On conducting (xv): Por que A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, é melhor executada sem a intervenção de um regente

Por mais piegas que possa parecer, tenho que confessar: chorei vendo isto:

O vídeo me foi apresentado por um amigo – a quem sou imensamente grato – que, presumivelmente, prefere permanecer anônimo. Além de emocionado, também fiquei lisonjeado por ter sido, de certo modo, lembrado como alguém que comemoraria a boa nova. Faço, então, mais do que isto compartilhando a façanha.

Para quem ainda não se deu conta, se trata da estreia, há poucos dias em Paris, da icônica Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, executada sem a intervenção de um regente. Não é pouca coisa. Pois embora vários conjuntos internacionais (um dos primeiros foi o Orpheus, de Nova Iorque) já se dediquem há algum tempo à execução de repertório orquestral sem maestros, havia, antes desta façanha do Les Dissonances, um certo consenso de que aquele repertório no limite da complexidade rítmica sempre exigiria alguém à frente da orquestra a indicar o tempo. Com esta performance, foi deixado para trás mais este mito.

Antes disto, eu já havia visto uma execução de uma sinfonia de Mahler sem regente. Que, no entanto, deixou muito a desejar. Provavelmente por que, ao contrário do que costuma ocorrer na obra de Stravinsky, na qual o tempo é inflexível, já em Mahler o tempo é maleável – o que talvez ainda implique na direção de uma consciência individual para sua realização. Assim, embora aqueles músicos conseguissem tocar Mahler juntos sem o auxílio de um maestro (o que também não é pouco), faltava à música, a meu ver, digamos que um pouco de personalidade.

Tal não é o caso, entretanto, na execução de Stravinsky pelos membros de Les Dissonances – grupo que me apressei em conhecer e cuja performance do Concerto de Orquestra de Bartók, também no facebook, verei imediatamente após publicar este post.

Vendo e ouvindo este final da Sagração da Primavera, não pude deixar de reparar duas coisas. Primeiro, é visível o tremendo envolvimento de cada membro da orquestra, com uma linguagem corporal comum na música de câmera mas absolutamente rara em orquestras. Pois em Les Dissonances, todos tocam como se fossem spallas, i.e., proativamente. Tamanho empenho individual se reflete no corolário sonoro deste aspecto visual. Posso estar enganado, mas jamais ouvi uma orquestra que soasse tão articulada.

Quem frequenta concertos sinfônicos habitualmente já deve ter observado um certo “arrefecimento” (salvo raras exceções) do ímpeto dos que sentam nas primeiras estantes na medida em que nos aproximamos das últimas. Acho que isto pode até ter se normalizado como uma espécie de competência ideal na “ética” da performance orquestral – i.e., seguir o spalla sem em nenhum momento desafiá-lo. O resultado deste “abrandamento” de intenção expressiva em direção às últimas estantes passou, então, a ser percebido não como uma distorção mas, ao contrário uma qualidade orquestral – traduzida, talvez, como uma suavidade de ataque (na verdade um blend de ataques ligeiramente fora de sincronia) impensável em conjuntos de câmera.

Orquestras não tocam assim, no entanto, por que seus músicos sejam incompetentes. Ao contrário. O problema decorre, em parte, do fato de que músicos devam obedecer, permanentemente, a uma espécie de duplo comando, a saber, do regente e do respectivo spalla. Só que é bem difícil e contraditório – com efeito não mais do que uma aproximação – tocar ao mesmo tempo junto com outros instrumentistas (a concepção camerística) e com alguém que apenas gesticula sem tocar instrumento algum.

Em Les Dissonances, no entanto, não existe este duplo comando e a impressão que se tem é de uma orquestra em que todos tocam como se fossem spallas.

É claro que qualquer orquestra não tocaria melhor sem um regente. A disciplina da submissão a uma batuta é arraigada à cultura orquestral e assimilada desde o início da formação de cada instrumentista. A ruptura proposta por conjuntos de ponta como Les Dissonances só é possível com muito muito treino e certamente tem também seu embasamento teórico. Então, não esperem ver, daqui prá frente, muitas orquestras seguindo os passos destes bravos franceses. Até por que há bastante poder em jogo, fundado sobre tradições tão antigas quanto a realização de concertos sinfônicos.

Deixo instaurada a polêmica. Comentem à vontade !