Lugar de fala, uma ideia perigosa

O conceito de “lugar de fala” é bem novo. Não existia até poucas décadas atrás. Tanto quanto o do “politicamente correto”, o qual, para alguns, acabou com o humor ou, pelo menos, o tornou mais difícil. É claro que há controvérsias sobre isto. E também não é disto (do politicamente correto) que quero falar aqui.

Em poucas palavras, lugar de fala significa que somente quem experimenta ou já experimentou determinadas condições – como, por exemplo, racismo e outras formas de violência, inclusive sexual – estaria autorizado a se referir a elas com alguma propriedade ou, simplesmente, delas falar. Isto quer dizer que somente vítimas de agressões poderiam se referir às mesmas sem o estigma de não saber do que estão falando.

A ideia do lugar de fala, bem popular na política e em círculos humanísticos, acadêmicos ou não, traz em si uma ambiguidade quanto à sua índole, que pode ser tanto virtuosa como perversa, dependendo de como e/ou para que for usada.

A conotação mais óbvia, desejável, do lugar de fala é aquela que provavelmente deu origem à locução. Invoca-se o púlpito nela implícito sempre que se tratar de dar voz a indivíduos, quase sempre minorias (étnicas, de gênero, etc.) que, de outra forma, dificilmente teriam seus direitos, experiências ou discriminações sofridas no centro das atenções. Neste sentido, o lugar de fala é uma ferramenta de empoderamento formidável. Isto é inquestionável.

O problema começa quando se tenta aplicar uma espécie de mordaça a todos que se situem na área de exclusão externa ao lugar de fala, do tipo “você não sabe do que está falando“. Como assim, jacaré ?

Usado assim, desta forma, o princípio, de outro modo tão virtuoso, acaba por se tornar não mais do que uma versão atualizada da martelada falácia do “envenenamento do poço”, também conhecida como ataque “ad hominem” – que consiste em, num debate, quando alguém se vê incapaz de refutar um argumento, tenta desacreditar a autoridade de quem o enuncia. Uma espécie de “cala a boca por que não entendes disto“.

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Aprendemos em O Despertar de Tudo, de Graeber & Wengrow, que os iluministas não souberam reconhecer a magnitude ou, sequer, a existência, no recém invadido Novo Mundo (mais especificamente, em tribos canadenses), de uma crítica indígena ao menos tão sofisticada como aquela encontrada na Europa, tida então como fonte única da qual emanava toda a sorte de pensamento avançado. Tanto isto é verdade que o stablishment cultural daquela época insistia em considerar notícias trazidas por missionários e exploradores sobre filósofos indígenas notáveis, como Kondiaronk, não mais do que fabulações de viajantes visando adequar seus relatos ao ethos dominante.

Houvesse a formulação de um lugar de fala já naquela época, talvez a história, no que tange à incorporação de ideias e conhecimentos encontrados por exploradores em terras distantes, tivesse sido outra.

Se estivermos de acordo, então, sobre a validade e potência da formulação de um lugar de fala em se tratando de dar voz a minorias oprimidas, precisamos ter, por outro lado, o cuidado de não banalizar seu uso para amordaçar aqueles cujas ideias não derivem de experiências primárias.

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PS: o título deste post é uma referência escancarada ao de um livro que tentei ler mas desisti em razão de meus parcos conhecimentos econômicos, a saber, Austeridade – uma ideia perigosa, de Mark Blyth.

Sobre lutas, rinhas e a relatividade moral

Hamilton 1

Ontem, compartilhei no facebook uma excelente matéria do Guardian na qual se afirma, entre outras coisas, que o box é violento por definição, explora pessoas da classe trabalhadora, é perigoso e celebra a violência e a competitividade individual. Concordei de pronto, estendendo o argumento, para além do box, a todas as lutas de arena – dentre as quais as mais violentas atraem mais atenção midiática e, portanto, patrocínio. Pensei até em traduzir. O Milton disse que é fácil e rápido. Discordo.

Hoje, me acordei intrigado com o fato de que, enquanto rinhas entre animais, como galos ou pitbulls, são proibidas por lei, lutas entre humanos, inclusive as mais violentas, são não apenas permitidas mas largamente promovidas pela indústria do entretenimento. Ou não teríamos em Anderson Silva uma espécie de herói.

Qualquer um percebe que toda moral é relativa, não se precisando, na maioria das vezes, ir muito fundo para descobrir a que interesses servem. Imaginem, por exemplo, se alguém publicasse hoje as fotos de meninas de um David Hamilton ou mesmo Lewis Carroll. Não há, por outro lado, nenhuma diferença essencial entre uma luta de MMA e a rinha, suponho que clandestina, de mandingos mostrada por Tarantino em Django. Houve, então, claramente, um acirramento e uma flexibilização, respectivamente, num caso e noutro, de um entendimento sobre o que é ou não socialmente tolerável.

Ou, dito de outro jeito: no primeiro caso, o que já foi visto como arte é hoje tido como pedofilia, ao mesmo tempo em que, no segundo, a mesma violência que repugna na mansão de um antigo escravagista é divertida para quem assiste, ao vivo ou pela TV, ao que se passa entre as cordas de um ringue em Las Vegas.

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(cheguei a salvar umas imagens de lutas de MMA para ilustrar o post mas, francamente, não quis submeter amigos a que as vissem em suas timelines – pois deve haver, afinal, outros que, além de mim, fechem os olhos diante da cena dos mandingos de Tarantino. Melhor, pensando bem, uma ninfeta de Hamilton)

Não existem atalhos para proteger crianças de jogos violentos

O texto abaixo é uma tradução do que foi escrito por Nathan Ditum e publicado originalmente em The Guardian em 31 de março de 2015.

Call of Duty 2

Eis mais uma razão para que todos se interessem por videogames. Obrigado, diretores de escola de Cheshire, por enviarem uma carta, sutil como um tijolo, ameaçando pais de envolvimento com a polícia e serviços sociais se seus filhos tiverem acesso a videogames violentos ! Trata-se de um enorme desserviço.

A mensagem é, na verdade, totalmente equivocada – especialmente se considerando que quase todas as escolas que integram a Nantwich Education Partnership são primárias, abrangendo uma faixa etária particularmente vulnerável, e que a carta também aborda redes sociais. Ora, que a carta trata dos perigos de jogos e da internet como se descrevesse um lugar distante de monstros digitais e predadores sexuais. “Call of Duty, Great Theft Auto, Dogs of War e outros jogos similares são todos inapropriados para crianças”, diz, mais preocupada em defender crianças desses títulos tóxicos sem, aparentemente, perceber que um deles não é real (ao menos, é claro, que os diretores de Cheshire estejam se referindo ao clone de Rambo chamado Dogs of War lançado em 1989 para os consoles Amiga e Atari SX – o que, provavelmente, não é o caso).

A parte sobre social media não é mais racional (o acesso “estimula comportamentos sexuais precoces” e “os torna vulneráveis ao aliciamento para a exploração sexual e à violência extrema”). A verdadeira falha da carta é, no entanto, ser indicativa da ignorância generalizada e indiferença que, ao nosso ver, constituem o cerne do problema.

A situação é frustrante por que, embora destrutivamente pesada e parecendo, por vezes, um cão latindo para fogos de artifício, a carta carece de foco. Pais devem, sim, assumir a responsabilidade final sobre aquilo com o que seus filhos se envolvem, e é correto afirmar que a indiferença generalizada é pior para todos. Como pai de alguém com 12 anos de idade, estou em meio ao processo de tomar essas decisões duras, em parte por que muitos outros pais parecem satisfeitos em deixar seus filhos jogarem o que quiserem. Este senso de injustiça pode tornar a resistência aos pleitos de seus filhos particularmente difícil.

Reconheço que o argumento “mas todos os meus amigos…” é tão velho quanto a humanidade (o pai de Freddy deixa ele usar o machado o tempo todo). É, no entanto, um problema real, i.e., um sintoma de pais não sabendo e/ou pouco se importando com o que seus filhos jogam. E a má notícia, aqui, para a Nantucky Education Partnership e demais fãs da moral prescritiva licenciosa, é que classificações etárias não são suficientes.

Em sua parte mais centrada na agressividade passiva, a carta diz: “se seus filhos obtiverem permissão para ter acesso inapropriado a qualquer jogo ou conteúdo associado indicado para maiores de 18 anos, somos orientados a procurar a polícia e os serviços sociais, pois isto é considerado negligência”. A referência é, aqui, presumivelmente a classificação etária PEGI, fornecida pela Pan European Gaming Information que, desde 2012, é o órgão responsável pela classificação de jogos em todo o Reino Unido.

Ainda que tornem ilegal a venda de jogos a crianças abaixo da idade apropriada, as classificações PEGI apenas propiciam aos pais diretrizes não-obrigatórias sobre o que seus filhos devem ou não jogar – razão pela qual as ameaças contidas na carta soam tão exageradas. Por isso, temos que reconhecer que este tipo de aconselhamento – como, de resto, qualquer outro oferecido por sistemas de classificação – tem sua utilidade apenas como uma forma de orientação demasiado genérica.

Uma mesma classificação 18 foi conferida, por exemplo, a todos os jogos mencionados na carta. Tenho, no entanto, sérias dúvidas sobre se meus filhos devem ou não jogar alguns deles. Call of Duty é uma série que retrata violência militar e oferece aos jogadores um conhecimento enciclopédico sobre armas reais de fabricantes licenciados. Grand Theft Auto V é um jogo no qual é possível contratar uma prostituta. Mas a mesma classificação 18 foi dada a The Last of Us, um terror apocalíptico que, sim, inclui horror violento que muitos pais julgariam inapropriado que seus filhos vissem – mas também elementos de ambiguidade moral com os quais fico, pessoalmente, satisfeito que meu filho de 12 anos se envolva. “Não sei se devo atirar !” gritou ele ao se deparar pela primeira vez no jogo com outro humano desesperado – um senso de ambivalência e consequência que jamais teria jogando Call of Duty.

Finalmente, contrastemos estes jogos para maiores de 18 anos com outro, popular e amigável, classificado para maiores de 3 anos, a saber, Fifa 15. Trata-se de um jogo sobre futebol sem conteúdo sexual, mas que inclui um compulsivo jogo de trocas chamado Ultimate Team o qual, afirmo, teve uma influência muito mais sinistra sobre o senso de valor e espírito esportivo de meu filho do que qualquer outra coisa mais obviamente inapropriada.

Onde quero chegar ? Pais precisam, sim, assumir responsabilidade. Mas, para tanto, não há atalhos. Precisamos mais do que cartas histéricas e classificações etárias. Precisamos compreender a complexidade dos jogos como existem hoje, e tomar decisões sobre o que queremos que nossos filhos experimentem com base no que são capazes de absorver e – algo até agora ausente em toda esta polêmica – as pessoas que queremos que se tornem.

Call of Duty 3