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Certamente com o legítimo intuito de tornar o volume mais interessante aos olhos de seu público-alvo (melômanos, audiófilos e colecionadores), o subtítulo, ausente no original, aposto à edição brasileira de Maestros, obras-primas e loucura, de Norman Lebrecht (a saber, a vida secreta e a morte vergonhosa da indústria da música clássica), é, no mínimo, desconcertante. Nenhum problema com a parte da “vida secreta” da indústria fonográfica. As fofocas (especialidade de Lebrecht) sobre executivos fonográficos e sua relação com as estrelas de seus catálogos são de primeira mão e muito elucidativas. As coisas se complicam com a expressão “morte vergonhosa” de uma indústria com seus dias contados desde o início. Vergonhosa para quem ? Por que ? Melhor seria tratar a questão como o “parêntesis da indústria da música clássica”. Espero que isto fique mais claro ao fim da leitura deste post.
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O crítico britânico Norman Lebrecht é provavelmente o maior cronista vivo da cena internacional da música erudita (aqui chamada de clássica), nela incluída a intensa atividade de gravação que se constituiu numa indústria durante grande parte do século 20, desde o advento da reprodução em série de gravações em discos de cera, acetato ou vinil, passando pelas fitas magnéticas e pelos CDs, até a implosão destas mídias pelo compartilhamento de arquivos e, mais recentemente, pelo streaming, ambos viabilizados pela internet. Sendo assim, é natural que maestros e executivos constituam a matéria-prima por excelência de seus textos. E do ponto de vista de quem dedica a vida a cobrir os bastidores deste cenário, poderia também ser natural que o livro se constituísse num lamento, como sugere o infeliz subtítulo. Só que não. Lebrecht escreve bem e, portanto, está acima desta tentação tão fácil.
Maestros, obras-primas e loucura (me nego a replicar o infame subtítulo) é dividido em três partes. Na primeira, conhecemos uma história detalhada, rica em datas e nomes, da indústria da gravação de música clássica. Maestros, solistas, orquestras, mídias, selos, técnicos, executivos, nada é deixado de lado. Uma história, inclusive, econômica, explicando como os “seis grandes” selos (RCA, CBS, Decca, EMI, Philips e Deutsche Grammophon), além de incontáveis independentes, se tornaram, através de fusões e aquisições, quatro grandes grupos (Universal, Sony-BMG, EMI e Warner). É a parte do livro, com ca. 150 páginas, para ser lida de ponta a ponta, de preferência sem interrupções e com um lápis à mão para sublinhar furiosamente.
As outras duas são listas, provavelmente compiladas de resenhas publicadas por Lebrecht ao longo de décadas e, como tais, se constituem muito mais como referências para consultas aleatórias. Na primeira (Obras-primas: 100 marcos do século da gravação), aficionados devem encontrar muitos de seus discos favoritos. A segunda é, entretanto, a mais divertida: Loucura: 20 gravações que jamais deveriam ter sido feitas.
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O melhor capítulo da primeira parte é, sem sombra de dúvida, o último, Post-mortem, no qual o autor abandona o papel de historiador para retornar a sua zona de conforto, a crítica, especulando sobre as razões que levaram ao declínio e virtual extinção uma indústria dominante por quase cem anos. Como possíveis causas para o colapso, Lebrecht arrola o excesso de produção; a indestrutibilidade do CD; a extravagância de Norio Ohga, executivo (segundo homem) da Sony, que passou a controlar a DG; a internet e o advento de outras mídias. É aqui que, respeitosamente, ousamos discordar. Não que Lebrecht não tenha, intuitivamente, percebido o problema. Ele até roçou a questão ao se referir, ainda que brevemente, ao excesso de produção. Esclareceremos isto, no entanto, mais adiante, depois de examinar um item no qual ele se enganou de modo gritante.
Falo, é claro, da suposta “indestrutibilidade” do CD. Não vou me deter, aqui, na infrutífera e interminável discussão sobre qual som é o melhor, se o do LP ou o do CD. Deixo esta querela para os audiófilos. Me refiro à durabilidade em si. Desempenhando bem melhor que o LP em quesitos como gama dinâmica (diferença de volume entre os sons mais fracos e os mais fortes), espectro de frequências, relação sinal ruído, “imunidade” quanto ao acúmulo de chiado e ruído residual da transmissão mecânica responsável pelo giro da mídia, o CD, ao longo de sua vida útil, também é inegavelmente mais estável – tão somente, no entanto, até que sua película metálica incrustada em plástico seja atacada por fungos, deixando a sequência de informações binárias nela gravada ilegível para o feixe de laser. Na reprodução, isso se traduz num click muito mais evidente (i.e., audível) do que os cracks de qualquer LP mais gasto. Por vezes, a própria sequência de leitura se perde, o que equivale a quando, num disco severamente arranhado, a agulha salta de um sulco para outro. Constato esta anomalia em CDs comprados há mais de 30 anos. Tenho, no entanto, muitos LPs adquiridos antes disto que ouço sem problemas até hoje.
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É bem fácil e até razoável se culpar o compartilhamento de arquivos pela internet pela extinção da indústria de gravações de música clássica. Não vamos, no entanto, problematizar isto aqui, até por que a questão pertence a um campo bem mais amplo e complexo: o da propriedade intelectual. Deixemos isto, então, para mais tarde.
Curiosamente, a indústria de gravação de música popular continua firme e forte. Apesar do fim das mídias físicas e do concomitante avanço dos meios de streaming. Como tudo isto é muito novo, o direito autoral se tornou objeto de intenso debate, com pouca jurisprudência ou princípios consolidados para a era da conectividade. Não que a indústria da música clássica tenha sido alguma vez uma competidora à altura para a da música popular. Mesmo nos tempos áureos, discos clássicos nunca representaram mais do que uns 20% (numa perspectiva bem otimista) do faturamento do setor. Então por que, desde o início dos anos 90 e culminando em 2000, as gravadoras populares permanecem enquanto os selos clássicos praticamente desapareceram ou, no mínimo, se desfiguraram ?
A resposta, ao nosso ver, reside principalmente na proporção em que cada música é percebida como um atributo maior de seu autor ou, ao invés, do intérprete. Se deixamos fora desta equação a figura do produtor, que abocanha parte substancial dos direitos do que é gravado, é por que ela existe tanto no setor popular como no clássico, sendo, portanto, de pouca utilidade em se tratando de contrastar um e outro.
Numa audição cega de versões de uma sinfonia de Beethoven por, digamos, Karajan ou Haitink, mesmo melômanos experientes identificarão o autor e a obra muito antes de chegarem a um veredito sobre a versão de qual maestro estão ouvindo. Já se ouvirmos versões de Elis Regina e Maria Rita (para citarmos duas vozes parecidas e do mesmo sexo) para uma mesma canção, provavelmente identificaremos a cantora muito antes da música.
Isto quer dizer que, desde que produtores assegurem um fluxo constante de repertório, novo ou velho, para cada intérprete popular, a visibilidade pública de cada novo álbum estará garantida. Mesmo que as canções já tenham tido dúzias de versões por outros intérpretes.
Na música clássica, não. Se algum maestro, incentivado por público, críticos, produtores ou o próprio ego, se lançar à empreitada de gravar pela enésima vez uma obra conhecida, a gravação estará fadada a uma competição inglória contra um volumoso acervo já existente. Sei. Melômanos podem muito bem preferir uma versão a todas as outras que conhecem. Mas dificilmente comprarão uma nova gravação de uma mesma obra se já estiverem satisfeitos com outra. Alem disso, para ouvintes comuns, uma sinfonia de Beethoven será sempre aquela velha e boa sinfonia que ele já tem em sua discoteca, independentemente de quem estiver brandindo a batuta.
Hão de dizer: “Então por que não gravam novos compositores ?” Justo. Há. porém, um problema. Toda indústria vive da desova de excessos de produção, apoiada pela publicidade – a qual, por sua vez, se especializa em nos fazer desejar consumir “mais do mesmo”, como se a felicidade dependesse disto. Ora, toda música composta até o fim do romantismo, incluindo compositores conservadores neoclássicos e neoromânticos, se baseia numa prática comum, na qual todos se debruçam sobre as mesmas harmonias e formas reconhecíveis. Querer que ouvintes comuns apreciem a abolição desse sistema de referência é como deixá-los no mato sem bússola numa noite nublada. Em sua agonia, a indústria da música clássica, ao perceber isto, se voltou, então, para a gravação da dita música antiga (medieval e renascentista), estranha ma non troppo.
Como melômanos existem em número bastante reduzido em relação à população (que gosta, sim, de música clássica, mas é indiferente ao tipo de sutileza que diferencia uma gravação de outra), não se pode dizer que constituam um mercado – o que derruba, por si só, a miragem de ter havido, alguma vez, uma indústria de gravação de música clássica. A música clássica surgiu numa época em que era a única possibilidade para espetáculos públicos, e a tentativa de enquadrá-la numa indústria próspera de reproduções em série só foi possível graças ao sistema de estrelas dos grandes selos, altamente concentrador, à valorização exacerbada de seus produtos (até o ponto em que viraram moda as “caixinhas” com integrais de sinfonias, quartetos, sonatas ou coisa que o valha de um mesmo compositor) e a seu financiamento pelo superávit gerado pela indústria de gravação de música popular.
Até que, por volta do ano 2000, os números revelaram inquestionavelmente o déficit do setor, com discos de milhões de dólares em custos de produção e poucas centenas ou até dezenas de cópias vendidas num ano. Desde então, podemos dizer que o mundo conheceu o que, num futuro não muito distante, talvez venha a ser chamado de parêntesis da gravação de música clássica.
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Dois livros importantes para se entender a indústria da música popular são Os donos da voz e Como a música ficou grátis, respectivamente, de Márcia Tosta Dias e Stephen Witt, resenhados aqui.