do que o contrário. Ou já viram alguém deixar de procurar seu objeto de amor por causa de princípios religiosos ? Tudo bem que no caso específico de alguns fanáticos isto possa, de fato, acontecer, mas não é, definitivamente, a evidência que mais encontramos ao auscultar ao redor. Não só pessoas de religiões diferentes conseguem se amar mutuamente, como ateus podem se afeiçoar profundamente a pessoas cuja fé religiosa contraria frontalmente seus princípios. Tanto as religiões reconhecem a força avassaladora do amor que muitas delas não hesitam em abraçá-lo como uma de suas principais bandeiras.

Tais relacionamentos amorosos são não apenas normais (no sentido estatístico), mas neles não há nada de errado ou particularmente acintoso. É como se houvesse valores mais profundos, que realmente importam, do que meras opções pela fé numa denominação religiosa ou noutra. Mais ou menos como naqueles casamentos em que cada um torce por um time distinto de futebol, por vezes rivais entre si, e se divertem com isto.

Richard Dawkins, o mais célebre guru dos ateus, conta, em seu livro Deus, um Delírio (do qual voltarei a falar), que recebeu uma carta de um ateu que se dizia apaixonado por uma pessoa religiosa, que julgava muito boa, pedindo conselho sobre o que fazer a respeito – ao que Dawkins respondeu perguntado se a pessoa era suficientemente boa para o missivista. Sim, ele respondeu isto. Com o que, por outro lado, não posso concordar, pois podemos nos apaixonar por pessoas que professem fés diametralmente opostas a tudo em que acreditamos ou não. Pois o que realmente importa em alguém não tem nada a ver com para que deus (ou deuses) a pessoa reza.

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Richard Dawkins talvez seja mais conhecido por ter sido o “advogado do diabo” no processo de canonização de Me. Tereza de Calcutá. Pois o complexo rito conduzido pela igreja católica para a proclamação de um novo santo, que inclui uma duvidosa contagem de milagres comprovados, também envolve um debate em que um detrator eminente, vulgarmente conhecido como “advogado do diabo”, é convidado a contra-argumentar com uma autoridade eclesiástica a propósito da santidade ou não do candidato. No caso de Me. Tereza, Dawkins demonstrou, em vão, que a religiosa, alcunhada de Anjo da Morte, não só deixava que moribundos, privados de cuidados médicos adequados, perecessem em sua missão humanitária como, também, colaborava com regimes totalitários opressores e genocidas.

Nunca procurei nenhuma obra de Dawkins, talvez por pensar que meu ateísmo não precisava disto e também por deplorar, em geral, todo tipo de literatura proselitista. O modo, no entanto, como Deus, um Delírio me caiu nas mãos é quase humorístico. Estava eu num shopping fazendo hora quando meus olhos foram atraídos para o volume, exibido com destaque na vitrine de uma livraria, pasmem, de índole religiosa. Do tipo que foram, por exemplo, noutra época, a Vozes ou as Paulinas. Ávido de algo para ler enquanto esperava e sabedor da reputação do autor, adquiri, então, o livro na plena convicção de que ele estava ali por engano, ou seja, que seu título fora equivocadamente entendido como um elogio à divindade. Mais ou menos como um livro de auto-ajuda. Tenho certeza de que o proprietário da pia livraria se arrependeria amargamente de comercializar o livro, ainda mais com destaque, se sequer suspeitasse de seu conteúdo.

A leitura se revelou cativante. Seus argumentos eram, mais do que convincentes, eloquentes. Tanto que cheguei sem grande esforço à última página, pronto para resenhá-lo – o que, no entanto, deixei de fazer na época por um vago receio de ofender pessoas queridas com crenças distintas das minhas. O que nos leva diretamente a um dos pilares da argumentação de Dawkins, a saber, a ideia largamente aceita de que religião, assim como gosto ou política, não se discute. Com efeito, quase sempre basta uma simples alusão à fé professada por alguém para que interessantíssimas discussões, plenas de argumentos lógicos, sejam abafadas sob um manto de silêncio e pretenso respeito às crenças de cada um. Dawkins deplora este tipo de atitude, capaz de esvaziar os melhores debates, afirmando que religião se discute, sim.

Digna de nota é, também, a parte que ilustra como a religião pode, desde o antigo testamento até hoje, legitimar genocídios cometidos em nome deste ou daquele deus. Lá, há menção a um experimento conduzido em Israel em que crianças, confrontadas com a descrição bíblica do massacre pelos hebreus dos infiéis que habitavam a cidade de Jericó, acham tudo perfeitamente natural, que “fizeram o que tinha que ser feito” (!).

E por falar em crianças, Dawkins considera hediondas expressões tais como “crianças católicas” ou “crianças protestantes”, já que nenhuma criança possui o entendimento necessário para professar qualquer tipo de fé religiosa. Logo, em seu entender seria muito mais correto se dizer, ao invés, “crianças de pais católicos” ou “crianças de pais protestantes”. No mesmo capítulo, afirma que a conversão de crianças a um culto ou outro é uma prioridade de qualquer religião, já que todas reconhecem ser bem mais difícil convencer um adulto, em pleno gozo de suas faculdades lógicas, a começar a acreditar em entidades sobrenaturais.

Face a angústia diante do desconhecido que a morte costuma trazer (já que ninguém jamais voltou do outro lado para dizer como é lá), Dawkins propõe a celebração dos mistérios desta vida (i.e., da única que comprovadamente existe) sublinhando os limites de nossa frágil percepção. Da seguinte maneira. A luz que enxergamos se situa numa faixa muito estreita de frequências. Isto por que não vemos frequências que se situam abaixo do infra-vermelho ou acima do ultra-violeta. Ou ainda: só enxergamos o que não é muito grande nem muito pequeno. Com microscópios óticos, podemos ver uma célula, mas não um átomo. Já no outro extremo da escala de grandezas, podemos divisar o que está até a linha do horizonte ou, no máximo, com telescópios óticos, planetas que orbitam em nosso sistema solar, mas não o que há em torno de outras estrelas. Para sondar o que existe além de distâncias astronômicas, daquelas que se medem em anos-luz, precisamos recorrer a outros meios, tais como rádio-telescópios.

Para representar tais limitações de nossa percepção, o “advogado do diabo” recorre a uma analogia poderosíssima ao afirmar que muito pouco é dado a se conhecer do mundo quando o mesmo é observado através da estreita fenda de uma burka.

São estas fronteiras do conhecimento determinadas pelos limites de nossa percepção, tais como frequências invisíveis, partículas subatômicas ou os confins do universo, que servem de combustível à ciência e provocam a imaginação humana – razões de sobra, no entender de Dawkins, ele próprio um cientista, para encontrarmos suficiente estímulo ao intelecto na única existência que conhecemos.

Citei Richard Dawkins anteriormente, ainda que de passagem, aqui (penúltimo parágrafo), aqui (último parágrafo) e aqui (nono parágrafo).

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Religiões são narrativas que, assim como as drogas ou o álcool, servem para aplacar o sofrimento humano e a angústia face ao desconhecido. Está na raiz da aceitação da crescente desigualdade social, já que é mais fácil a um excluído aceitar sua condição se houver uma promessa de uma vida melhor após sua morte. Não fosse o consolo da religião, bem como o dos outros supracitados agentes, o grande levante dos mais pobres contra os mais ricos talvez já tivesse ocorrido há muito tempo.

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Há também o problema do sincretismo. No caso brasileiro, se originou como um expediente que permitia a escravos, através da assimilação à religião oficial ou, ao menos, aceita, de cultos afro proscritos e, em razão disto, relegados à clandestinidade. Mais ou menos como cristãos nas catacumbas. Não é, todavia, o que se tem hoje. É comum pessoas batizadas ou iniciadas em religiões mainstream serem concomitantemente adeptas ao espiritismo, a cultos afro, a linhas espirituais de origem oriental e, não raro, à magia, numa espécie de politeísmo ecumênico. Ou, noutras palavras, atualizando um velho provérbio para “rezando bem, que mal tem ?”. Mais ou menos como se, para garantir mais dádivas e/ou maior proteção, fosse possível, como um especulador que distribui seus ativos entre várias linhas de investimento, flertar ao mesmo tempo com diferentes deuses.

Tal situação inevitavelmente me traz à memória as admoestações do temido Pe. Fonseca (quem estudou no Colégio Anchieta de Porto Alegre nos anos 70 conhece), que vedava a todo católico a opção por um pacote multi-espiritual. Falei disto aqui, no quarto parágrafo.

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E como não há nada melhor para concluir um texto pesado, por força de seu assunto, vai aqui um episódio divertido. Quando, faz já algum tempo, disse a um de meus filhos que, embora me considerasse naquele momento um ateu, não descartava a hipótese (talvez para o horror de outros ateus) de que, quando irremediavelmente velho, com o espírito mais frágil, me sentindo desesperançoso e angustiado com a proximidade da morte, venha a abraçar uma fé que me sirva de consolo e prometa um futuro melhor – ao que meu filho prontamente retrucou: “- Mas isto não vale ! É como trapacear com deus.” Ri muito na hora e acho engraçado até hoje. O fato me remete imediatamente a duas coisas: o delicioso conto moral de Edgar Allan Poe intitulado Nunca aposte sua cabeça com o diabo e o popular meme deus está vendo.

(nem depois de ser severamente censurado por um douto amigo (“Non sequitur !”, me disse ele) me sinto culpado por essa mania, mais forte do que eu, de tecer livre-associações . Falando nisso, lembram da parábola do escorpião atravessando o rio sobre o casco da tartaruga, no grande documentário de Orson Welles Verdades & Mentiras ?)

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Richard Dawkins

Sobre teorias conspiratórias e outros quetais

Meus filhos descobriram a dialética. Gostam de conversar sobre livros que leio. Dia desses, quando, falando sobre O Intelectual (2006), de Steve Fuller, mencionei que, segundo aquele autor, o modus operandi de todo intelectual é formular continuamente teorias conspiratórias, as quais não seriam, a priori, nem boas nem más, fui advertido por um deles a tomar cuidado quando proferisse esse tipo de coisa para não ser confundido com terraplanistas ou antivacs (tive que perguntar a ele o que era um antivac) e, consequentemente, ridicularizado.

Na hora só achei graça (ele está assim depois de ter lido A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), de Thomas Kuhn; também tive, na juventude, meu momento de fascínio pela razão). Aquilo ficou martelando em minha mente. Como a bela expressão teoria da conspiração (tautológica, já que toda teoria é, por definição, conspiratória) assumiu um caráter tão pejorativo ? Será que ela já nasceu assim, como uma categoria capaz de abranger toda formulação estapafúrdia ? Careço de subsídios etimológicos para responder adequadamente. Mas que é intrigante, é. Súbito, me pareceu natural que Fuller procedesse à reabilitação semântica do termo, do mesmo modo como elogiou os sofistas, oponentes de Sócrates, detratados por Platão.

Toda tentativa de explicação de fenômenos naturais e sociais que ocorrem constantemente à nossa volta surge como uma teoria conspiratória. Explicar algo é encadear premissas em silogismos mais complexos. Se as premissas forem falsas é outra história, mas nenhuma teoria surge de outra forma. Então, de pouco importa se tantas formulações, pejorativa e inadequadamente chamadas de conspiratórias, forem ridículas se ao menos algumas delas servirem para termos uma compreensão melhor de qualquer coisa.

A história, por exemplo, é resultado de conspirações validadas pela aceitação ampla. Não me refiro aos fatos, que são, obviamente, verdadeiros ou falsos. Mas toda correlação entre eles é uma narrativa condicionada pelo espírito dos tempos e necessariamente ideológica – de modo que épocas e grupos distintos podem oferecer narrativas radicalmente diferentes sobre os mesmos fatos.

Todo esse relativismo é ruim ? Não acho. Pois é justamente do conflito entre narrativas contrastantes que podemos esperar algum progresso (ou, é preciso admitir, retrocesso) nas relações humanas.

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A correlação espúria. Toda teoria conspiratória original procura estabelecer alguma correlação entre fatos verificáveis até então não percebida. Por vezes, acerta. Em todos os outros casos, temos o que se convencionou chamar de correlação espúria. Um exemplo. Já demonstraram que, toda vez que um filme com Nicholas Cage é lançado, [ocorrem/se evitam] tragédias. É razoável supor que boa parte da pesquisa científica consiste em procurar aleatoriamente correlações para depois descartar as que forem espúrias.

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Em Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas (1974), Robert Pirsig narra uma saga de autoconhecimento ambientada numa viagem de motocicleta que empreendeu com seu filho de 11 anos na garupa pelo oeste norte-americano. A parte chata do livro (acreditem que há), mais linear, descreve seu progresso pela paisagem. Em meio a isto, intercala, com profundas incursões pela filosofia (“a mãe de todas as disciplinas”), a degradação de sua crença no método científico e, como ele mesmo chama, na “Igreja da Razão”.

Numa das melhores partes deste discurso fascinante que entremeia seu relato de viagem, Pirsig se debruça demoradamente sobre a origem das hipóteses, a seu ver o calcanhar de Aquiles do método – já que este, em momento algum, fornece qualquer pista sobre o surgimento das mesmas.

” A formação das hipóteses é a fase mais misteriosa do método científico. De onde elas vêm, ninguém sabe. A pessoa está sentada num lugar qualquer, pensando na vida, e de repente – zás ! – passa a entender uma coisa que não entendia antes. Até ser testada, a hipótese não é verdadeira, mas ela não provém de experiências. Origina-se num outro lugar. Disse Einstein:

O homem tenta elaborar para si mesmo, do modo que melhor lhe pareça, uma descrição simplificada e inteligível do mundo. Depois, tenta até certo ponto substituir o mundo da experiência por esse universo por ele construído, para poder dominar toda a natureza… Ele faz desse universo e de sua construção o centro de sua vida emocional, para encontrar, assim, a paz e a serenidade que não consegue dentro dos limites a ele impostos pelo turbilhão da experiência pessoal. O objetivo último a ser atingido é chegar àquelas leis elementares universais a partir das quais o universo foi construído a partir de pura dedução. Não há um caminho lógico que conduza até essas leis; apenas a intuição, baseada no conhecimento afetivo da experiência, pode conduzir a elas…

Intuição ? Afetividade ? Palavras estranhas para descrever a origem do conhecimento científico. “

Pirsig se diverte relatando ter percebido diversas vezes, no laboratório, que o que pareceria ser a parte mais difícil do trabalho científico era, na verdade, a mais fácil. Que ao testar uma primeira hipótese já lhe vinha a mente um verdadeiro enxame de novas hipóteses, as quais, por sua vez, ao serem testadas, conduziam necessariamente a outras – de tal modo que se multiplicariam indefinidamente se não fossem descartadas após cada teste. Em dado momento, chegou a formular, jocosamente, uma lei segundo a qual “o número de hipóteses racionais que podem explicar qualquer fenômeno dado é infinito”.

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Fuller, em seu livro supracitado, categoriza os entes pensantes em filósofos, cientistas e intelectuais para, então, fazer distinções entre as categorias, tais como Cortázar em Histórias de Cronópios e de Famas (1962). Ainda que Cortázar nunca tenha definido precisamente o que seria um cronópio ou um fama, é improvável que qualquer leitor minimamente sensível não consiga entender ao que ele esteja se referindo ao tipificar, por meio de exemplos, representantes de cada categoria.

Sei que tais categorias não são estanques entre si, podendo um mesmo indivíduo apresentar simultaneamente traços de mais de uma delas. São, ainda assim, bem úteis para fins didáticos. Tal é o caso, por exemplo, dos autores de ficção científica. Sem se preocupar, enquanto intelectuais, com a fundamentação teórica do que dizem, deitam formulações – como o “gelo 9”, de Kurt Vonnegut, em Cama de Gato (1963), a partir de cuja enunciação cientistas lançam mão de todo seu arsenal teórico para validá-las ou, ao invés, refutá-las.

Nesta longa digressão que se assemelha, no máximo, a um esboço, nada melhor para concluir do que a arrebatadora metáfora de Richard Dawkins, guru maior do ateísmo, que compara, em sua obra Deus, um Delírio (2006), a percepção humana ao que se é dado a ver através da estreita janela de uma burka. As frequências de luz visíveis, por exemplo. Nada suspeitamos do que possa ser “iluminado” por radiações inferiores ao infra-vermelho ou superiores ao ultra-violeta. Do mesmo modo, não enxergamos o que é pequeno demais (o átomo) ou grande demais (a “terra plana”), nem o que se move rápido demais (a luz). Então (conclui), temos que recorrer à ciência para desvendar tudo aquilo que se situa além dos limites de nossa percepção.

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PS: tenho enorme curiosidade por conhecer o que Dawkins teria a dizer sobre o ceticismo de Pirsig.

A educação a distância e o enfraquecimento da voz docente

Blogar é procrastinar. Isto por que, a menos que tenhamos um blog dedicado (tido, neste caso, como referência em sua área temática) e, consequentemente, monetizado, sempre que nele mergulhamos – e, acreditem, manter um blog toma muitas horas – estamos adiando tarefas mais urgentes, quase sempre associadas a nosso(s) modo(s) de sustento. É como se o blogueiro estivesse sempre prestes a ouvir de entes próximos a clássica exclamação, atribuída à esposa de Richard Strauss“- Vá compor, Richard !”.

Dito isto, interrompo temporariamente o burocrático (e, por vezes, difícil) trabalho, ensejado pela pandemia, de verter ao Moodle (plataforma ultra formatada de educação a distância) disciplinas acadêmicas que ministrei por  décadas, em encontros presenciais, periódicos e, por que não dizer (ainda que isto possa causar horror a algum teórico da educação), improvisados. Não estou, com isto, preconizando a prática a quaisquer docentes. O planejamento e a sequenciação pedagógica são, sem sombra de dúvida, absolutamente necessários a professores encarregados, num modelo escolar, de administrar a aquisição de um enorme volume de conhecimentos a um grande número de alunos.

Tal não é a situação, no entanto, no caso específico de aulas individuais ou em pequenos grupos de instrumento musical, que transcorrem numa abordagem clínica, em que os passos imediatamente seguintes são determinados a cada instante em razão da escuta docente.

Mas não vim aqui para reclamar disto – até por que, se em décadas de magistério, ainda não tivesse apreendido a ajustar planos de ensino e quetais a esta imponderabilidade intrínseca, melhor teria sido mudar logo de profissão.

A peste está colocando em cheque, entre tantas outras coisas, pressupostos educacionais há muito naturalizados e poucas vezes criticados – dentre os quais o tradicional binômio professor/livro-texto, sobre o qual repousa grande parte da atividade escolar. Mais ou menos como no caso de um ator preso a um script, quase toda interferência docente se dava no sentido de maximizar, por meio de estímulos positivos e inibição de eventuais desvios de processo, a assimilação de conteúdos pré-estabelecidos. Não que tais conteúdos, em grande parte conhecimentos e habilidades, não fossem essenciais à aquisição de artes e ofícios. Muito antes o contrário. Só que a curiosidade, a capacidade crítica e a auto-aprendizagem podiam muito bem passar ao largo da vida acadêmica de muitos estudantes outrossim brilhantes. Não canso de lembrar do caso de uma colega de um de meus filhos, dentre as melhores de sua turma, com notas irrepreensíveis, que, de certa feita, perguntou se o Japão ficava na Europa.

Hoje, dependendo de como se posiciona em relação aos meios de pesquisa e aquisição de conhecimento facultados pela web, um estudante depende cada vez menos, em sua formação, da voz docente. Bons professores sabem disto e, antes de se renderem obsoletos, se reinventam. Em vez de respostas, oferecem perguntas. No lugar de certezas, dúvidas. E, sobretudo, antes de investirem qualquer fonte de uma autoridade suprema, ensinam meios de validação capazes de equipar sujeitos para a escolha de suas próprias referências.

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Leituras obrigatórias são um tipo sofisticado de violência. “- Ah, mas o prazer da leitura só se adquire com a força do hábito, e leituras obrigatórias são o que há de melhor em se tratando de incutir tal hábito”, dirão os defensores da escolarização – aos quais retrucarei de pronto: “- Mas nenhum prazer se compara ao da descoberta casual de um grande livro – a qual se dá muito mais frequentemente por recomendação confiável do que por imposição curricular.”

(a língua inglesa dispõe de uma palavra adorável e intraduzível – serendipity – para designar a descoberta casual)

Estamos imersos numa cultura de textos sagrados. Em se tratando de escritos religiosos, não faltarão filósofos, intelectuais ou cientistas a lhes minar a credibilidade ou a própria relevância. Na arte, infelizmente, a situação é um pouco mais complicada. Pois, ainda que sempre possamos nos apoiar sobre uma crítica mais lúcida e/ou arguta, o mercado está aí para subverter as hierarquias estéticas, de tal modo que hordas ainda se deixam levar pelo “sábio consenso das maiorias” que consagra bestsellers e blockbusters. Em música tampouco é diferente. O que só nos leva a concluir que, nestes casos, o livre artbítrio não é assim tão livre.

O mantra do consumo cultural acrítico é o célebre “gosto não se discute”, tão invocado em defesa de obras que não resistem a uma apreciação mais demorada. Ora, gosto se discute sim. A pretensa inatacabilidade do gosto lembra muito a revolta de Richard Dawkins em relação à aura de respeito (enquanto não questionamento) que cerca toda e qualquer crença religiosa. Mas isto já é outro assunto.

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A sala de aula e a internet. Dois paradigmas educacionais contrastantes. No primeiro, o lugar do professor é um de autoridade. Mais do que ser quem controla o processo, é através dele que o mesmo se dá. Depois que uma aula começa, ninguém entra e ninguém sai. Celulares, quando permitidos, são ostensivamente indesejáveis. Neste formato, não cabe ao aluno questionar o propósito ou a eficácia das atividades propostas, já que fazem parte de um contrato previamente estabelecido entre, de um lado, instituições e professores e, de outro, alunos ou seus pais ou responsáveis e tacitamente aceitas, portanto, por ambas as partes.

Alguns  aspectos questionáveis, ainda que velados, do estado de coisas acima descrito, muitos deles resumidos na oposição entre saberes dos mais novos e dos mais velhos, foram escancarados com a implementação praticamente hegemônica, ensejada pela peste,  de formatos de educação a distância, antes restritos apenas a segmentos do ensino superior. Crianças tendo aulas em casa, situação antes impensável, se tornou o novo normal. Nesta modalidade, a voz de professores, que antes imperava em ambientes compulsoriamente silenciosos, está agora restrita a apenas uma  das múltiplas janelas que podem se abrir diante de cada aluno, ao sabor de sua atenção flutuante.  Isto é ruim ? Não necessariamente. Se há, por um lado, um evidente enfraquecimento da autoridade docente, existe também, claramente, um empoderamento discente. Ainda que poucos saibam utilizá-lo, em razão de não terem tido tempo de serem treinados para tanto.

Noutras palavras: se hoje ficou bem mais fácil a quem não quer não assistir a uma aula, também é verdade que agora só assiste a uma aula quem quer – o que é muito melhor !

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