Por que prefiro filmes a séries

Minha má vontade em relação a séries televisivas não é nenhuma novidade. Neste post, tentarei esclarecer, ao menos em parte, minha aversão a narrativas fragmentadas em episódios autônomos, i.e., que possam ser plenamente apreciados sem quaisquer prejuízos advindos da ignorância daqueles anteriores ou posteriores.

Grandes romances não costumam admitir qualquer continuidade depois de seus desfechos. Séries, ao contrário, estão sempre abertas a novas aventuras dos mesmos personagens.

Quando um autor desenvolve uma série, seu foco não está, ao contrário de em romances ou o filmes, na transformação irreversível de seus personagens pela experiência. Protagonistas de narrativas seriadas são condenados a priori à mesma abordagem de situações repetidas, percorrendo sempre o mesmo caminho. Se começamos, por exemplo, a ver um episódio desconhecido de Columbo ou Sherlock Holmes, podemos antecipar com precisão o que teremos pela frente – a saber, o desvendamento de um crime ao modo, já conhecido, peculiar a cada detetive.

É como se, ao final de um filme bem roteirizado, com um ou mais plot twists, pudéssemos dizer “Eureka ! Agora entendi.”; ao passo que, ao início de cada episódio de uma série, o espectador entediado pense quase sempre “Ok, sei o que ver por aí mas, ainda assim, assistirei.” (as razões da entrega voluntária e repetida a este tipo de sequestro de atenção, porquanto intrigantes, fogem ao objetivo deste texto)

Como, por exemplo, no clássico argumento, tão caro à ficção científica, das viagens no tempo. Em filmes, como 2001 ou O Exterminador do Futuro, acontecem apenas uma vez, adquirindo, por isto, enorme relevância, Já em séries, como Dark, perdemos a conta de quantas vezes personagens vem e vão, através de um portal, de uma época para outra. Enquanto roteiristas habilidosos mantém, como uma chama piloto (tênue, mas permanentemente acesa), um mistério a ser desvendado, nos distraímos com heróis que excursionam à vontade entre o passado e o futuro. Francamente, tenho pouca paciência para isto.

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Para deixar mais clara minha objeção a este vício dos gêneros seriados, imaginemos, numa operação de redução ao absurdo, como seria uma narrativa clássica unidirecional se transformada em série.

Taxi Driver. Numa sequência precisa, tomamos contato com a apresentação do personagem; sua frustração; sua atitude e, finalmente sua gratificação. Do início ao fim da saga, ele permanece um motorista de taxi no magnífico retrato, por Scorcese, do submundo de uma Nova Iorque totalmente não glamorosa como em outros filmes. Só que, tão somente por meio do gênio interpretativo de De Niro e sem o recurso a falas (como atores que “pensam em voz alta” em telenovelas) e vozes narrativas elucidativas, percebemos claramente a transformação de Travis de bobalhão insignificante em herói reconhecido – e, o que é mais impressionante, sem qualquer alteração (como já dissemos), de seu status ocupacional.

Agora imaginem se alguém tivesse a infeliz ideia de converter Taxi Driver numa série, com Travis protagonizando, a cada novo episódio, uma carnificina digna dum Tarantino em nome da correção, pelas próprias mãos, de alguma injustiça sistêmica.

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Sei. Séries são hoje bem populares. Praticamente hegemônicas. Assim, não há quem não tenha uma favorita. Todos detestam séries por definição (deve ser chique, sei lá…) e, ainda assim, dizem “Ah, mas esta é diferente.” Então, fiel à vocação polêmica deste blog, quero conhecer contraditórios – que são, nestes casos, defesas de sua séries prediletas.

Para que tanto excesso?; ou Da ignorância voluntária

Certa vez um cunhado meu, renomado economista acadêmico da UFRJ, em vias de se aventurar no mundo empresarial, no segmento de alimentos, me perguntou qual eu escolheria dentre uma pizzaria de menu sucinto, com uns poucos sabores, e outra que oferecesse uma grande variedade de opções. Para sua decepção, escolhi recorrentemente aquela que oferecia menos pizzas diferentes, alegando que o excesso de opções não servia mais do que para distrair os clientes – o que representava, para mim, uma sobrecarga desnecessária no processo de escolha, o qual, num estabelecimento decente, não precisa ir além de alguns clássicos como napolitana, margarita, calabresa ou anchovas. Vá lá, tomates secos com rúcula. Mas gourmetizações de toda sorte, com salmão, bacalhau, mel, queijo brie  e afins, além das famigeradas pizzas de coração de galinha e estrogonofe (eca !), são, para mim, um engodo.

Meu cunhado professor de economia acabou abrindo uma pastelaria, com não sei quantos tipos de pastel e que existiu no Leblon por não sei quanto tempo. Do episódio de sua indagação filosófica sobre a variedade do cardápio e sua frustração ante minha preferência, testada de vário modos, por um menu mais sucinto, permaneço até hoje com a impressão de que, para a economia tradicional (aquela que adota o mercado como régua ideal para tudo), mais opções de consumo é sempre desejável. Este texto tem por finalidade afirmar o contrário.

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E já que começamos falando em comida, olhemos mais de perto como se comporta a gastronomia em relação à variedade.

A cozinha clássica é fundada sobre um repertório bem delimitado, tendendo ao finito, de combinações de ingredientes. Assim, podemos pensar em muitas sopas, cujas bases se constituem em batatas (o caldo verde), ervilhas, aspargos, abóbora, repolho (kapuzta) ou beterrabas  (bortsh), entre outras. É claro que as carnes e os temperos podem variar em cada versão familiar, mas ai do cozinheiro que, inadvertidamente, ousar misturar quaisquer dos ingredientes acima, mascarando suas identidades.

O mesmo ocorre com o sushi, cuja versão original exclui inovações ocidentais como o acréscimo de cream cheese, morangos ou coisa que o valha. Então, não é por acaso que reality shows culinários, tais como o Mastercheff, repousam sobre a criação, pelos aspirantes, de combinações inusitadas de velhos ingredientes. Nestes programas, os processos culinários são quase sempre ofuscados pela originalidade da mistura.

O segmento onde a multiplicação capitalista da oferta se manifesta com mais veemência é o da moda – que, além de induzir alguns a possuir uma grande variedade de peças de vestuário, os leva a trocar de guarda-roupa de tempos em tempos, sob o preço de, caso contrário, parecerem de algum modo ultrapassados. O caso mais emblemático deste estado de coisas é o de mulheres que precisam ostentar um vestido novo a cada festa. O fato de que homens não estejam, geralmente, submetidos ao mesmo “código” de vestuário permanece um dos grandes mistérios dos estereótipos de gênero.

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Desgraçadamente, a música, o cinema e a literatura foram as modalidades artísticas melhor absorvidas pela praga da indústria do entretenimento – principal responsável, ainda que de modo espúrio, alheio à própria vontade, pelo surgimento, entre as obras de arte, da noção do supérfluo, irrelevante ou descartável.

Não sendo um leitor “profissional”, como um crítico, nem sequer compulsivo, interessado pela maioria das novidades editoriais, divido minhas leituras em dois grandes grupos. De um lado, títulos consagrados, de ficção ou não, contemporâneos ou datados, “históricos”; noutras palavras, o que se convencionou chamar de grande literatura. De outro, livros escritos por amigos.

Muitas vezes abandono leituras antes de chegar ao fim. Em favor de meus amigos literatos, posso dizer que não lembro de, em tempos recentes, ter abandonado a leitura de alguma de suas obras, e que isto tem mais a ver com a qualidade de seus livros do que com nossa amizade. Por extensão, concluo que exista, para além de meu círculo de amizade, uma vastidão de novos autores interessantes cuja obra jamais chegarei a conhecer. Isto pode ser tido como um dos grandes males do excesso de autoria em que somos imersos. Ou não. Não sei ao certo.

Toda a literatura restante é por mim relegada a um imenso limbo com o qual não travarei, no restante de meus dias, qualquer contato – sem me sentir, com isto, de modo algum irremediavelmente ignorante por isto nem tampouco culpado por tal atitude. Tal ignorância é  ruim ou indesejável ? Também não sei. Torno a isto ainda neste post

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O tempo disponível durante uma existência humana para a fruição de livros, filmes e música é limitado, variando de acordo com cada indivíduo e sua etapa  de vida. É, no entanto, evidente que, mesmo no caso de bibliófilos, cinéfilos e melômanos vorazes, ninguém tem tempo para conhecer tudo o que já foi produzido. Daí a pergunta:

qual a importância de alguém, mesmo um “especialista”, conhecer, de fato, tudo o que está a seu alcance ?

Tudo bem que redes de recomendação dependam, para seu bom funcionamento, de curadores oniscientes. Mas e se nossa biblioteca, playlist ou coleção de filmes vistos mais de uma vez se estendesse a um conjunto dramaticamente menor de opções do que a totalidade de tudo o que se filma, compõe ou escreve, seríamos, necessariamente, mais estúpidos e/ou menos felizes ?

Eis, outra vez, a pergunta que não quer calar. Retórica, é claro, apenas à guisa de provocação.

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Duas “novidades” da indústria do entretenimento são as séries televisivas e as plataformas de streaming de música e filmes.

Dizem que até há séries boas. O que, todavia, não é suficiente para eu me interessar por elas. O problema é o tipo de contrato que se estabelece entre uma série e seu espectador. Para melhor entendê-lo, tomemos, por contraste, a experiência de se assistir a um filme comum. Nele, podemos, ao cabo de umas poucas horas, impregnar no imaginário uma história com começo, meio e fim. Mesmo naqueles com finais abertos, antíteses dos whodunits policiais. Já em séries somos convidados a reencontrar, ciclicamente, as mesmas personagens a postergar indefinidamente um gran finale que jamais acontece. Pois séries apresentam, invariavelmente, dois tipos de desfecho, a saber,

enquanto a série em questão tiver bons índices de audiência, se pode apostar com segurança numa nova temporada, com os mesmos heróis e situações requentados;

se, ao contrário, a série não der muito Ibope, é abortada ao fim da temporada corrente, ainda que, para alguns aficionados, com um amargo gosto de quero mais.

Nas duas hipóteses, séries se constituem, no máximo, em esforços bem sucedidos para preencher com estímulos externos o tempo disponível para entretenimento de cada um. O preenchimento de todo o tempo e de todos os espaços disponíveis, ainda que com coisas e conteúdos descartáveis, é um dos pilares do consumismo.

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Quanto às plataformas de streaming, o maior problema é sua notória hostilidade a conteúdos perenes mais antigos. A revista Newsweek já se ocupou da escassez de títulos clássicos no Netflix. Em meio à profusão de lançamentos que em poucos meses serão esquecidos, é impossível encontrar, por exemplo, um único Hitchcock. A exclusão é a mesma até se considerarmos cinematografias mais recentes. Quando quis mostrar a um de meus filhos Fargo, uma Comédia de Erros, dos irmãos Cohen, não encontrei o filme no Now nem tampouco no Netfix.

Ao mesmo tempo, já não dispomos de uma rede decente de videolocadoras. É, pois, possível se afirmar que, dados os atuais meios de exibição, a memória cinematográfica está morrendo. Ou, quando muito, foi relegada a círculos especializados.

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E chegamos, por fim, à música. A esmagadora maioria do que se produz hoje pertence a um segmento, o pop, para o qual careço de conhecimento e, portanto, competência para apreciar. Por isto, tenho que me debruçar sobre coisas mais antigas tais como o jazz ou a música sinfônica.

A sinfonia é um território pouco populoso, evitado por compositores casuais, dada a grande complexidade tanto da escrita para o conjunto de instrumentos (a orquestra sinfônica) para o qual é composta como das formas nas quais se realiza.

O marco do primeiro movimento da Eroica (terceira das nove sinfonias de Beethoven), com seus 15 minutos de duração. Ora, são raros os compositores, de agora ou de qualquer época, capazes de sustentar por tanto tempo o interesse em torno de um todo inteligível (i.e., que permita ao ouvinte reconhecer, a cada instante da audição, em que parte do “percurso” se encontra).

Mesmo neste campo rarefeitamente  povoado, que inclui não mais do que umas poucas centenas de obras, é bem questionável até que ponto vale a pena conhecer tudo “em extensão” ao invés de, ao contrário, se ouvir repetidamente algumas poucas obras seminais.

No jazz não é diferente. De que vale se ouvir tantos pianistas, por melhores que sejam, depois de ouvir tudo o que se conhece de Bill Evans ? É claro que toda curiosidade é por si só virtuosa, nada invalidando a nem sempre prazerosa tarefa de se conhecer algo novo, já que a taxa de gratificação da escuta exploratória é sempre muito baixa. Coisa para especialistas, que precisam ter uma visão “plana” de campo para poder oferecer recomendações confiáveis.

Assim, frequentemente me pego reouvindo aqueles três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, contemporâneos menos célebres do Kind of Blue, que nunca foram superados por qualquer coisa que tenha vindo antes ou depois.

Essas coisas me remetem sempre a uma asserção de Paulo Moreira, numa audição comentada sobre Bill Evans no Instituto Ling, segundo a qual todas as possibilidades parecem já terem sido experimentadas – não havendo, portanto, qualquer espaço para o surgimento de novos gênios e restando aos criadores atuais não mais do que exercitar, em releituras e interpretações, as descobertas de um punhado de inovadores históricos. Pessimismo ? Acho que não. Realismo, talvez.

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E como tudo tende à repetição, com novas elaborações sobre velhos temas, recorrentes, admito já ter me ocupado neste blog, ainda que como temas colaterais, com o excesso autoral, a importância da curadoria (aqui e aqui), a falta de memória do streaming, reality shows (aqui e aqui), o fim da genialidade (aqui e aqui) e os três álbuns de Oliver Nelson com Eric Dolphy, dos quais devo tornar a falar em breve.

Por que não assisto a séries de TV

series-1Ver séries de TV é como andar em círculos, ouvir várias vezes uma mesma história ou, ainda, ouvir música em forma de variações. Não é à toa que apenas grandes compositores tenham logrado êxito no complicado exercício composicional que consiste em conferir algum contorno dramático reconhecível a uma música que repete inexoravelmente um mesmo percurso harmônico. Mas tergiversei. Voltando, então.

Séries não devem ser confundidas com seriados (como Columbo, Hawaii 5.0 ou Kojac) nem tampouco com sagas (como Harry Potter, Star Wars ou o Senhor dos Anéis). As três categorias diferem entre si fundamentalmente pelo intervalo de tempo entre a exibição de cada episódio e o seguinte. Pois, se séries e telenovelas clamam pelo retorno da atenção do espectador a cada 24 horas, já seriados demandam uma atenção semanal enquanto sagas, plurianual.

O problema com todas as (poucas) séries televisivas que conheci (nunca acompanhei nenhuma) é sempre o mesmo: a monótona repetição de um mesmo ciclo dramático, culminando, ao fim de cada episódio, num “gancho” capaz de segurar a atenção do público até o início do próximo, dali a pouco menos de 24 horas. Tal fragilidade narrativa se torna, suponho, bem mais evidente com a possibilidade de se assistir, em DVD ou plataformas por assinatura como Netflix, temporadas inteiras de uma mesma série de uma só vez.

Episódios de séries são, ao contrário de capítulos de telenovelas (soap operas) agrupados em temporadas. Esta  distinção é importante por que, enquanto telenovelas se encerram, por definição, no último capítulo, jamais se pode prever quando uma série terá uma nova temporada – o que depende, muito mais do que da vontade de seus autores, do sucesso comercial da mesma e dos planos estratégicos de seus produtores.

É, assim, pela diferença entre, de um lado, um contorno dramático repetido ad nauseam (me senti um idiota depois de ver alguns capítulos de Lost !) e, de outro, um único, coincidente com a extensão da obra, que prefiro incondicionalmente filmes a séries.

Talvez a melhor demonstração da superioridade do cinema sobre as séries seja a memorabilidade relativa entre os dois modais. Pois é geralmente bem mais fácil recontar a história de um filme do que de todos os episódios de uma série. Neste sentido, podemos considerar todo e cada episódio de uma série (exceto, talvez, o primeiro e o último…) como essencialmente supérfluo à totalidade da trama. Pois pouco importa, por exemplo, a quem se dispôs a ficar acordado o suficiente para assistir a alguns episódios de Revenge, a conta exata de quantas vezes Victória sacaneou Emily e vice-e-versa.

Então, se este modal de narrativa, notoriamente capenga, vem conquistando uma hegemonia cada vez maior entre quem ainda vê televisão, tal se deve exclusivamente à manutenção de uma audiência cativa – quesito no qual as séries indiscutivelmente se sobressaem. Notem, aliás, que séries não são exibidas pela TV aberta nos chamados “horários nobres” (i.e., nos que já dispõem de uma audiência cativa), mas noutros para os quais ainda é preciso fidelizar um público – daí a importância do já mencionado recurso do sequestro de atenção de que toda série se vale.

A índole primordialmente comercial de toda série já era denunciada pela denominação de um de seus precursores: a telenovela – designada, em inglês, por soap opera. Ora, é preciso se aprofundar na etimologia do termo opera para saber que a partícula qualificativa soap se refere aos anúncios de sabonete originalmente veiculados durante a exibição das primeiras produções teledramáticas.

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Ao revelar a meu filho menor minha intenção de escrever sobre séries, fui surpreendido pela descoberta de que ele não ele não mais as via. Como no caso de sua mania anterior, pelo jogo Minecraft, disse que simplesmente perdera o interesse. Seria por demais presunçoso supor que seu cansaço do formato se devesse, de algum modo, ao fato de eu ter afirmado anteriormente que séries eram ladrões de atenção. Gosto, no entanto, de pensar que seu hábito recentemente adquirido de ver temporadas inteiras de séries de uma só vez possa ter lhe tornado mais evidente as limitações dramáticas do formato. Mais: se isto for verdade, é possível se antecipar que serão os próprios sistemas de distribuição de séries por assinatura – meramente pela possibilidade de aproximação temporal entre episódios projetados para serem vistos a cada 24 horas – os principais responsáveis pelo esgotamento do modal em razão de suas próprias limitações narrativas. Irônico, não ?