A neutralidade da(s) rede(s)

A neutralidade da rede é um princípio que norteia o protocolo da internet, garantindo que qualquer conteúdo nela trafegue com a mesma velocidade, de acordo com a ordem de chegada, independentemente de quanto está sendo pago e por quem para que a informação nela viaje. Como numa fila única de transplantes.

Como todo princípio isonômico, há quem a ele se oponha. Os argumentos contra a neutralidade variam. Desde os mais comerciais, como garantir a quem pague mais o direito de suas informações circularem mais rápido e/ou eficientemente, como no caso de aplicações que demandam maior largura de banda, tais como plataformas de streaming; até aqueles supostamente mais “altruístas”, como o de que a neutralidade seria um obstáculo à inovação tecnológica.

Uma das propostas mais criativas é a existência não de uma rede única, neutra, mas de várias redes concomitantemente: uma neutra, universalmente acessível, para emails, blogs e sites menos acessados, e tantas outras quanto forem necessárias com facilidades para grandes usuários com necessidades mais específicas.

Assim, tendo surgido como uma condição praticamente utópica, que igualava grandes e pequenos no que tange ao tratamento recebido pela rede, a neutralidade logo se tornou objeto de debate. Tanto que possui nuances diferenciadas em cada país. No Brasil, a internet é neutra, regulamentada pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014).

Para um entendimento mais abrangente e detalhado da neutralidade da rede, vale a pena consultar a Wikipedia – a qual, ainda que por vezes seja bem sumária, ao menos sobre este assunto é altamente informativa. E neutra.

* * *

Mas não é sobre isto que vim falar. Perto de tudo o que encontrei facilmente sobre o tema, discorrer mais seria como chover no molhado.

Com certeza notaram a licença poética, por assim dizer, do título do post, com os “(s)” depois das duas últimas palavras. A ambiguidade se deve à referência tanto à internet como um todo, com seu controverso ideal isonômico, como, ao mesmo tempo, às redes sociais que nelas residem – as quais, por sua vez, de neutras não tem nada. Ou, ao menos, é nisto que, do alto de minha teoria conspiratória, acredito. Como tento deixar claro adiante.

Redes sociais residem em plataformas (sites) que residem na internet. Como todo site, tem seus proprietários. E, salvo notáveis exceções de sites colaborativos (wikis) não lucrativos que atendem a interesses públicos – como, por exemplo, a wikipedia ou a IMSLP (maior repositório online de partituras musicais), plataformas de redes sociais são, via de regra, startups que deram certo, com alto valor de mercado e que remuneram seus proprietários, sejam eles indivíduos ou acionistas, com polpudos lucros advindos da exibição de publicidade (mais comumente) ou venda de assinaturas para versões ad free.

Até aí tudo bem. Já banalizamos a ideia de que o mercado está aí para quem dele saiba tirar proveito. Todo o problema começa com o algoritmo de distribuição – o qual, numa rede, seleciona quais postagens são (e, o que mais nos interessa, não são) mostradas a cada usuário. Num mundo perfeito, algoritmos seriam transparentes (como, sei lá, a programação em código aberto), configuráveis às necessidades e preferências de cada um. Mas não. Funcionam como caixas pretas, sobre cuja ação podemos não mais do que tecer suposições. Teorias conspiratórias inclusive, como aquela adiante.

* * *

Antes, porém, de prosseguir, cabe um esclarecimento: minha experiência primária se restringe a uma única rede social, a saber, o facebook (não consigo acessar com a devida frequência (que dirá nela interagir) mais do que uma). Não descarto, portanto, a existência de outras redes mais transparentes no tratamento da informação que nelas circula.

* * *

Algoritmos de distribuição existem por que o grande volume de informação (acho que o nome disso é metadados) torna proibitiva a análise por humanos de todos os conteúdos que circulam em redes sociais. Tecnologias de inteligência artificial para reconhecimento de imagem já permitem, no entanto, atribuir automaticamente um viés moral ou ideológico a cada postagem ilustrada. Amigos já tomaram ganchos por postarem imagens com seios, bundas ou genitálias. Pouco importa se forem “nús artisticos”. Experimentem, por exemplo, postar uma reprodução de A Origem do Mundo (BRINCADEIRA, NÃO FAÇAM ISTO !).

Também é fácil para um algoritmo identificar e, conforme o caso, impulsionar ou ocultar imagens contendo símbolos tais como, por exemplo, uma estrela de Davi ou uma bandeira palestina. Com texto, no entanto, a coisa é um pouco mais complicada. É difícil apontar o matiz ideológico de algo escrito exclusivamente pelas simples presença ou contagem de palavras. Da seguinte maneira. Mesmo que vocábulos como capitalismo ou Marx apareçam uma ou mais vezes num texto, nada podemos afirmar sobre o viés ideológico do que foi escrito, i.e., se o texto é apologético ou condenatório em relação aos mesmos.

Ou, ao menos, assim eu supunha até poucos dias atrás. Quando manifestei meu ceticismo sobre o estado da arte da interpretação automática de textos, um de meus filhos simplesmente perguntou “– Conheces o ChatGPT ?” Talvez ele tenha razão. Se uma IA já consegue criar um texto convincente a ponto de passar por uma formulação humana, o caminho reverso (i.e., entender algo escrito por um humano) não deve ser, afinal, tão difícil. E, neste caso, vale atualizar a proposta por Harari, em The Economist, de uma legislação que obrigue aplicações que utilizem IA a informarem seus usuários sobre isto; para outra que também obrigue plataformas de redes sociais que utilizem algoritmos de distribuição seletivos que informem seus usuários sobre o funcionamento dos mesmos. Talvez como seu código fonte, ainda não compilado, comentado para inteligibilidade universal. Sonhar não custa nada.

* * *

Desde lá de cima, venho prometendo relatar a experiência, involuntária, que funcionou como um sinal de alerta para o fato de redes sociais não serem tão neutras como era de se esperar. Não sou ingênuo, é claro. Sempre suspeitei. Até sabia. Mas os fatos abaixo narrados só aguçaram minha percepção da coisa.

Até poucos anos atrás, sempre era informado pelo facebook de novas postagens pelos perfis de Evonomics (Holanda) e The Guardian (Inglaterra), duas publicações que prezo sobremaneira. Por vezes até traduzi matérias suas neste blog. Só que, ultimamente, notei que há muito não vinho sendo informado pelo face de atualizações destes perfis. Cheguei até a pensar que Evonomics tivesse saído do ar (The Guardian não, por ser um jornal londrino bem tradicional). Preocupado, verifiquei que os bravos holandeses continuam firmes e fortes, tanto no site como no facebook.

Comentando com meu amigo Fábio o ocorrido, ele teceu a hipótese de que, se eu curtisse as postagens dos dois, o face voltaria a me mostrá-las. Entrei, então, em ambos os perfis e curti por atacado. Esperei. Nada. Aprendi, com isto, que, doravante, teria que visitar os perfis (ou os próprios sites) se quisesse saber de novas atualizações, não mais podendo contar com o facebook para tanto. Problema resolvido. A curiosidade, todavia, persistiu.

De início, pensei que o face estivesse ocultando postagens de grandes publicações. Afinal, já tinha ouvido falar que o site “não gosta” de postagens com links que direcionem a navegação para fora da plataforma. Faria sentido. Só que não: continuo a receber normalmente atualizações de The Economist e The New Yorker, entre outros.

Foi então que me dei conta: os dois perfis que sumiam de meu feed são notórios por um viés que, se não escancaradamente de esquerda, não pode de modo algum ser definido como de direita. Ok, The Guardian pode ser classificado como de esquerda. Mas Evonomics publica textos que, de alguma forma, vislumbram possibilidades para “consertar” a iniquidade inerente ao capitalismo.

Já disse, acima, que acho difícil (mas não improvável) que um algoritmo identifique o teor ideológico de um texto para, com base nisto, decidir por sua evidência ou ocultação. Bem mais provável é que publicações maciçamente visualizadas sejam marcadas (talvez até por humanos) como desejáveis ou não no feed de usuários de redes sociais, segundo a matriz ideológica de seus proprietários.

Pouco importa, então, se postagens (ou, mais provavelmente, perfis) são impulsionados ou ocultos com base em julgamento humano ou exclusivamente algorítmico. O que fica patente é que, como já foi dito, de neutro o facebook (e provavelmente outras redes) não tem nada. CQD.

Yuval Noah Harari diz que a Inteligência Artificial hackeou o sistema operacional da civilização humana

Até hoje, a espécie humana deteve o monopólio sobre a inteligência. A recente e galopante evolução das inteligências artificiais coloca, pela primeira vez, esta situação em risco. A ameaça, cada vez mais presente, de que, em breve, não sejamos mais as únicas entidades inteligentes conhecidas é objeto deste ensaio perturbador de Yuval Noah Harari, publicado por The Economist e traduzido a seguir.

* * *

Temores de uma Inteligência Artificial (IA) assombraram a humanidade desde o começo da era do computador. Até agora tais temores estavam voltados para máquinas que usassem meios físicos de matar, escravizar ou substituir pessoas. Mas nos últimos anos surgiram novas ferramentas de IA que ameaçam a sobrevivência da civilização humana de um modo inusitado. A IA ganhou algumas habilidades notáveis para manipular e gerar linguagem, tanto com palavras, sons ou imagens. Assim, a IA hackeou o sistema operacional de nossa civilização.

Linguagem é a matéria da qual quase toda criatura humana é feita. Os direitos humanos, por exemplo, não estão inscritos em nosso DNa. Ao contrário, são artefatos culturais que criamos contanto histórias e escrevendo leis. Deuses não são realidades físicas. Antes, são artefatos culturais que criamos inventando mitos e redigindo escrituras.

O dinheiro também é um artefato cultural. Cédulas são não mais do que pedaços de papel coloridos e, atualmente, mais de 90% do dinheiro não é sequer constituído por cédulas, mas apenas informação digital em computadores. O que confere valor ao dinheiro são histórias que banqueiros, ministros de finanças e gurus de criptomoedas nos falam dele. Sam Bankman-Fried, Elizabeth Holmes e Bernie Madoff não eram particularmente bons em se tratando de criar valor verdadeiro, mas eram contadores de histórias muito capazes.

O que aconteceria quando uma inteligência não humana se tornasse melhor do que o ser humano médio em contar histórias, compor melodias, desenhar imagens e escrever leis e escrituras ? Quando as pessoas pensam sobre ChatGPT e outras novas ferramentas de IA, se remetem frequentemente a exemplos como estudantes usando IA para escrever seus textos. O que acontecerá com o sistema escolar quando crianças fizerem isto ? Mas este tipo de questão ignora o grande problema. Esqueça as redações escolares. Pense na próxima corrida presidencial norte-americana em 2024 e tente imaginar o impacto de ferramentas de IA que possam produzir em massa conteúdo político, fake news e escrituras para novos cultos.

Recentemente, o culto ao qAnon se aglutinou em torno de mensagens online anônimas conhecidas como Q drops. Seguidores colecionaram, reverenciaram e interpretaram Q drops como um texto sagrado. Embora tenhamos razões de sobra para crer que todas as Q drops até agora foram criadas por humanos e robôs meramente ajudaram a disseminá-las, no futuro poderemos ter os primeiros cultos na história cujos textos tenham sido escritos por uma inteligência não humana. Ao longo de toda a história, religiões alegam que seus livros sagrados tiveram uma origem não humana. Em breve isto pode se tornar uma realidade.

Num nível mais prosaico, poderemos em breve entabular longas discussões online sobre aborto, mudanças climáticas ou a invasão russa da Ucrânia com entidades que julgamos ser humanas, mas que na verdade não são. O perigo é que, enquanto não faz qualquer sentido gastarmos tempo tentando mudar opiniões declaradas por um robô de IA, esta poderá, por outro lado, aprimorar suas mensagens tão precisamente que haverá uma boa chance de sermos por ela influenciados.

Através de seu domínio da linguagem, a IA poderá até criar relações íntimas com pessoas e usar o poder da intimidade para mudar opiniões e visões de mundo. Embora não haja indício de que uma IA tenha qualquer consciência ou sentimentos próprios, para que ela fomente uma falsa intimidade com humanos é suficiente que ela possa fazer com que pessoas se sintam emocionalmente ligadas a ela. Em junho de 2022, Blake Lemoine, um engenheiro do Google, declarou publicamente que o chatbot de IA LaMDA, no qual estava trabalhando, se tornara autoconsciente. A alegação controversa lhe custou o emprego. O mais interessante neste episódio não é que a alegação de Lemoine fosse provavelmente falsa. Antes, foi sua disposição em arriscar seu lucrativo emprego por causa do chatbot. Se uma IA pode influenciar pessoas a arriscarem seus empregos por elas, ao que mais poderá induzi-las ?

Numa luta política por corações e mentes, a intimidade é a arma mais importante, e a IA acaba de adquirir a habilidade para produzir em massa intimidade com milhões de pessoas. Todos sabemos que na última década as mídias sociais se tornaram um campo de batalha para controlar a atenção das pessoas. Com a nova geração de IA, o front de batalha está mudando da atenção para a intimidade. O que acontecerá à sociedade e à psicologia humanas quando uma IA travar com outra IA uma luta para falsificar relações íntimas conosco, ambas podendo ser utilizada para nos convencer a votar em determinados políticos ou a comprar determinados produtos ?

Mesmo sem criar “falsa intimidade”, as novas ferramentas de IA teriam uma imensa influência em nossas opiniões e visões de mundo. Pessoas podem vir a usar, como um oráculo absoluto e onisciente, uma única IA como fonte de recomendações. Não é à toa que o Google está aterrorizado. Por que me dar ao trabalho de pesquisar se posso simplesmente perguntar ao oráculo ? As indústrias de notícias e de propaganda também deveriam estar aterrorizadas. Por que ler um jornal quando posso simplesmente pedir ao oráculo as últimas notícias ? E qual o propósito da propaganda quando posso simplesmente perguntar ao oráculo o que comprar ?

Tais cenários não dão conta, todavia, do maior problema. Estamos falando do potencial fim da história humana. Não o final da história, mas só de sua parte dominada por humanos. História é a interação entre biologia e cultura; entre nossas necessidades biológicas e desejos por coisas como comida e sexo e nossas criações culturais como religiões e leis. História é o processo através do qual leis e religião definem comida e sexo.

O que acontecerá ao curso da história quando a IA assumir a cultura e começar a produzir histórias, melodias, leis e religiões ? Instrumentos anteriores como a imprensa e o rádio ajudaram a disseminar as ideias culturais dos homens, mas nunca criaram novas ideias culturais próprias, A IA é essencialmente diferente. A IA pode criar ideias e cultura completamente novas.

Inicialmente, a IA vai provavelmente imitar os protótipos humanos em que foi treinada em sua infância. Mas a cada ano que passar, a cultura de IA irá corajosamente onde nenhum humano jamais foi. Por milênios seres humanos viveram dentro dos sonhos de outros humanos. Nas próximas décadas, talvez possamos nos encontrar vivendo dentro dos sonhos de uma inteligência alienígena.

O medo da IA assombra a humanidade somente desde as últimas décadas. Mas por milhares de anos ela foi assombrada por um medo muito mais profundo. Sempre apreciamos o poder das histórias e imagens para manipular nossas mentes e criar ilusões. Consequentemente, desde tempos muito antigos humanos temem ser aprisionados num mundo de ilusões.

No século 17, René Descartes temia que um demônio maligno o estivesse aprisionando num mundo de ilusões criando tudo o que ele via e ouvia. Na Grécia antiga, Platão contou a famosa Alegoria da Caverna, na qual pessoas são acorrentada numa caverna por toda sua vida contemplando uma parede em branco. Uma tela. Nesta tela, vêm projetadas várias sombras. Os prisioneiros tomam, então, as ilusões que lá vêm por realidade.

Na antiga Índia, sábios budistas e hindus afirmavam que todos os seres humanos viviam aprisionados dentro de Maya – o mundo das ilusões. O que normalmente tomamos por realidade é frequentemente não mais do que ficção em nossas mentes. Pessoas podem travar guerras inteiras, matando outros e desejando ser mortas, tão somente por causa de sua crença nesta ou naquela ilusão.

A revolução da IA está nos levando a encarar o demônio de Descartes, a caverna de Platão e o Maya. Se não formos cuidadosos, podemos ser aprisionados atrás de uma cortina de ilusões que não possamos romper ou sequer perceber que ela existe.

É claro que o novo poder da IA também pode ser usado para bons propósitos. Não me deterei aqui, pois quem desenvolve IA já fala nisto suficientemente O trabalho de historiadores e filósofos como eu é apontar os perigos. Mas certamente a IA pode nos ajudar de incontáveis maneiras, desde achando curas para o câncer até descobrindo soluções para a crise ecológica. A questão que se nos apresenta é como assegurar que as novas ferramentas de IA sejam usadas para o bem e não para o mal. Para fazer isto, primeiro temos que apreciar as verdadeiras capacidades destas ferramentas.

Sabemos desde 1945 que a tecnologia nuclear pode gerar energia barata para beneficiar seres humanos – mas pode igualmente destruir a civilização humana. Reformamos, então, toda a ordem mundial para proteger a humanidade e para garantir que a tecnologia nuclear fosse usada preferencialmente para o bem. Agora, temos que conter uma nova arma de destruição em massa que pode aniquilar nosso mundo mental e social.

Ainda podemos regular as novas aplicações de IA, mas temos que agir rápido. Enquanto ogivas nucleares não podam inventar ogivas nucleares mais destrutivas, a IA pode fazer IAs exponencialmente mais poderosas. O primeiro passo crucial é exigir testes de segurança rigorosos antes que ferramentas poderosas de IA sejam publicamente disponibilizadas. Do mesmo modo que empresas farmacêuticas não podem lançar novas drogas sem antes testar seus efeitos de curto e longo prazo, empresas de tecnologia não devem lançar novas ferramentas de IA antes que elas sejam seguras. Precisamos de um equivalente à ANVISA (Food & Drug Administration, ou FDA, no original) para novas tecnologias, e precisamos para ontem.

Um atraso na implementação pública de IA não faria com que as democracias ficassem para trás em relação a regimes autoritários mais cruéis ? Antes, o contrário. A implementação não regulamentada de IA criaria um caos social que, por sua vez, beneficiaria autocratas e arruinaria democracias. Democracia é conversação, e conversação depende de linguagem. Quando a IA hackeia a linguagem, ela pode destruir nossa habilidade de manter conversações que tenham sentido – destruindo, portanto, a democracia.

Recém encontramos uma inteligência alienígena aqui na Terra. Sabemos pouco sobre ela, exceto que ela pode destruir nossa civilização. Devemos dar um basta à implementação irresponsável de ferramentas de IA na esfera pública e regular a IA antes que ela nos regule. E a primeira regulamentação que eu sugiro é tornar obrigatório que uma IA se declare publicamente como uma IA. Se estou tendo uma conversação com alguém e não sei se esse alguém é humano ou uma IA, é o fim da democracia.

Este texto foi gerado por um ser humano.

Ou não ?

28 de abril de 2023

* * *

Yuval Noah Harari é historiador, filósofo e autor de Sapiens, Homo Deus e da série infantil Unstopable Us. É conferencista no departamento de história da Universidade Hebraica de Jerusalém e co-fundador da Sapienship, uma empresa de impacto social.

Bullshit Jobs e o jugo do feudalismo gerencial; entrevista concedida por David Graeber a The Economist

Populismo, trabalho sem sentido e juventude em pânico: uma entrevista com David Graeber, da London School of Economics, publicada pela revista The Economist

* * *

Jamais depois de Dilbert a verdade foi dita sobre o poder em postos de trabalho desumanos. Mas o sucessor do personagem do cartoon pode ser David Graeber. Em 2013, adquiriu fama viral entre zumbis de cubículos de toda parte depois de publicar um ensaio curto sobre a persistência de trabalhos que não tem qualquer razão social ou econômica de existir, aos quais chamou bullshit jobs. A ampla atenção parece confirmar sua tese.

David Graeber, um antropólogo da London School of Economics, desenvolveu recentemente a ideia num livro. Ele respondeu a cinco perguntas da iniciativa Open Future da revista The Economist, atacando “comitivas feudais de lacaios basicamente inúteis”. Graeber diz que “as pessoas querem sentir que transformam o mundo ao seu redor de modo a fazer alguma diferença positiva”.

* * *

The Economist: O que é um bullshit job ? Poderia dar alguns exemplos ?

David Graeber: Um bullshit job é um trabalho que mesmo a pessoa que o executa secretamente acredita o mesmo é desnecessário e não deveria existir. Que se aquele trabalho, ou mesmo toda a indústria do qual faz parte, desaparecesse, não faria a menor diferença para ninguém ou até mesmo o mundo talvez fosse um lugar ligeiramente melhor.

Algo em torno de 37 a 40% dos trabalhadores, de acordo com pesquisas, dizem que seus trabalhos não fazem diferença alguma. O que há de radical no livro não é a constatação de que muitas pessoas pensem assim, mas o fato de que, na maior parte das vezes, elas estejam largamente certas. Seus trabalhos são realmente tão sem sentido quanto elas realmente pensam.

Apenas acreditando nas palavras das pessoas podemos subestimar o problema, já que, ainda que você ache que o que está fazendo não faz qualquer sentido, deve obviamente haver um quadro mais amplo no qual você realmente está contribuindo para o bem maior ou, ao menos, para o bem maior da organização. Só que ninguém lhe explicou como.

Por outro lado, se você acha que está fazendo alguma coisa para a qual parece haver uma boa razão para ser feita mas, no grande quadro, não há (como, por exemplo, se toda a operação da qual você participa é algum tipo de fraude ou, ainda, se ninguém lê os relatórios que você produz, etc), bem, esta é precisamente a situação na qual menos provavelmente lhe dirão o que está acontecendo.

Se minha pesquisa de algum modo procede, bullshit jobs não se concentram tanto nos serviços mas nas tarefas de escritório, administrativas, gerenciais e de supervisão. Muitos trabalhadores em administração intermediária, relações públicas e recursos humanos, tais como muitos gerentes de marcas, vice presidentes de criação, consultores financeiros e empregados em direito corporativo e marketing, sentem que seu trabalho não faz qualquer sentido.

 

The Economist: O que o fato desses trabalhos sem propósito existirem diz do lugar de trabalho moderno ?

David Graeber: Uma coisa que isto mostra é que todo o ideal “enxuto e eficiente” é aplicado muito mais a trabalhadores produtivos do que a cubículos de escritório. Não é nada raro executivos que se orgulham de enxugar e acelerar no chão da fábrica, na distribuição e por aí afora usarem o dinheiro economizado ao menos em parte para ocupar seus escritórios com comitivas feudais de lacaios basicamente inúteis.

Eles tem equipes completas de pessoas que estão lá apenas para, por exemplo, desenhar gráficos para seus relatórios, escrever elogios para revistas internas que ninguém lê ou, em muitos casos, não fazer absolutamente nada além de memes de gatos e jogar no computador o dia inteiro. Mas eles são mantidos lá por que o prestígio e às vezes até o salário de todo gerente é proporcional ao número de pessoas a ele subordinadas.

Quanto mais o lucro de uma empresa é derivado de finanças ao invés de da fabricação ou venda de alguma coisa, mais isto tende a ser verdade. Chamo a isto “feudalismo gerencial”. Mas não é só o setor de finanças, de seguros e imobiliário: há uma infestação similar nos níveis intermediários das indústrias criativas em geral. Eles continuam adicionando posições gerenciais entre as pessoas produzindo coisas e os caras que pagam por isto cuja única função é frequentemente sentar o dia todo tentando vender coisas uns aos outros.

Saúde e educação são igualmente complicadas: gestores agora acham que cada um deve ter seu esquadrão de assistentes que, frequentemente sem ter nada o que fazer, acabam inventando novas formas exóticas de trabalho burocrático para professores, médicos, enfermeiros e afins – os quais tem, então, ainda menos tempo para realmente ensinar ou cuidar de alguém.

 

The Economist: Você nota que muitos trabalhos interessantes que implicam em criatividade e status estão concentrados em cidades afluentes. Você acredita que bullshit jobs contribuíram para o populismo e a polarização ?

David Graeber: Sim. Penso que muito do frequentemente legítimo rancor dirigido à “elite liberal” se baseia no ressentimento que as classes trabalhadoras sentem em relação ao fato de que a primeira efetivamente se apropriou de todos os trabalhos nos quais se pode realmente ser bem pago para fazer o que é tanto divertido como criativo mas que, obviamente, beneficia a sociedade. Se você não pode mandar seu filho para uma boa escola e depois sustentá-lo 2 ou 3 anos durante residências em lugares como Nova Iorque ou São Francisco, esqueça: você está fora.

Para todos os demais, ao menos que você tenha muita sorte, suas chances são largamente limitadas a duas opções. Você pode obter um trabalho basicamente bullshit, que pagará o aluguel mas lhe deixará estragado, com o sentimento de culpa por estar sendo forçado, contra sua vontade, a ser uma fraude e um parasita. Ou você pode obter um trabalho útil, cuidando de pessoas, fazendo, movendo ou conservando coisas que as pessoas querem ou das quais precisam – só que, provavelmente, lhe pagarão tão pouco que você não será capaz de sustentar sua própria família.

Existe uma relação inversa quase perfeita entre o quanto seu trabalho beneficia os outros e sua remuneração. O resultado é uma cultura política tóxica de ressentimento.

Aqueles em um trabalho largamente sem sentido se ressentem de professores ou mesmo mecânicos de automóveis, os quais realmente fazem algo útil, e acham ultrajante que [mecânicos e professores] demandem bons salários, seguro saúde e férias remuneradas. Pessoas da classe trabalhadora, que fazem predominantemente coisas úteis, se ressentem da elite liberal que abocanhou todo o trabalho útil ou benéfico que realmente paga bem e no qual lhe tratam com respeito e dignidade.

Todos detestam a classe política, a qual vem (em minha opinião, com bastante razão) como um bando de trapaceiros. Mas todos os outros ressentimentos tornam difícil para qualquer um se associar com outros e fazer alguma coisa a respeito. Em grande parte, nossas sociedades se uniram a partir da inveja e do ressentimento: não inveja dos ricos mas, em muitos casos, inveja daqueles que são vistos como de algum modo moralmente superiores ou, ainda, ressentimento daqueles que se proclamam moralmente superiores mas que são vistos como hipócritas.

 

The Economist: As pessoas tendem a se ajustar emocionalmente às circunstâncias. Então, há alguma razão para se acreditar que seríamos dramaticamente mais satisfeitos num mundo sem labuta ?

David Graeber: O que me surpreendeu foi o quão difícil era para tanta gente se ajustar ao que pareciam problemas menores: basicamente, tédio e sensação de falta de propósito na vida. Por que não podiam simplesmente dizer “Ok, então estou ganhando algo por nada. Torçamos para que o chefe não note !”

Mas a grande maioria descreveu a si própria como totalmente miserável. Relataram depressão, ansiedade, doenças psicossomáticas que desapareceriam magicamente no momento em que ganhassem o que consideravam trabalho de verdade e horríveis dinâmicas sadomasoquistas de lugares de trabalho.

Minha conclusão é que psicologicamente, não é exatamente que as pessoas queiram trabalhar mas, antes, que elas querem sentir que estão transformando o mundo ao redor delas de modo a produzir algum tipo de diferença positiva para outras pessoas. De certo modo, é isto que as torna humanas. Tire isto delas e elas começam a se despedaçar. Então, não se trata só de labuta.

Conforme disse Dostoievsky em algum lugar:  se você quiser destruir psicologicamente um prisioneiro por completo, basta fazê-lo cavar um buraco e tornar a tapa-lo, repetidamente, durante todo o dia (em alguns gulags de fato tentaram isto como forma de tortura – o que funcionou, tornado as pessoas completamente loucas). Creio que pessoas suportem até trabalho enfadonho desde que saibam que há uma boa razão para executá-lo.

Como antropólogo, sei que o lazer não é um problema por si só. Há muitas sociedades onde pessoas trabalham no máximo de duas a três horas por dia e encontram todo tipo de coisas interessantes para fazer com seu tempo. Pessoas podem ser infinitamente criativas se lhes derem tempo para pensar.

 

The Economist: Pessoas no Ocidente tem mais liberdade de escolher suas carreiras do que em qualquer época da história humana. O liberalismo merece algum crédito por isto e, neste caso, não seriam as próprias pessoas responsáveis por seus bullshit jobs ?

David Graeber: Bem, se você falar com jovens recém saídos da faculdade, não ouvirá muitos deles dizendo: “Ah, o mundo se descortina diante de mim… então o que seria melhor eu fazer ?”

Você certamente ouviu muito nos anos 70, 80 e 90: “O que eu realmente quero ?” Já hoje, nem tanto. A maioria dos formados está em pânico sobre como irá pagar seus empréstimos estudantis e o verdadeiro dilema que você ouve é: “Posso obter um emprego que vá realmente me pagar o suficiente para viver (que dirá ter uma família algum dia) e pelo qual não me sinta totalmente envergonhado ?”

É a mesma armadilha que descrevi acima: como se pode viver uma vida que beneficie os outros ou, ao menos, não prejudique ninguém de um modo óbvio e, ainda assim, conseguir cuidar de uma família ou de quem se ama. E durante todo o tempo há este mantra a que chamo “repreensão de direitos”, que vem igualmente da esquerda e da direita. É uma injúria moral dirigida aos jovens como sendo presunçosos e estragados por se acharem meritórios de todas as coisas que a geração de seus pais (que são os que geralmente censuram) tinha como asseguradas.

Então eu não culparia ninguém por fazer o melhor possível nesta situação. A questão para mim é: por que esta situação não é vista como um problema social maior ? Quero dizer que, se você contar todas as pessoas que estão num emprego real em suporte a bullshit jobs, tais como faxineiros, recepcionistas e motoristas que não sabem que a empresa para a qual trabalham serve basicamente pare se esquivar de impostos ou coisa parecida, bem como a bullshitização do trabalho verdadeiro; então talvez metade do trabalho que é realizado é totalmente desnecessário.

Pensem em que tipo de cultura, música, ciência e ideias resultariam se todas essas pessoas fossem liberadas para fazer coisas que realmente achem importantes. Então se o problema é um de responsabilidade pessoal, eu diria: que se dê a todos o suficiente para viver, como algum tipo de renda básica universal, e que se diga “Ok, agora vocês estão totalmente livres para decidir por si mesmos como podem contribuir para o mundo.”

Então poderíamos dizer com certeza que pessoas seriam responsáveis por aquilo que fazem. É claro que muito do que é feito não faria qualquer sentido. Mas é difícil se imaginar que 40 ou 50% da força de trabalho seja composta por inúteis, conquanto seja esta precisamente a situação que temos hoje. E se, com tudo isto, ainda assim tivermos como resultado apenas um ou dois novos Miles Davises, Einsteins, Freuds ou Shakespeares, eu diria que teríamos recuperado bem mais do que nosso investimento.

* * *