On (non) conducting (xvi): A propósito da impactante descoberta de Les Dissonances, duas piadas com um fundo de verdade

Como é bom poder tocar um instrumento

Caetano Veloso, em Tigresa

O repertório de piadas que circulam em ambientes musicais, desde conservatórios até orquestras, é imenso. Os violistas são os que mais sofrem com isto. Ou se divertem, não sei ao certo. Quem ainda não viu, por exemplo, este célebre fragmento de um ensaio do grande Celibidache ?

Mas não vim aqui para falar dos queridos amigos violistas. Soe que, dentre a penca de excelentes comentários desencadeada pelo post de ontem, sobre a execução da Sagração da Primavera, de Stravinsky, pelo ensemble Les Dissonances em Paris, alguns me trouxeram de pronto à memória duas populares piadas, tendo a orquestra como temática de fundo, que não poderiam ser mais verdadeiras. Ainda por cima, as duas compõem um par perfeito, correlato – por se tratar, num caso, de uma semelhança e, no outro, de uma diferença. Não resisti. A elas.

A primeira deve ser contada a inglês, para preservar o ótimo trocadilho entre condom (preservativo) e conductor (regente). É mais ou menos assim:

Question: What’s there in common between a condom and a conductor ?

Answer: In both cases, it’s safer with, but better without.

Já a segunda é assim:

Pergunta: Qual a principal diferença entre uma orquestra sinfônica e uma de jazz ?

Resposta: É que na segunda, todos parecem gostar do que fazem.

* * *

É sabido que piadas explicadas tendem a perder a graça. Deixo, então, a vocês, se quiserem, a tarefa opcional de as relacionarem com comentários sob a primeira postagem de divulgação do texto de ontem no facebook. Dito isto, assumo o risco de me tornar demasiado sério e enfadonhamente didático ao trocar em miúdos o tal fundo de verdade ao qual aludo no título.

A primeira piada se refere claramente à relação custo/benefício envolvida no uso de preservativos e maestros. Numa primeira leitura, mais ligeira, depreendemos a correlação inversa entre segurança e prazer normalmente associada ao uso ou não de uns e de outros. Indo, no entanto, um pouco mais a fundo, verificamos que a música orquestral é executada com melhores resultados em concertos sem a intervenção de maestros – ainda que, para tanto, sejam necessários muito mais ensaios.

Temos, então, que, salvo nos raros casos que envolvem maestros excepcionais (i.e., em poucos ou pouquíssimos concertos, dependendo da orquestra), eles estão ali antes de tudo para poupar tempo de ensaio. Pois, afinal, ensaios são caros e agendas precisam ser cumpridas.

* * *

A segunda piada tem a ver com o prazer que os músicos demonstram sentir, num caso e noutro (i.e., na orquestra sinfônica e na de jazz), ao tocar. Ora, é praticamente impossível a alguém habituado a frequentar concertos sinfônicos não perceber, em pelo menos alguns assentos orquestrais, músicos que mais parecem no desempenho de alguma função burocrática, apenas à espera do fim do expediente. Isto não acontece em conjuntos de jazz, onde o prazer de cada integrante é muito mais evidente. Por que, então, orquestras tendem a ser mais “broxantes” para alguns ? (não falo, aqui, é claro, dos muitos músicos sinfônicos que revelam a cada instante a imensa alegria que sentem por poderem fazer parte daquilo tudo)

Uma possível explicação para este fenômeno é a tremenda desigualdade existente na distribuição de atenção entre todos os atores envolvidos em uma performance musical. Comparem, por exemplo, um concerto sinfônico com um jogo de futebol. Se em campo todos os olhares e as câmeras estão voltados, na maior parte do tempo, para os jogadores que correm no gramado ao invés de para o técnico que grita e gesticula à margem do mesmo, já num concerto tanto o público quanto as lentes parecem se concentrar no gestual do maestro, como se dele, e não dos músicos, emanasse a música que se ouve.

Ora, assim como excluídos e remediados se ressentem da enorme desigualdade na distribuição de renda, é natural que músicos de um conjunto limitem, voluntária ou inconscientemente, seu desempenho ao perceberem desequilíbrio similar na distribuição da atenção de ouvintes presenciais ou remotos. Suprimido o grande imã de atenção no qual se constitui a figura do maestro, a mágica se processa: todos passam a dar seu máximo, tocando “na ponta da cadeira”, motivados pela percepção de estarem recebendo seu devido quinhão na economia da atenção. Então, não é que alguns músicos não pudessem tocar mais proativamente – mas, tão somente, por que, dada a baixa taxa de atenção recebida, simplesmente não viam motivo algum para tanto entusiasmo. Isto é perfeitamente evidente, por exemplo, na execução da Sagração da Primavera por Les Dissonances, da qual falei ontem.

Outro aspecto inibidor do ímpeto orquestral é o confortável hábito de se ter uma referência visual única permanentemente disponível. A supressão da regência, além de obrigar cada músico a ouvir melhor o que os outros tocam, também engendra um complexo e ágil jogo de olhares entre as partes que compõem o todo. Isto pode ser ser muito bem observado nos close-ups de um outro vídeo de Les Dissonances tocando o movimento lento (a marcha fúnebre) da sétima sinfonia de Beethoven. Notem o contraste entre a delicadeza da música e o intenso jogo de olhares necessário para manter aquele tecido coeso.

Ainda sobre o prazer de tocar se sentindo no comando: observem a felicidade da primeira flautista de Les Dissonances, depois de tocar, praticamente sozinha, aquela frase final da Sagração, logo depois daquela apoteose orgiástica. Ninguém me convence de que é possível tocar aquilo melhor em resposta a um comando externo.

Conquanto o problema seja de fácil diagnóstico, sua solução não é nada simples. Passa, antes, pela conquista de uma sociedade mais igualitária, horizontal, na qual a competência de poucos deixe de ser reconhecida como tão superior à de muitos. Até lá, o modelo orquestral vigente permanecerá como talvez a melhor metáfora disponível de ideais neoliberais.