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Não lembro bem por que nem quando deixei de ouvir a Rádio da Universidade (outra hora conto como deixei de ouvir estações de rádio comerciais). Talvez por isto tenha tentado reproduzir, nos últimos dias, a deliciosa brincadeira que Milton Ribeiro tinha com seu pai que consistia em tentar adivinhar o mais rápido possível que música a rádio da universidade estivesse tocando num momento qualquer.
Foi preciso muita paciência e algum método para repetir o experimento hoje pois, só no primeiro dia, me prestei a ouvir uma avalanche sem precedentes de música irrelevante, constituída por coisas como finales de danças sinfônicas da Noiva Vendida de Smetana ou da abertura Ruy Blas de Mendelssohn e, claro, pedaços de Carmina Burana – depois dois quais, confesso, desliguei o rádio.
Não satisfeito, insisti. No dia seguinte, ouvi trechos de uma rapsódia espanhola de Lizst para piano e, se não me engano, do mais famoso dos 14 (!) ballets de Adolphe Adam (já ouviram falar dele ? Nem eu. Mas certamente já ouviram falar de seu ballet Giselle. Espero que nunca tenham que ouvi-lo). De sorte que, lá pelo terceiro dia, ouço, enfim, algo conhecido, a saber, um dos 4 concertos de trompa de Mozart. Enfim um grande compositor. Ainda que não em um de seus momentos mais memoráveis. Pois os concertos de trompa são, antes de tudo, uma piada musical.
De sorte que, exceto, talvez, pelo concerto de trompa de Mozart, posso afirmar com toda a segurança que todas as outras obras mencionadas até aqui pertencem à grande lixeira da história musical.
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A pausa foi para que os ofendidos se retirassem da leitura. Aos que ficaram, explico. A história da música é uma narrativa cujos personagens são gênios ou sub-gênios, em cuja órbita gravitam vários compositores colaterais, não mais do que habilidosos imitadores, tais como, por exemplo, muitos franceses do século 19 que teimavam em compor música alemã. Ocorre que, por vezes, em circunstâncias que pouco ou nada tem a ver com critérios estritamente musicais, alguns oportunistas (cujos nomes declino de mencionar para não perder mais leitores) triunfam. Melhor voltar, então, e logo, a ideia de gênios e sub-gênios.
Entendemos por gênio todo artista original do qual se diz “ter nascido pronto”. O que, em música, significa produzir obras-primas consistentemente deste a juventude ou, como também é frequentemente referido, períodos de primeira maturidade. Como no caso de um Bach, Beethoven, Brahms ou Bartók. E Mahler, Nielsen e Shostakovich, é claro. Há outros. Mas não muitos. Em torno destes, orbitam uns tantos que somente a partir de determinado momento em suas carreiras criativas logram tamanhos patamares de excelência artística. Falamos, aqui, de sub-gênios como Mozart, Schubert & Schumann, Mendelssohn ou, vá lá, Tchaikovsky. Quem discordar, que comece por enumerar as primeiras sinfonias arrebatadoras de qualquer um destes.
Entendido até aqui ? Ótimo. Acontece que, sob o amplo manto semântico do gênero da música mais comumente conhecida como clássica, as mesmas prateleiras dos institutos públicos dedicados à preservação da diversidade histórica abrigam tanto as grandes obras de gênios ou sub-gênios como as mais baratas imitações. Às quais o estatuto da diversidade dá, indevidamente, uma relevância exacerbada.
Os principais fatores que determinam a qualidade de toda composição musical são o contraponto e a harmonia. Um e outro denotam com exatidão o grau de ambição de qualquer música. Ocidental, ao menos. Enquanto o contraponto informa a ambição musical ao nível textural, é a harmonia que define sua própria pretensão formal. Conjugados, explicam facilmente a pobreza da música pop, homofônica e harmonicamente rasa por definição.
Com a música clássica não é diferente. Pois as mesmas prateleiras que abrigam os monumentos de um Bach, Beethoven, Brahms ou Bartók também tem lugar para discos ou partituras de uma horda de obras de compositores colaterais ou mesmo da juventude de outros que só depois de certo tempo vieram a dominar suas artes.
Dito isto, voltemos à nossa querida Rádio da Universidade (sim, por que todos os que já a ouviram, em seus áureos tempos, aos quais devo em seguida me referir, devem a ela algo de suas formações musicais). Sua formidável discoteca é como um grande labirinto que abriga praticamente tudo o que de clássico (além de muito jazz) já foi prensado em vinil. Desconheço a extensão de sua coleção de CDs.
Por razões que fogem ao foco deste texto, muita dessa música colateral logra a imortalidade em gravações de tantos selos nanicos, por assim, dizer, enciclopédicos. Como Bis. Ou Naxos. De produtores que acham que toda música obscura merece ser dada ao conhecimento público, seja por meio de concertos (muito raramente) ou, na maioria das vezes, gravações.
Imaginem, agora, uma imensa discoteca que contenha toda a música que o espírito humano já criou em determinado gênero, da mais sublime à mais rasa. Como a biblioteca de Borges contendo os livros com todas as primeiras páginas possíveis com as letras do alfabeto. Inclusive a s ininteligíveis, sua grande maioria. Mais ou menos assim é uma coleção como a discoteca da Rádio da Universidade. Que possui, talvez, mais música do que se poderia ouvir em uma vida toda.
É claro, então, que, para nela bem se navegar, é preciso um enorme discernimento sobre tudo o que diga respeito à qualidade de toda composição, execução ou gravação (são raros os discos que excedem nestes três quesitos !) a ser levada ao ar. Daí a complexidade da tarefa de se decidir a que segmento de tamanho (e tão desigual !) universo gravado deve ser dado o privilégio do acesso facilitado a uma audiência por meio de broadcasting.
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Mas, afinal, o que isto tem a ver com a reprodutibilidade do experimento de se adivinhar o que toca na rádio ? Não sei. Pois sou um observador [ouvinte] distante. Mas desconfio que, desde os tempos da brincadeira do Milton com seu pai até minha frustração ao tentar reproduzi-la dias atrás, algo degringolou na curadoria do que toca na AM 1080.
Quando eu gostava de ouvir a rádio, ela era programada por gente como o compositor Flávio Oliveira, Rubem Prates (head hunted pela Livraria Cultura quando ao se aposentar na UFRGS) ou Sérgio Stosch. Gente que, evidentemente, conhecia música. E muito bem. A ponto, ao menos, de saber claramente quais discos deveriam ou não permanecer, por bem, indefinidamente arquivados. Na Rádio da Universidade de hoje, parece que se perdeu um pouco esta noção. Espero que a reencontrem. Talvez, sei lá, por meio de alguma parceria com o Instituto de Artes da mesma universidade. Pois nossos alunos podem programar uma sequência bem melhor do que tocar daquela discoteca. Ou assim prefiro supor.
Falando nisto, lembrei que, quando aluno do IA, conheci muita música à qual só tive acesso por meio de cópias em fitas K7 feitas, sob demanda, pela rádio. Nesta mesma época, a rádio transmitia ao vivo, com som captado por Marcelo Sfoggia, os concertos da OSPA de cada terça-feira. Antes disto, eu já ouvia assiduamente A Hora do Jazz produzida e levada ao ar todos os sábados pelo Stosch bem antes do heroico programa, diário e congênere, tocado por Paulo Moreira na outra emissora pública de Porto Alegre.
Além da rádio, tínhamos também as excelentes coleções de música contemporânea dos Institutos Goethe (de onde tomei emprestada praticamente toda a série Avantgarde da Deutsche Grammophon) e Cultural Norte-americano. Depois, durante o mestrado, levava para ouvir em casa pilhas de discos de uma biblioteca do Lincoln Center especializada em performing arts. Deve ser por isto que não entendo por que alunos do IA devam limitar sua escuta à pobre biblioteca da escola que frequentam (posso estar enganado) tendo, a poucas centenas de metros dali, a maior e melhor discoteca do sul do país. Mas isto foi bem antes do youtube. Mais precisamente, lá pelo início dos anos 80.
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