O discurso artístico e o discurso sobre a arte

É razoável se supor que, para cada quantum de discurso artístico criado, seja em forma de livro, música, filme, quadro ou escultura, haverá uma quantidade bem maior de discurso sobre a obra, tanto maior quanto mais antiga e/ou consagrada ela for.  Isto por que a resenha sobre objetos artísticos, antes confinada a um seleto círculo de especialistas, acabou por se tornar o café da manhã, o almoço e o jantar de toda uma comunidade acadêmica voltada para a produção de textos analíticos sobre obras de arte em teses de pós-graduação e artigos para periódicos.

Não que todo discurso sobre a arte seja totalmente irrelevante ou supérfluo. Longe disto. Afinal, há textos secundários excelentes, geralmente de fôlego e em linguagem atraente, que iluminam a compreensão sobre um autor, grupo de autores ou mesmo todo um contexto ou uma época. Tais são os tratados de teoria literária de Mikhail Bakhtin (1895-1975) sobre Dostoiévski e Rabelais, ou ainda os livros de Charles Rosen (1927-2012) sobre o estilo clássico e a forma sonata. São também respeitáveis as contribuições de schollars como Alan Tyson ou Robert Winter para periódicos como Beethoven Studies ou ainda as obras de Walter Frisch sobre a música de Brahms. Assim como estes, há muitos outros. Quase sempre, nestes casos, os textos analíticos secundários sobre a obra de epígonos artísticos são de interesse tão universal que acabam fatalmente publicados como livros.

Fora deste círculo de brilhantismo, no entanto, o que há – e em muito maior quantidade – é uma miríade de papers, de diferentes extensões (artigos, os mais curtos; teses, os mais longos), produzidos primordialmente para a promoção de seus autores na carreira acadêmica, que serão lidos não mais do que por aspirantes a posições mais ambiciosas no intuito de melhor rechearem seus próprios textos com citações.

Aqui se faz necessário um disclaimer (antes que comecem as inevitáveis pedradas): é claro que há teses e artigos interessantes e necessários; estes se constituem, no entanto, muito mais em exceções do que na regra.

É sobre tais textos secundários, bem escritos no máximo, ainda que de pouca relevância para a apreciação das obras examinadas, que trato nesta diatribe.

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Não conheço a origem das teses e artigos científicos, nem tampouco tenho paciência para buscar tal erudição. Quer me parecer, no entanto, que a disseminação  generalizada do texto acadêmico que temos hoje seja como uma praga que fugiu ao controle.  Escrever (e publicar) já foi um privilégio exclusivo de quem (1) soubesse escrever bem e/ou  (2) tivesse algo original ou, ao menos, interessante a dizer. Só que, nalgum momento, pareceu às elites universitárias que talvez fosse uma boa ideia exigir de aspirantes a melhores posições acadêmicas que escrevessem intensamente, quase compulsivamente.

Aqui nos deparamos com um desequilíbrio fundamental, a saber, o de que existem muito mais pesquisadores (assim são chamados) do que, propriamente, objetos de estudo carentes de textos elucidativos. Isto foi suficiente para instaurar uma corrida, entre orientandos e orientadores, pela identificação de temas passíveis de uma boa tese ou de um bom artigo. E nesta busca, um lugar óbvio para o qual olharam (especialmente pesquisadores em arte) foi o imenso manancial de discurso artístico produzido em todas as épocas.

Só que tal expediente não se afigurou, na prática, tão simples, posto que campos de estudo sobre epígonos como Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Brahms ou Schoenberg (para citar uns poucos) já estavam saturados com textos consagrados do eminente círculo de schollars supracitado. A solução foi se voltar, então, para obras de artistas novos ou novíssimos menos conhecidos. E se garantiu, com isto, a perpetuação do exercício acadêmico da escrita. Para desespero dos bibliotecários – que são, em última instância, aqueles que devem lidar com o excesso textual.

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Sei. A visão acima será certamente descartada como o delírio de um outsider pela academia, a qual se perpetua sem a necessária autocrítica, ignorando por vezes mesmo contribuições valiosas de insiders argutos – como, por exemplo,  Maggie Berg e Barbara Seeber no sensacional The Slow Professor – challenging the culture of speed in the academy.

Vejamos, então, a coisa sob outro prisma: o do artista que tem a obra dissecada em textos secundários sobre a mesma. Antes, porém, algumas palavras sobre os limites da análise.

Torno a dizer que, é claro, não falo aqui dos impressionantes insights de um Rosen, Tyson ou Frisch (que, é preciso dizer, não caberiam na extensão de um artigo ou mesmo de uma tese de dimensões normais – sendo, na maioria das vezes, a investigação de uma vida inteira). Falo, sim, do tipo de achado normalmente resultante da aplicação de alguma técnica consolidada de análise musical. Pois há muitas: Schenker, Meyer, Reti, semiótica e por aí afora.

Ministrando, décadas atrás, disciplinas de análise musical a alunos de graduação, passei pelo constrangimento de ter que lhes revelar, ao fim do curso, que nenhuma técnica conhecida de análise pode nos dizer sobre uma música qualquer coisa que já não saibamos depois de ouvi-la.

Os mais céticos hão de dizer que há um certo exagero nisto, visando o efeito fácil – com o que, admito, tenho que concordar. Tomemos, então, um caso extremo: o da análise semiótica, formulada por Jean-Jacques Nattiez. Na década de 90 do século passado, Nattiez falou num congresso da Associação de Pesquisa e Pós-Graduação em Música na UFRGS. Sua concorrida conferência foi sobre uma análise em andamento da Catedral Submersa, de Claude Debussy. Disse que tinha submetido seus dados a uma especialista em computação para o processamento numérico. Desconfiado, achei aquilo tudo muito estranho. Como se quisessem descobrir algo novo sobre a célebre música através de um equipamento, sei lá, como um espectógrafo de massa (utilizado para identificar átomos de elementos constituintes da matéria). Ao final, a cereja do bolo: Nattiez informou à reverente plateia que a especialista ainda não havia lhe retornado os resultados. O que não o impediu, no entanto (pensei com meus botões), de cruzar o Atlântico, provavelmente não de graça, para nos falar daquilo. Curiosamente, não nutro hoje, mais de 20 anos depois, a menor curiosidade para saber o que descobriu sobre a maravilhosa peça de Debussy.

Fecho parênteses, voltando à questão de especular sobre a preferência de um autor entre ter sua obra minuciosamente analisada por e para um reduzido número de especialistas ou, ao contrário, ter a mesma amplamente vista, lida ou escutada por um grande público atento, ainda que leigo.

A “licença para prescindir do público” foi talvez pela primeira vez formulada e concedida, ao menos em música, no manifesto Who cares if you listen ?, de Milton Babbit (1916-2011), compositor e professor da Universidade de Princeton, publicado em 1958 pela revista High Fidelity. No célebre ensaio, Babbitt defende a tese de que a universidade se constitui no lugar ideal para o compositor criativo, uma vez que somente nela fica o mesmo livre de qualquer compromisso com a aceitação pública de sua obra.

Lasco, no entanto, o palpite de que a grande maioria dos pintores, escultores, escritores, compositores e cineastas deva preferir, inquestionavelmente, a segunda opção.

Fazendo, ainda, as vezes de advogado do diabo, caberia perguntar se a profusão de textos secundários disponíveis em teses e periódicos sobre o discurso artístico não contribuiriam de forma decisiva para o entendimento e, quando fosse o caso, realização (como na música), do mesmo. Não tenho resposta. Por isto mesmo, quero conhecer o contraditório – a saber, o valor de textos analíticos secundários para uma melhor realização e/ou compreensão de discursos artísticos.

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P.S.: comecei a ler, meses atrás, o grande livro de Michael Benson sobre 2001: Uma Odisséia no Espaço. Ainda que nem todo filme mereça um livro a seu respeito, com certeza qualquer obra de Kubrick justificaria o volume. Por isto, será interessante rever mais uma vez o épico espacial do cineasta após concluída a leitura (que interrompi para ler outras coisas mas, oportunamente, devo retomar) para saber de que modo a obra secundária afetou minha apreciação da primária.

Por que Carmina Burana é, conquanto popular, musicalmente irrelevante

frisch-1Semana passada, deflagrei uma longa e acalorada discussão no facebook ao afirmar peremptoriamente que Carl Orff era um compositor irrelevante e Carmina Burana, sua peça mais popular, uma composição, no máximo, pueril. Como sempre, toda menção comparativa à ordem de grandeza de compositores célebres (suponho que com outros artistas aconteça o mesmo; por exemplo, por que Van Gogh, os impressionistas ou qualquer dos últimos pintores figurativos parecem tão superiores, digamos, a Pollock, Rothko ou Basquiat). Pelo menos, foi assim quando me referi a Mendelssohn, Tchaikovsky e Rachmaninoff como compositores secundários.

Desta vez, aludi de passagem à popular tese de que Orff era nazista e batia na mulher. O que causou, no entanto, mais indignação foi minha denúncia da construção um tanto quanto simplória da famosa cantata. Procurei antecipar as refutações mais óbvias ressalvando que já ouvira muita música modal bem mais interessante. Em vão. Pois até de interlocutores supostamente ilustrados ouvi a réplica de que toda depreciação de Carmina Burana não passaria de ranço elitista contra, suponho (nunca entendi muito bem este tipo de argumento), manifestações artísticas mais populares.

Como sempre nestes casos, não tardou a se fazer reverberar, por algum comentarista ofendido, a conhecida máxima de que “gosto não se discute”. Pronto. Fisgaram a isca. De modo que pude encher a boca para sentenciar que gosto se discute, sim – e que quanto mais compararmos, melhor. E que se destas comparações emerge o fato de que algumas obras são notoriamente melhores do que outras, tal se deve a critérios absolutamente objetivos. Sendo, portanto, uma grande asneira “validar” a qualidade de qualquer coisa segundo sua aceitação popular, como querem os defensores da premissa de que “gosto não se discute”. Pois, na formação do gosto popular, interferem fatores tais como publicidade, simplicidade/complexidade, conhecimento/ignorância ou sinestesia, entre outros – os quais não são, todavia, objetos deste texto.

Antes, tinha em mente, ao iniciar estas linhas (o texto, essa nau sem rumo !), tentar explicar, em termos objetivos, por Carl Orff não atingiu nem de longe a estatura de um Mahler, Stravinsky ou Shostakovich (só para citar uns poucos grandes que viveram no mesmo século).

Para se entender por que Carmina Burana, como peça sinfônica, não chega aos pés de qualquer marco sinfônico, é preciso recorrer a um conceito formulado por Walter Frisch em Brahms and the Principle of Developing Variation (California Studies in 19th Century Music, University of California Press, 1984). A expressão se refere à técnica composicional utilizada mais emblematicamente por Brahms, segundo a qual todo tecido musical é gerado por meio de repetições variadas (i.e., ligeiramente alteradas) e sucessivas de materiais pertencentes a um mesmo conjunto. Ou, se quiserem, grupo temático.

Assim, podemos dizer que o Bolero de Ravel, com sua repetição obsessiva de um mesmo par de melodias inalteradas, apenas reiteradas por instrumentos diferentes, é o caso mais emblemático de recusa sistemática ao princípio composicional formulado por Frisch. Ao contrário, a realização plena de formas longas conforme praticadas pelos principais representantes da tradição sinfônica pressupõe um domínio absoluto dos procedimentos modulatórios conforme derivados por Schoenberg da música do período de prática comum (i.e., do barroco ao romantismo tardio) em Structural Functions of Harmony (Norton, 1954).

Do mesmo modo, não precisamos ouvir muitos compassos de Carmina Burana para perceber que, ao contrário do que ocorre, digamos, na oitava sinfonia de Mahler, os mesmos materiais (desde pequenas células de poucos compassos até frases ou seções inteiras) são repetidos intactos imediatamente – quase sempre três vezes ao longo de toda a célebre cantata. Imaginem, agora, a monotonia do mesmo expediente replicado por cerca de uma hora, tempo de duração aproximado das duas obras comparadas neste parágrafo. Sem chance alguma, portanto, para a de Orff.

Não que outras obras, a seu modo admiráveis, não repousem sobre as mesmas formas simples, até simplórias ou minimalistas, dos universos medieval (olhando para o passado) ou pop (considerando o futuro). Acontece que, face aos monumentos da grande tradição sinfônica, utilizar a palheta orquestral para algo de contornos tão ostensivamente esquemáticos como Carmina Burana se configura como um dos casos mais escandalosos de desperdício de meios de que se tem notícia no âmbito da criação artística. Noutras palavras, não faz o menor sentido lançar mão da instrumentação utilizada por epígonos do eixo melhor representado por Beethoven, Brahms e Mahler para expressar formas que, despojadas de todas as repetições literais, não durariam mais do que uns poucos minutos. É como orquestrar para naipes completos de cordas, madeiras, metais e percussão, além de coro e solistas, canções com não mais do que dois ou três acordes.

(um modo relativamente fácil de se verificar o grau de ambição formal de uma obra seria submetendo o ouvido crítico à audição de uma versão reduzida para o teclado da mesma, na qual toda cor instrumental é, a priori, suprimida)

Então, em que pese a enorme popularidade da obra mais conhecida de Orff, me poupem dos frágeis argumentos que sustentam que a mesma advenha de algum suposto mérito composicional. E me poupem, igualmente e sobretudo, da validação de qualquer coisa meramente pelo gosto popular. Pois daí para se aceitar a primazia do mercado na valoração de todas as coisas é um tapa. O triunfo do relativismo absoluto em qualquer matéria estética. Prefiro, outrossim, pensar que, como civilização, ainda não despencamos tanto.

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