Blues eleitoral (ii): por que derrotas da esquerda nas urnas me entristecem tanto

Por que tenho filhos. Para entender melhor esta afirmação, tão lacônica, é preciso, antes, embarcar numa regressão ao passado. Não a um passado distante. Basta, para tanto, retrocedermos uns 50 anos, ao tempo de minha infância e juventude.

Quando eu era criança, brincava na rua. Jogava bola e taco com amigos em terrenos baldios. Quando jovem, explorava a cidade, a pé ou de ônibus, sem grandes riscos. Hoje, vivemos um crescente processo de condominização. Nossas crianças brincam em espaços protegidos, cercados por grades de ferro e cercas elétricas e vigiados por câmeras de segurança, e estudam em escolas particulares cujo acesso é guardado por leões de chácara. O comércio de rua é cada vez mais substituído por shoppings, protegidos por forte aparato de segurança, onde se pode comprar tranquilamente sem ser importunado, longe da vista de excluídos que, por sua vez, são banidos para fora de nosso campo visual nesses ambientes assépticos, segregados. Dos cinemas de rua, então, nem é preciso falar.

Com todos esses indicadores, só não vê quem não quer que, na última metade de século, a fratura social só aumentou. E se hoje ainda é possível se viver dentro da bolha de inclusão, é só por que a moral religiosa (a recompensa pós-morte) e as forças da lei, seja por meio de uma polícia cada vez mais capenga ou de empresas de segurança e milícias privadas cada vez mais fortes, ainda funcionam como um fator repressivo de dissuasão em relação a anseios insurgentes.

Mas toda conformidade tem um limite. E chegará o dia, no qual a desigualdade atinja um nível inaceitável para a maioria, em que aqueles fora do cinturão de miséria hão de se rebelar. Será o Grande Levante. Nesse dia, não adiantará você dizer que, mesmo tendo carro, casa própria e comida para sua família, você não pertence a uma elite abastada e gananciosa. A fúria popular se estenderá igualmente a quem quer que ostente qualquer coisa que seja interpretada como um sinal de riqueza, com as massas miseráveis submetendo a todos a uma justiça sumária, sem direito a contraditórios ou ampla defesa. Será o colapso de todas as instituições que hoje sustentam, ainda que precariamente, os privilégios de alguns.

Meritocracia ? Bullshit. Se galgamos, no mundo, posições de vantagem, tais se devem, primordialmente, a diferenças nas condições iniciais, tais como heranças ou acesso ao topo da pirâmide educacional. Sei. Sempre há o caso do miserável que logrou, a muito custo, estudar e ser alguém na vida. Mas isto, longe de ser a regra, é uma exceção que, sempre que descoberta, é glamourizada. A TV adora essas coisas. É a célebre história, vivida por Juliana Paes, da boleira de rua que vira dona de uma rede de confeitarias. Não que histórias assim não existam. Mas não é absolutamente o caso da imensa maioria, que não pode ser acusada de falta de criatividade nem tampouco de força de vontade. É a grande falácia do empreendedorismo ao alcance de todos.

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Sempre que eleições se aproximam, começam nas redes sociais debates acalorados sobre quais candidatos mentem mais ou alicerçam suas candidaturas sobre falsas promessas. Numa dessas trocas de farpas, alguém disse, muito apropriadamente, que políticos em campanha são, antes de tudo, atores representando a si mesmos como personagens. Tal é a mais pura verdade, independentemente de viés ideológico.

Concordei de pronto e acrescentei que, por isto, numa eleição presto pouca ou nenhuma atenção a promessas e programas de cada candidato, me atendo, antes, em identificar qual deles se afina mais com ideais tais como, de um lado, o lucro, o crescimento, a desregulamentação e o estado mínimo ou, de outro, o combate à desigualdade. Ou seja, a velha dicotomia entre direita e esquerda que, ainda que muitos queiram ultrapassada, nunca foi tão atual. A partir disto, e exclusivamente disto, escolho meus candidatos.

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Se eu não tivesse filhos nem tampouco ligasse para o futuro da humanidade, pensando bem pragmaticamente poderia até escolher políticos que defendessem um matriz ideológica que mantivesse, pelas poucas décadas de vida que me restam, privilégios amealhados até aqui. Mas depois que a gente tem filhos, a busca de um mundo melhor para eles ou para seus filhos se torna um imperativo, quase uma obsessão. Espero com todas as minhas forças que eles nunca tenham que passar pelo Grande Levante. Consoante a isto, voto sempre o mais à esquerda que me é possível.