Decidi escrever sobre Scruton depois de ler uma instrutiva postagem sobre o mesmo por meu amigo Zeca Azevedo (obrigado, Zeca !). Após perceber que meu comentário seria demasiado longo, muito mais do que a postagem que o ensejou, vim ao editor do blog – este espaço mais reservado, onde só entra quem quer, mais afeito à contemplação e à reflexão do que ao fluxo vertiginoso das redes sociais. Para usar de uma imagem: ler um blog é como (ou, ao menos, quero que seja) viajar por uma estrada vicinal, esburacada e com curvas mal (ou não) planejadas, que nos dá tempo de desfrutar da paisagem ao redor; ao contrário de ir por uma via expressa, indiferente a tudo o que há entre os pontos de partida e chegada. Obrigado, Robert Pirsig !
Zeca começa sua postagem/diatribe sobre Scruton se desculpando pelo trocadilho Scruton/escroto. Ora, não é preciso se desculpar, pois a simples menção ao nome do controverso esteta inglês provoca inevitavelmente entre alunos risinhos disseminados, isto quando um deles não chega a sublinhar explicitamente a semelhança entre as duas palavras.
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Roger Scruton (1944-2020) é uma unanimidade. Odiado, por suas opiniões radicais, por praticamente todos que nutrem alguma forma de apreço ou curiosidade pela arte criada a partir do início do século 20. No ano anterior a sua morte, proferiu uma conferência no Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre.
Não vou, aqui, desfiar sua biografia, que está na wikipedia prá quem quiser conhecer. Para nossos propósitos, basta saber que ele dedicou sua vida a atacar toda arte que propunha uma rejeição explícita de cânones válidos para períodos artísticos anteriores. Ao mesmo tempo, defendia, em nome de salvar a arte do futuro, um retorno deliberado a práticas tradicionais mais afeitas a um gosto moldado pelo passado. Seus alvos prediletos: a música serial e a arte visual “moderna”, a qual afirmava ser indistinguível daquela produzida por uma criança (voltaremos a isto). Sua auto-confiança (que detratores talvez prefiram chamar de arrogância) era tamanha que chegou a fundar The Future Symphony Institute, dedicado à restauração de valores musicais tradicionais – o qual, providencialmente mantido no ar após sua morte, ainda oferece acesso instantâneo a muitos de seus polêmicos textos sobre estética e educação.
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Mesmo com todos os óbices levantados em relação a suas posições, mais do que reacionárias, até obtusas (sim, pois, por vezes, chegamos a duvidar que Scruton de fato alcançasse todas as implicações, num sentido mais amplo, de tudo o que ele desqualificava), suas convicções – a saber, sobre a natureza decadente de tantas formas de arte recentes e disruptivas, conquanto sua relevância histórica – são importantes por representarem exemplarmente segmentos numerosos do pensamento atual.
Por isto mesmo, costumo recomendar seus escritos, sem dúvida reacionários, a meus alunos, em oposição a, num outro extremo, o célebre manifesto de Milton Babbitt Who cares if you listen, de 1958, que postula exatamente o contrário, i.e., que o compositor deve prescindir de qualquer apreciação e aprovação por um hipotético público. Babbitt vai mais longe, postulando a universidade como o locus ideal, portanto, para o ofício do compositor.
Costumo lançar os textos de Scruton e o manifesto de Babbit como uma provocação. Munição para debate. A síntese que espero ? Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Nem 8, nem 80. Penso que o dilema entre uma arte totalmente acessível e outra totalmente hermética é o paradoxo crucial a que todo artista está sujeito: comunicação X expressão. Neste contexto, toda a retórica (e eloquência) de Scruton em favor de uma maximização da comunicação na arte é o que de melhor encontrei, até hoje, apesar de seus óbvios calcanhares de Aquiles, sobre a mesma. Todos concordam que arte é sobre expressão. Mas até que ponto a comunicação (e, portanto, a existência de um público) é essencial ? Aí começa o debate.
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Para concluir, dois fatos bizarros sobre Scruton.
Em 2016, ele proferiu, no Festival de Donaueschingen (depois de Darmstadt, o maior “templo” universal das vanguardas musicais), uma palestra sintetizando sua posição conservadora, presumivelmente abominada pela audiência. Tiro o chapéu. Até agora estou em dúvida sobre qual foi o gesto mais corajoso: se o dele ao aceitar falar diante da plateia de Donaueschingen ou o dos organizadores do festival ao convidá-lo (pois é rara e louvável tamanha disposição para ouvir contraditórios !).
A arte contemporânea é indistinguível daquela produzida por uma criança. Sim, é verdade. Mas e daí ? A resposta passa inevitavelmente pela definição de arte, se é que existe uma. Museus e salas de concerto nos ensinam que a arte do passado é caracterizada (mas não definida !) por uma maestria exacerbada do métier. A tal da alta cultura, primeiramente reconhecida pelo domínio do pincel, do cinzel, da harmonia ou do contraponto. Mas será que é só isto ?
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