Anotações de leitura

Se perde na bruma do tempo o instante em que comecei a rabiscar ferozmente nas margens de tudo o que leio. Se, no início, era uma coisa ostensiva, até com caneta hidrográfica vermelha (como constatei, para minha própria surpresa, dia desses ao manusear meu surrado exemplar de Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas em busca de uma referência -a qual, graças às anotações, facilmente localizei), hoje não me sento para ler sem ter às mãos um lápis bem apontado. De grafite macio (6B), para não ferir o papel. E também por ser mais legível, escuro, quase um carvão (já provaram 8B ? Esse é mesmo um carvão). Nem sei, aliás, por que os horríveis HB e nº2 são tão populares.

Sei que há, no entanto, quem, como Astrid, não goste de ler livros anotados. “- Por que fazes isto ?” Não faço a menor ideia. Ou, pior, até acho que sei por que (embora eu tenha muito cedo saído do curso de engenharia, ela nunca saiu de mim). É mais forte do que eu. Me debruço, pois, neste post, que espero curto, sobre possíveis razões, conscientes ou não, que me levam a isto.

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Depois de escrever os parágrafos acima, tentei, por meio de uma consulta no facebook, levantar uma demografia da questão rabiscar ou não os livros que se lê. Não esperava que o conjunto das respostas fosse tão rico (obrigado, pessoal !), quantitativa e qualitativamente. Não apenas uma questão tão singela e aparentemente sem importância divide opiniões, com defensores fervorosos de um lado e de outro (rabiscar ou não), como também revelou, entre os que rabiscam, uma vasta gama de procedimentos, levando à inevitável conclusão de que cada rabiscador tem seu próprio método. Ainda que com alguma redundância, é claro, mas sempre com peculiaridades únicas.

Meu levantamento serviu ao menos para que eu desistisse de desfiar aqui meu(s) método(s), como se (que me desculpem a presunção) tivesse inventado a roda. Prefiro, outrossim, me deter sobre as razões que me levam a rabiscar, as quais dividi (a engenharia que não sai de mim…) em duas grandes categorias, a saber, conscientes e inconscientes.

Começo pelos motivos conscientes, que, como tais, são bem mais fáceis de identificar. A principal razão, minha e de outros respondentes, para anotar nas margens e entre as linhas de tudo o que se lê é, de longe, facilitar a recursividade, i.e., o acesso posterior, por quaisquer razões, a algo que lembramos de ter lido sem saber exatamente onde.

Já experimentaram procurar uma passagem específica num livro lido mas não anotado ? Trabalho demorado e, quase sempre, frustrante. Embora use e abuse (como tantos amigos que me responderam) de sublinhas (para informações curtas), colchetes ([], para citações longas) e traços nas margens laterais (para parágrafos inteiros), o que mais tem me ajudado a localizar trechos lidos são mnemônicos que escrevo, como subtítulos, na margem superior de algumas páginas, a informar sobre do que se trata na mesma.

Funciona como um segundo índice, mais detalhado, segmentando o texto com maior frequência sem, contudo, interromper a leitura do mesmo – não interferindo, assim, com estilos literários que dependam de longos fluxos de consciência. Tipo textos monolíticos como, por exemplo, a parte final de Ulisses ou os dois parágrafos de Extinção. Com mnemônicos de topo de página, tudo é facilmente remissível como, sei lá, os curtíssimos capítulos, por vezes com menos de uma página, todos eles com títulos, das Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Uma especulação interessante. Será que um autor, ao escrever um bloco de texto maciço, sem quaisquer recursos de diagramação (parágrafos, seções, capítulos) que induzam interrupções na leitura, não entenderia a fragmentação cartesiana, por qualquer motivo, de sua prosa ininterrupta como uma mutilação de sua obra ? Estaria, então, o leitor, ao “decupar” um bloco de texto monolítico em porções mais facilmente digeríveis, atentando contra a vontade do autor ? É bem possível. Mas aí já adentramos na longa, conquanto pertinente, discussão sobre até que ponto uma obra cometida ainda pertence a seu autor. Noutro momento, talvez.

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É fácil para quem faz anotações em livros justificar racionalmente tal opção. Mais difícil é decifrar ou sequer perceber quais impulsos não declarados podem estar por trás do ato. Por isto, tudo o que segue não passa de um exercício hipotético. E para não impor aos que tão gentilmente responderam minha enquete com a arbitrariedade, por vezes até violência, inerente a toda interpretação, limito aqui minhas observações à minha própria experiência.

Há um abismo entre o espírito cristalizado num livro e a materialidade do volume em si. Conquanto ideias nele contidas, salvo a atribuição de autoria, pertençam à humanidade, podemos possuir uma edição fabricada e comercializada daquelas formulações. Um livro numa estante, pouco importa se lido ou não pelo proprietário, é, de certo modo, como um espírito domesticado.

Já ouvi pessoas supostamente inteligentes declararem que, para sondar a alma de alguém, basta espreitar sua biblioteca. Que disparate ! Tudo bem que, numa das vezes, ouvi isto como uma piada. Mas, em pelo menos uma das outras, a coisa foi proferida com ares de profunda sabedoria. Por acaso ou não, lembrei aqui de uns biombos de cartolina estampados com lombadas de livros em estantes utilizados como fundo (cenário) naquelas lives popularizadas durante a pandemia de covid-19.

Mas não percamos o foco. O que isto tem a ver com anotações ? Nada, admito. Enveredei por este parêntese tão somente para enfatizar a conotação de autoridade acumulada conferida a alguém pelos livros que possui – dos quais, na maioria dos casos, somente uma parcela foi efetivamente lida. Também não interessa aqui a interessantíssima discussão sobre a validade da posse de livros não lidos.

E chegamos, finalmente, ao caso dos livros que, por estarem anotados, foram realmente lidos. Pois não dá prá se anotar (ao menos coerentemente) o que não se lê. O que quero dizer é que, por melhores que sejam os motivos que me levaram a anotar sobre um texto impresso, e por mais úteis que essas anotações possam ser, está subentendida, concomitantemente, a afirmação de que “estive aqui”. Ou, numa formulação menos confessável, a de que “este volume me pertence”. Ou ainda, se quiserem, como um cão a urinar num poste a demarcar território.

Até que ponto as razões “nobres”, explícitas, sem dúvida legítimas, para se rabiscar um livro enquanto se lê e, por outro lado, aquelas indizíveis, seja para documentar a experiência da leitura, seja para reforçar a posse do volume encadernado, interagem, com predominância de umas ou de outras, é motivo para debate.

Ao qual, em nome da concisão, por hora me furto. Se, depois de ler estas linhas (principalmente as últimas), na próxima vez em que quiser macular o excedente de papel em branco de um livro com alguma anotação, subitamente o lápis (ou, vá lá, a caneta) lhe parecer mais pesado, nutrirei secretamente um sentimento de missão cumprida.

Sobre teorias conspiratórias e outros quetais

Meus filhos descobriram a dialética. Gostam de conversar sobre livros que leio. Dia desses, quando, falando sobre O Intelectual (2006), de Steve Fuller, mencionei que, segundo aquele autor, o modus operandi de todo intelectual é formular continuamente teorias conspiratórias, as quais não seriam, a priori, nem boas nem más, fui advertido por um deles a tomar cuidado quando proferisse esse tipo de coisa para não ser confundido com terraplanistas ou antivacs (tive que perguntar a ele o que era um antivac) e, consequentemente, ridicularizado.

Na hora só achei graça (ele está assim depois de ter lido A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), de Thomas Kuhn; também tive, na juventude, meu momento de fascínio pela razão). Aquilo ficou martelando em minha mente. Como a bela expressão teoria da conspiração (tautológica, já que toda teoria é, por definição, conspiratória) assumiu um caráter tão pejorativo ? Será que ela já nasceu assim, como uma categoria capaz de abranger toda formulação estapafúrdia ? Careço de subsídios etimológicos para responder adequadamente. Mas que é intrigante, é. Súbito, me pareceu natural que Fuller procedesse à reabilitação semântica do termo, do mesmo modo como elogiou os sofistas, oponentes de Sócrates, detratados por Platão.

Toda tentativa de explicação de fenômenos naturais e sociais que ocorrem constantemente à nossa volta surge como uma teoria conspiratória. Explicar algo é encadear premissas em silogismos mais complexos. Se as premissas forem falsas é outra história, mas nenhuma teoria surge de outra forma. Então, de pouco importa se tantas formulações, pejorativa e inadequadamente chamadas de conspiratórias, forem ridículas se ao menos algumas delas servirem para termos uma compreensão melhor de qualquer coisa.

A história, por exemplo, é resultado de conspirações validadas pela aceitação ampla. Não me refiro aos fatos, que são, obviamente, verdadeiros ou falsos. Mas toda correlação entre eles é uma narrativa condicionada pelo espírito dos tempos e necessariamente ideológica – de modo que épocas e grupos distintos podem oferecer narrativas radicalmente diferentes sobre os mesmos fatos.

Todo esse relativismo é ruim ? Não acho. Pois é justamente do conflito entre narrativas contrastantes que podemos esperar algum progresso (ou, é preciso admitir, retrocesso) nas relações humanas.

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A correlação espúria. Toda teoria conspiratória original procura estabelecer alguma correlação entre fatos verificáveis até então não percebida. Por vezes, acerta. Em todos os outros casos, temos o que se convencionou chamar de correlação espúria. Um exemplo. Já demonstraram que, toda vez que um filme com Nicholas Cage é lançado, [ocorrem/se evitam] tragédias. É razoável supor que boa parte da pesquisa científica consiste em procurar aleatoriamente correlações para depois descartar as que forem espúrias.

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Em Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas (1974), Robert Pirsig narra uma saga de autoconhecimento ambientada numa viagem de motocicleta que empreendeu com seu filho de 11 anos na garupa pelo oeste norte-americano. A parte chata do livro (acreditem que há), mais linear, descreve seu progresso pela paisagem. Em meio a isto, intercala, com profundas incursões pela filosofia (“a mãe de todas as disciplinas”), a degradação de sua crença no método científico e, como ele mesmo chama, na “Igreja da Razão”.

Numa das melhores partes deste discurso fascinante que entremeia seu relato de viagem, Pirsig se debruça demoradamente sobre a origem das hipóteses, a seu ver o calcanhar de Aquiles do método – já que este, em momento algum, fornece qualquer pista sobre o surgimento das mesmas.

” A formação das hipóteses é a fase mais misteriosa do método científico. De onde elas vêm, ninguém sabe. A pessoa está sentada num lugar qualquer, pensando na vida, e de repente – zás ! – passa a entender uma coisa que não entendia antes. Até ser testada, a hipótese não é verdadeira, mas ela não provém de experiências. Origina-se num outro lugar. Disse Einstein:

O homem tenta elaborar para si mesmo, do modo que melhor lhe pareça, uma descrição simplificada e inteligível do mundo. Depois, tenta até certo ponto substituir o mundo da experiência por esse universo por ele construído, para poder dominar toda a natureza… Ele faz desse universo e de sua construção o centro de sua vida emocional, para encontrar, assim, a paz e a serenidade que não consegue dentro dos limites a ele impostos pelo turbilhão da experiência pessoal. O objetivo último a ser atingido é chegar àquelas leis elementares universais a partir das quais o universo foi construído a partir de pura dedução. Não há um caminho lógico que conduza até essas leis; apenas a intuição, baseada no conhecimento afetivo da experiência, pode conduzir a elas…

Intuição ? Afetividade ? Palavras estranhas para descrever a origem do conhecimento científico. “

Pirsig se diverte relatando ter percebido diversas vezes, no laboratório, que o que pareceria ser a parte mais difícil do trabalho científico era, na verdade, a mais fácil. Que ao testar uma primeira hipótese já lhe vinha a mente um verdadeiro enxame de novas hipóteses, as quais, por sua vez, ao serem testadas, conduziam necessariamente a outras – de tal modo que se multiplicariam indefinidamente se não fossem descartadas após cada teste. Em dado momento, chegou a formular, jocosamente, uma lei segundo a qual “o número de hipóteses racionais que podem explicar qualquer fenômeno dado é infinito”.

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Fuller, em seu livro supracitado, categoriza os entes pensantes em filósofos, cientistas e intelectuais para, então, fazer distinções entre as categorias, tais como Cortázar em Histórias de Cronópios e de Famas (1962). Ainda que Cortázar nunca tenha definido precisamente o que seria um cronópio ou um fama, é improvável que qualquer leitor minimamente sensível não consiga entender ao que ele esteja se referindo ao tipificar, por meio de exemplos, representantes de cada categoria.

Sei que tais categorias não são estanques entre si, podendo um mesmo indivíduo apresentar simultaneamente traços de mais de uma delas. São, ainda assim, bem úteis para fins didáticos. Tal é o caso, por exemplo, dos autores de ficção científica. Sem se preocupar, enquanto intelectuais, com a fundamentação teórica do que dizem, deitam formulações – como o “gelo 9”, de Kurt Vonnegut, em Cama de Gato (1963), a partir de cuja enunciação cientistas lançam mão de todo seu arsenal teórico para validá-las ou, ao invés, refutá-las.

Nesta longa digressão que se assemelha, no máximo, a um esboço, nada melhor para concluir do que a arrebatadora metáfora de Richard Dawkins, guru maior do ateísmo, que compara, em sua obra Deus, um Delírio (2006), a percepção humana ao que se é dado a ver através da estreita janela de uma burka. As frequências de luz visíveis, por exemplo. Nada suspeitamos do que possa ser “iluminado” por radiações inferiores ao infra-vermelho ou superiores ao ultra-violeta. Do mesmo modo, não enxergamos o que é pequeno demais (o átomo) ou grande demais (a “terra plana”), nem o que se move rápido demais (a luz). Então (conclui), temos que recorrer à ciência para desvendar tudo aquilo que se situa além dos limites de nossa percepção.

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PS: tenho enorme curiosidade por conhecer o que Dawkins teria a dizer sobre o ceticismo de Pirsig.