O problema da verificação de informações compartilhadas e um epílogo sobre as reais mazelas que afligem governos e estados

Comecei a escrever (mais) um libelo contra a satanização do serviço público pelo discurso liberal mas, no decorrer do processo, acabei optando por me debruçar sobre outro problema, senão mais sutil, ao menos nem tão exaustivamente esmiuçado. Fala-se bastante da necessidade de verificação de qualquer coisa que nos mobilize antes de compartilhá-la em redes sociais, mas nem tanto do tempo e dos recursos necessários à operação. Já da difamação do serviço público encontramos fartas manifestações em qualquer arauto do liberalismoo.

Foi através de uma amiga professora, acima de qualquer suspeita e, portanto, inocente quanto a qualquer imputação de má fé ou manipulação, que vi pela primeira vez o seguinte infográfico.

O mesmo chegou, por sua vez, a minha amiga por meio do compartilhamento por uma deputada federal, também acima de qualquer suspeita.

Ao contemplá-lo, exultei. Finalmente, dispunha de dados comprobatórios de uma tese há muito abraçada – a saber, a de que o suposto inchaço do serviço público está longe de ser, como não cansa de apregoar a direita, um grave problema brasileiro.

Antes, no entanto, de ceder à tentação de compartilhar o achado em minha rede social, fui atrás de, como manda todo manual de netiqueta, verificar as fontes.  Com a ajuda do Google, não foi difícil determinar que a origem da imagem era o site do sindicato de trabalhadores da Fundação Osvaldo Cruz. Através do texto da página e da minúscula legenda do infográfico, vim a saber se tratar de dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do IBGE – ainda que, em nenhum lugar da página, houvesse qualquer elucidação sobre quais dados vieram, respectivamente, de uma fonte e da outra.

A sigla OCDE não é nada estranha. Com efeito, se trata do mesmo órgão internacional para o qual Trump deixou, recentemente, de recomendar a participação do Brasil para, em vez disto, apoiar a adesão da Argentina, fato que tanto magoou Bolsonaro. Segundo a tão conveniente, geralmente sucinta mas nem sempre confiável wikipedia, descobrimos que a OCDE se dedica à promoção do desenvolvimento humano em países que abraçam a democracia representativa e a economia de mercado. Noutras palavras, uma espécie de Atlas Foundation do bem, outra vez acima de qualquer suspeita, que trata de promover o pensamento liberal ao mesmo tempo em que busca minimizar efeitos danosos do capital em ação. Na prática, persegue estes objetivos mantendo um vasto portal que disponibiliza dados comparativos sobre os mais diversos aspectos dos países membros.

Não foi fácil encontrar os dados atribuídos, no infográfico do sindicato da Fiocruz, à OCDE. Só depois de sair do site da organização é que me deparei, novamente graças ao contexto de pesquisa mais abrangente do Google, com o seguinte infográfico, associado a um documento da OCDE.

A coincidência entre os dados dos dois infográficos acima, o do sindicato da Fiocruz e o do documento da OCDE, é absoluta exceto por um detalhe – a saber, o de que o Brasil não aparece no segundo. O que nos leva a inferir que a posição do Brasil no ranking, realçada em vermelho no primeiro infográfico, saiu de outra fonte. É onde entra o IBGE. Com efeito, o percentual informado de funcionários públicos no Brasil é compatível com os dados mais recentes divulgados pelo instituto. Até aí nenhum problema.

Para entendermos a operação insidiosa realizada sobre os dados, é preciso ler as legendas com cuidado. O tamanho do funcionalismo de cada país estrangeiro, no estudo e no gráfico da OCDE, é medido em relação ao número total de trabalhadores em cada um deles. Ao importar os percentuais, entretanto, o sindicato brasileiro afirma que os mesmos são em relação à população de cada país (o que é bem diferente !), anexando, então, aos números da OCDE, o percentual  de funcionários públicos em relação à população brasileira – o qual acaba se tornando, por sua vez, a única informação correta do diagrama, tornando qualquer comparação com as outras nada menos que estapafúrdia. Notem que, se este percentual for ajustado, como os dos outros países nos infográficos, ao tamanho da população economicamente ativa, salta de 1,6% para 2,9%.

A correção não altera a posição do Brasil na tabela. Mesmo que o percentual verdadeiro seja quase o dobro do informado, ainda temos um serviço público bem menor, da ordem de pouco mais da metade, do que o já enxuto valor ostentado pelo austero Japão. Um desserviço prestado por este tipo de desinformação é que, com ela, ficamos sem saber se a discrepância se deve a alguma manipulação de má fé – como é, de resto, tão comum em discursos proselitistas – ou, antes, a um mero descuido decorrente de uma análise apressada. Assim, por conta desta imponderabilidade, uma evidência outrossim tão eloquente em favor de uma causa progressista pode ser facilmente desmascarada e desacreditada como fake news. Ora, com dados tão a nosso favor, não precisamos deste tipo duvidoso de “ajuda”.

Cabe, por fim, ressaltar, aos que tiveram a paciência de me acompanhar até aqui, que a verificação empreendida tomou um tempo enormemente maior do que aquele que seria necessário para simplesmente replicar a informação suspeita recebida, ainda mais agregada (o que é pior) à chancela de credibilidade de cada compartilhador.

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Ah, e antes que eu me esqueça e me tomem apenas por um advogado do diabo, que fique claro que o serviço público é um grande bode expiatório. Liberais culpam o funcionalismo pela estagnação econômica nacional, promulgando leis de “responsabilidade fiscal” para desviar a atenção do fato de que, na verdade, o problema não é tanto o tamanho do estado mas a baixa arrecadação do mesmo – a qual tem, por sua vez, origem nas isenções fiscais e na sonegação, sendo que o déficit público é agravado ainda mais pela corrupção e pela profunda desigualdade salarial.

Face a isto, governantes deveriam, ao invés de tentar enxugar um estado que já presta serviços deficientes, amealhar recursos suficientes para garantir a prestação dos mesmos em patamares mínimos aceitáveis. Medidas benéficas neste sentido incluem, além de enfrentar as pragas supracitadas, cortar drasticamente o número de representantes legislativos e detentores de cargos em comissão (CCs). Os primeiros por que supérfluos. Os últimos por que desastrosos.