Reality shows: anatomia de um desgaste

Depois de mais de duas décadas de hegemonia nas grades de programação da TV aberta, os reality shows finalmente apresentam (viva !) inegáveis sinais de desgaste. Não que não estivessem presentes antes. É que, agora, talvez pela primeira vez, os próprios realizadores se vem forçados a tomar providências para tentar garantir alguma sobrevida ao formato.

Fatos como a adoção, depois de mais de vinte anos (!), de um voto único, associado ao CPF, em cada votação ou, ainda, o telefone através do qual espectadores podem veicular críticas à produção do Big Brother são sintomas inquestionáveis disto. Tais sinais sugerem que emissoras estejam reagindo a audiências minguantes, numa tentativa de perpetuar uma fórmula até então bem sucedida que, todavia, começa a não mais convencer.

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Por mais que realizadores de realities apregoem, como no caso do telefone cujas ligações o próprio apresentador do programa estaria sempre pronto a atender (que belo golpe publicitário !…), é razoável supor que as demandas do público sejam editadas. Voltaremos a isto. Por hora, vejam, por exemplo, demandas, até certo ponto fáceis de atender, como:

que aconteçam mais provas de inteligência do que de resistência; ou

que a famosa xepa seja mais restritiva, como, por exemplo, um regime de pão e água;

e por aí afora. Até aí, tudo bem. Mas imaginem se espectadores começassem a reivindicar coisas como

opinar no processo de seleção dos participantes – numa tentativa, talvez, de quebrar o padrão de corpos jovens e esbeltos, que impera no programa, em favor de mais conteúdo mental. Tipo menos músculos, bundas e peitos e mais cérebro. Ou ainda

a supressão de publicidade dos patrocinadores nos cenários das provas. Já notaram como as marcas e as cores dos anunciantes nas arenas de provas demoradas dominam por muito mais tempo do que em comerciais de 30 segundos ? Vejam ainda o destaque dado no próprio programa ao carro ganho pelo vencedor do The Voice. Perto disto, o clássico merchandising de uma garrafa de Coca-Cola “casualmente” deixada sobre uma mesa de refeição em uma telenovela é uma perversão não mais do que tímida.

Não sei o que vocês acham, mas quero acreditar que emissoras jamais dariam ciência de demandas de telespectadores como as acima, que dirá atendê-las. Donde inferimos que o poder de edição dos realizadores sobre o desejo do público é a última coisa da qual estariam dispostos a abrir mão.

Eis o principal fator de distinção entre os broadcasting media – que, como o próprio nome já diz, concentra um enorme poder na definição de conteúdos nas mãos de seus proprietários – e as mídias sociais – nas quais, ao menos em tese, há uma certa isonomia na possibilidade de externar opiniões, doam a quem doer ou, até mesmo, quando não passam de asneira.

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A TV aberta vive de fofoca. Seus donos sabem disto e se aproveitam do fato. Realilies são o melhor exemplo disto. Não é por menos que a maioria deles seja sobre canto e culinária, matérias nas quais qualquer leigo se sente autorizado a opinar. Com o povo sarado do Big Brother (só eu acho que aquilo parece uma academia de ginástica ?), não é diferente. Por vezes, parece que, quanto mais raso, melhor. Maior o “engajamento” (adoro essa palavra !) popular. Tudo isto no único intuito de maximizar o alcance da mensagem publicitária. Imaginem, agora, se a competição fosse sobre astrofísica. Ou física quântica. Vislumbram algum possível engajamento ?

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Terminamos de assistir a mais uma temporada do The Voice (dizem que a última !), por sorte curta. Neste programa, o foco é muito mais no júri do que nos calouros. O sorrisão do Teló. Parece o gato de Alice. E já viram algum dos jurados falar algo desabonador sobre algum candidato ? E os perdedores, que sistematicamente escondem sentimentos de frustração por trás de um discurso de gratidão ? É só love. Hipocrisia pouca é bobagem. O mais irônico de tudo é que, em poucos anos, os jurados continuarão célebres enquanto que a maioria dos calouros, esquecida.

Se disponibilizassem um telefone do The Voice, nos moldes do telefone do Tadeu no Big Brother, as duas coisas que eu mais gostaria de ver reivindicarem seriam

participação popular na escolha das vozes selecionadas para aparecer no programa; e

disponibilização da íntegra da interação, entre um programa e outro (já que não são ao vivo) entre cada “técnico” e seu “time”. Pois desconfio de que pouco do que vemos e ouvimos possa ser atribuído à interferência dos técnicos.

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(notas rabiscadas às pressas depois da última edição do The Voice e antes da próxima do Big Brother)

Celebridades

Disclaimer: se você espera deste post alguma novidade ou revelação bombástica, fuja dele como o diabo da cruz. Se, no entanto, anda atrás de subsídio para reflexão sobre uma realidade hegemônica na qual nossa cultura, queiramos ou não, está imersa, seja muito bem-vindo a estas linhas.

Havia escolhido o atrativo título Por que odeio celebridades, do qual logo desisti, por pelo menos dois motivos: por que estaria 1) de certa forma, traindo o espírito do texto, que é justamente o repúdio deliberado à busca desenfreada pela maximização da audiência (clicks & likes) e 2) ao mesmo tempo, faltando com a verdade na medida em que não odeio celebridades mas, antes, as acho profundamente intrigantes; mais exatamente, pela alta importância que exercem em todos os aspectos da vida contemporânea. Um dos principais pilares de nossa civilização, eu diria.

Pensei, então, em Celebridades, uma teoria – que logo descartei por parecer demasiado presunçoso e também por que a ideia pertence ao grande David Graeber. Daí que ficou só Celebridades mesmo.

Há anos coleciono notícias sobre celebridades pensando em, num futuro vagamente distante, vir a escrever algo que preste sobre as mesmas. Não que já me sinta pronto ou à altura da tarefa. Ao contrário, desisti de chegar a qualquer conclusão importante. Vultos amplamente conhecidos da música, da moda, do esporte e afins não fazem mais do que preencher o imenso vazio do noticiário cotidiano. Não há, aqui, como não lembrar do experimento proposto por Domenico di Masi que consiste em se abster voluntariamente de acompanhar o noticiário tão somente para constatar, depois de algum tempo, que ele é sempre o mesmo.

Quando, há muito tempo atrás, comecei a colecionar notícias sobre famosos, saudei com entusiasmo a descoberta de marcadores que permitiam, com um click, salvar para referência futura páginas de internet visitadas, associadas a etiquetas (tags) que agrupavam vários recortes (como eram chamados no tempo da mídia impressa) sob uma mesma categoria. Sempre fui e ainda sou avesso a ferramentas virtuais pagas e, quando o Delicious (site de marcadores que eu usava) foi comprado pelo Yahoo, passando a ser um serviço oferecido mediante a cobrança de uma assinatura mensal, migrei com minhas já então mais de 7000 páginas marcadas para o Tagpacker, gratuito até hoje.

Entre meus tags mais populosos estão as celebridades e a indústria fonográfica. Marcava coisas como, por exemplo, o vestido de carne de Lady Gaga. Lembro que, naquela época, cheguei a constatar fenômenos repetitivos de pouca importância, tal como a associação num mesmo single, descoberta por algum mago das gravadoras e exaustivamente replicada desde então, da voz de uma cantora com a declamação de um rapper. A indústria da música vivia, então, um momento de grande incerteza, tendo que pular fora do barco da comercialização de mídias físicas, que naufragava, para se adaptar à nova realidade do streaming e das redes sociais.

Recentemente, me decepcionei com os marcadores ao buscar, em vão, uma página que, quando conheci, atraiu muito minha atenção – a saber, um texto brilhante de Norman Lebrecht explicando a permanência de mitos como Elvis Presley e Maria Callas numa era de sucessos fugazes. Inútil. A página tinha saído do ar, meu marcador apontando somente para um frustrante page not found. Menos mal que ainda me lembro da tese defendida por Lebrecht.

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Tecnicamente, podemos definir uma celebridade como uma pessoa que conhecemos sem que sejamos por ela conhecidos. Tal conceito, ainda que correto, permanece numericamente vago. Tratemos, pois, de quantificar. Na era dos mainstream media (jornais, revistas, rádio e TV) ser célebre significava ser conhecido por milhões de pessoas. Com a democratização (apregoada mas não totalmente entregue) trazida pela internet, este limiar caiu para alguns milhares. Para sermos exatos, 5000 é o número cabalístico em relação ao qual o facebook define se as pessoas às quais nos relacionamos são amigos ou seguidores. Quem é conectado a mais de 5000 pessoas (ou perfis) é considerado uma celebridade, dono de uma fan page com seguidores. Já se tiver menos do que isso, não é uma celebridade, tendo apenas uma página pessoal povoada por amigos. Desconheço as diferenças funcionais do algoritmo do facebook no tratamento de amigos e seguidores.

Curiosamente, o número 5000, utilizado pelo face para distinguir amigos de seguidores, é largamente discrepante daquele geralmente reconhecido por antropólogos como sendo o máximo de indivíduos que alguém pode realmente conhecer a ponto de confiar, que é, pasmem, 150. Se uma plataforma social amplia tão generosamente a quantidade de amigos (não de conhecidos) que alguém pode ter, razões para tanto deve haver – as quais fogem, no entanto, do escopo deste post.

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Celebridades sempre foram reconhecidas como role models. Exceto, é claro, as negativas, como Hitler ou Calígula. As mídias sociais, com sua promessa de democratização não plenamente cumprida mencionada acima, trouxeram um novo tipo de celebridade: o influencer. Ou, se quiserem, um role model de nicho. É a celebridade ao alcance de todos.

Celebridade remunera. Celebridades da mídia hegemônica, bisbilhotadas por milhões, ganham somas generosas para anunciar produtos. O que não quer dizer, é claro, que possam viver só disso, pois, antes de venderem grandes marcas, precisam ter alguma carreira exitosa em alguma área como, por exemplo, fazendo gols ou cantando hits de sucesso. Já o influencer, em sua micro celebridade ensejada pela democratização da web, consegue, no máximo, ganhar os produtos que usa ou ter o consumo franqueado em lugares que frequenta, bastando, para tanto, postar fotos usando os produtos ou frequentando os lugares em redes sociais. É a monetização do selfie.

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Se você chegou até aqui, é provável que, como eu, também considere o estatuto da celebridade supérfluo. Perverso, até. É claro que não falo da fama em decorrência de feitos importantes nas artes, nas ciências, na filosofia ou, vá lá, até na política; mas da celebração daqueles cuja contribuição e, portanto, relevância para o mundo seja totalmente nula. Mas nisto acho que concordamos. A pergunta, então, que não quer calar é: por que celebridades existem, hoje mais do que nunca ? Será por que alguns querem ser célebres ? Não creio. Ou talvez por que o sistema econômico vigente, incluindo a publicidade, precisa delas ? Tampouco. Me inclino a acreditar que é por que precisamos delas. Ou por que, ao menos, a maioria das pessoas precisa.

Por um momento, cheguei a pensar que a cultura da celebridade fosse um fenômeno eminentemente urbano. A partir do princípio de que cidades não existem por causa da conveniência econômica, mas por causa da necessidade da proximidade entre vizinhos – a qual, por sua vez, favoreceria a fofoca, esta sim uma necessidade humana primordial. Em contraste, pensei numa vida bucólica em que acordássemos com as galinhas e fôssemos dormir depois de jantar – como se uma existência pudesse ser preenchida exclusivamente pela manutenção da subsistência e qualquer tempo eventualmente ocioso com, sei lá, meditação. Logo abandonei a ideia, por demais simplista, impossível num mundo globalizado e hegemonicamente conectado.

Sigo, ainda assim, perseguindo a fantasia, praticamente uma utopia, de um mundo sem celebridades. É possível ? Suportaríamos ? Comments welcome.

Relativismo moral: o álcool no Big Brother e na novela das 9

Telenovelas como a das 9 e reality shows como o Big Brother me causam profundo incômodo, até irritação. São reações instintivas, na maioria das vezes sem qualquer justificativa racional. Noutras, mais raras, sou acometido por insights capazes de explicar tamanha aversão. É só por causa de uma destas constatações que invado a esfera intelectual de meus leitores, via de regra avessos a tais baixarias que povoam o horário da Globo entre seus dois telejornais noturnos. Se me detenho, aqui, em certos detalhes deste tipo de lixo televisivo, é tão somente para poupá-los da entediante exposição a estes programas para entender do que estou falando.

Na atual novela das 9, um personagem alcoólatra – uma cantora de meia idade, mãe de um adulto, que se apresenta em bares às próprias expensas, sem êxito para fazer sua carreira decolar e que aparentemente não compreende a dinâmica do circo de celebridades – é retratado como alguém fraco e raso. Um fracassado que não faz nada por si próprio e que sabota a si mesmo. Num contexto maniqueísta e altamente roteirizado como o das telenovelas, está nitidamente mais para lado dos maus do que dos bons.

Noutro contexto, o do Big Brother, o consumo descontrolado de álcool é não somente tolerado como incentivado, em festas semanais, como um expediente para provocar maior desinibição e espontaneidade por parte dos participantes.

Então, temos que, em programas distintos, ainda que em janelas adjacentes na grade de horários da emissora, o consumo de álcool é mocinho e bandido ao mesmo tempo. Se isto não é relatividade moral, então não sei mais o que é.

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Tais pesos e medidas diversos para diferentes programas campeões de audiência de uma empresa de mídia que deveria, supostamente, aderir a uma linha editorial é, no mínimo, intrigante, levando, de pronto, a algumas considerações.

A primeira, mais óbvia, é que, em se tratando de canais de mídia, de pouco importa qualquer posição editorial. O que existe é, de fato, um vale-tudo em se tratando de maximizar a audiência.

Já ao examinarmos mais de perto os dois formatos, a principal diferença que salta à vista é que, enquanto a telenovela é, como já dissemos, um gênero altamente roteirizado, i.e., em que autores predeterminam minuciosamente o comportamento, a trajetória e mesmo a aprovação ou reprovação popular de cada personagem; reality shows são como tubos de ensaio nos quais substâncias variadas são misturadas para se descobrir como reagem. Como num laboratório, os reagentes podem ser estimulados a reagir mas rápido ou facilmente por catalisadores como, por exemplo, pressão (competições) ou calor (álcool).

(tudo bem, o Big Brother não é tão imprevisível e descontrolado como nos querem fazer acreditar. A indução de resultados começa na própria seleção dos participantes, na qual produtores se esmeram para escolher candidatos que mais provavelmente produziriam os resultados esperados (confesso que eu até assistiria, por curiosidade e diversão, a uma edição do Big Brother que tivesse, entre seus participantes, alguém que não desse a mínima para o programa, com aversão ao formato, ficando na casa tão somente para desfrutar de suas benesses e, é claro, com uma cláusula de imunidade capaz de impedir que fosse eliminado de pronto por outros participantes ou pelo público em razão de sua recusa explícita em “jogar o jogo”. Mas já tirei meu cavalo da chuva, pois um improvável candidato assim seria o primeiro a ser descartado pelos diligentes recrutadores). Além disto, abundam teorias conspiratórias sobre a manipulação de resultados por realizadores do programa)

Deste modo, uma emissora pode “deitar moral” num programa, dizendo como cada um deve ser e, no seguinte, mostrar que “não adianta, o ser humano é assim”. E se quisermos, podemos ainda entender, por trás da contradição representada por esta dicotomia aparentemente irreconciliável, um possível discurso subjacente à justaposição da mortal roteirizada com a baixaria espontânea que diria “este é o povo que queremos educar/consertar”. Mas será que a emissora pensou nisto ? Acho difícil. O vale-tudo pela audiência deve falar mais alto. Mas e se tivesse pensado, seria um ponto a favor da emissora ou contra ela ? Para responder isto, só mesmo um Huxley (Admirável Mundo Novo), Orwell (1984) ou, mais recentemente (mas nem tanto), Neil Postman (Amusing Ourselves to Death).

É possível ser dono de uma ideia ?

“Um número recente da Veja trazia fotografias sensacionais das (como diria um inglês) ‘incomodações’ na Irlanda do Norte. Todas eram de ganhar prêmio, mas uma me impressionou especialmente. Nela aparecia a versão irlandesa do Popular.

É uma figura que sempre me intrigou. A foto da Veja mostra um soldado inglês espichado na calçada, protegido pela quina de um prédio, o rosto tapado por uma máscara de gás, fazendo pontaria contra um franco-atirador local. Atrás dele, agachados no vão de uma porta, dois ou três de seus companheiros, também em plena parafernália de guerra, esperam tensamente para também entrar no tiroteio. Há fumaça por todos os lados, um clima de medo e drama. Mas ao lado do soldado que atira, em primeiro plano, está o Popular. De pé, olhando com algum interesse o que se passa, com as mãos nos bolsos e um embrulho embaixo do braço. O Popular foi no armazém e na volta parou para ver a guerra.”

“Onde quer que se produza um acontecimento merecedor da atenção da cidade, lá encontraremos o popular, solitário ou em grupo. Eis tudo o que os repórteres nos dizem dele: ‘Um popular que passava pelo local…’ É a testemunha privilegiada de todos os fatos dramáticos ocorridos nas ruas, e que no dia seguinte sairão nos jornais. Se conserva o anonimato, é pela simples razão de que ninguém lhe perguntou o nome, mas sem ele, sem a sua presença casual, muitas ocorrências de desenvolvimento lógico estariam catalogadas entre os mistérios intrincados.

Devemos defini-lo como pessoa que, dirigindo-se a um ponto qualquer na cidade, a ele não chegará – ou chegará atrasado. Porque entre esse anônimo e seu destino subitamente se coloca o incidente urbano que não lhe diz respeito, mas que exige imperiosamente a sua atenção.”

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Assim começam as crônicas homônimas O Popular de, respectivamente, Luís Fernando Verissimo e José Carlos (“Carlinhos”) Oliveira. Ambas tem, além do mesmo título, exatamente o mesmo teor. Publicadas originalmente em Zero Hora ou na Folha da Manhã (LFV) e no Jornal do Brasil (JCO), as duas foram posteriormente compiladas em coletâneas: a primeira em O Popular (José Olympio, 1973), a outra em O Saltimbanco Azul (L&PM, 1979).

Tento presentemente descobrir qual delas foi escrita primeiro. A tarefa é, contudo, ingrata. Isto por que, ao contrário dos arquivos do The New York Times, onde é possível localizar instantaneamente conteúdos por meio de buscas por palavras-chave, os arquivos do Jornal do Brasil fazem parte de uma ambiciosa iniciativa do Google de disponibilizar todos os exemplares dos principais jornais do mundo que, todavia, não permite encontrar matérias específicas a não ser vasculhando manualmente todas as edições abrangidas pelo período de busca.

As crônicas contidas no volume O Popular foram escritas e publicadas originalmente de 1969 a 1972. Já as reunidas n’O Saltimbanco Azul saíram entre 1968 e 1978. Determinar a data da publicação de cada uma delas não é nada simples. Imaginem a trabalheira. Abrir cada jornal; localizar a coluna (a diagramação, bem padronizada, até que ajuda); ampliá-la para identificar o título. Aí vão dias de trabalho dedicado. Não sou, no entanto, arqueólogo nem tampouco garimpeiro – de modo que se, depois de publicar este post, topar com mais estas evidências, acrescento num PS. Até por que pouco importa quem escreveu sua crônica primeiro, já que, como verão a seguir, a índole deste post é justamente contestar o mito da primazia de enunciação.

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As duas crônicas citadas acima não ostentam em comum apenas o título, o que poderia ser considerado um fato corriqueiro. Ao invés, partem inequivocamente de uma mesma ideia – ainda que os dois autores a tenham desenvolvido com vieses totalmente distintos. Veríssimo, mais humorístico (“Não se deve confundir o Popular com o Transeunte, também conhecido como o Passante. O Transeunte ou o Passante às vezes leva uma bala perdida. O Popular nunca.”); Oliveira, mais dramático (“… surge com um lençol, apanhado ninguém sabe onde, e com ele cobre o infortunado pedestre. Finalmente, em outro passe de mágica, delimita o espaço da morte com quatro velas piedosamente acesas, cujas chamas não há vento nem chuva que consigam apagar.”).

O ponto que quero ressaltar é que, muito antes que cada um deles tivesse capturado (magistralmente, deve ser dito) a ideia, a mesma já pairava no ar, esperando para ser verbalizada, na infinidade de fotos análogas à mencionada por Verissimo. Assim, em vez dos distúrbios na Irlanda do Norte, a imagem poderia muito bem retratar, digamos, um idoso, de boina e com um baguete embaixo do braço, a observar o enfrentamento entre estudantes e a polícia em Paris em 1968. Esta composição fotográfica é um verdadeiro clássico jornalístico e, portanto, até bem provável que tenha sido analisada ou comentada por outros cronistas, em diversas partes do mundo, além de por Verissimo e Oliveira. O que torna evidente que ninguém, pelo simples fato de ter se apropriado, em alguma obra visual, musical ou literária, de uma ideia, pode ser considerado proprietário da mesma, independente de a ter formulado ou enunciado, aparentemente, pela primeira vez.

Por que aparentemente ? Ora, por que, apesar dos esforços de abrangência universal empreendidos pelo Google ou pela Wikipedia, e até o advento de uma web semântica, é impossível garantir a originalidade (aqui entendida como ausência de qualquer enunciação ou formulação equivalente ou análoga anterior) de qualquer ideia.

Por que, então, a relutância da maioria em reconhecer como um mito o princípio da primazia de enunciação ? Simples. O reconhecimento deste mito se constituiria por si só numa revolução cultural que, para começo de conversa, colocaria em cheque toda a doutrina da propriedade intelectual, com implicações tanto no mercado como no mundo acadêmico. Direito autoral, patentes, royalties, a hierarquia acadêmica (fundada sobre um complexo sistema de citações) e a própria figura do plágio teriam que ser revistos.

O tema é tão ramificado, e de abordagem tão complexa, que pretendo tornar a ele em texto(s) vindouro(s). Fiquem, então, por hora, à guisa de provocação, com este achado – uma memória de juventude que levei décadas para resgatar.

A pobreza da TV e do streaming; documentários que se salvam

Nunca gostei muito de ver TV. Com a quarentena, todavia, passei a prestar mais atenção nela – tão somente para confirmar o que sempre ouvira dizer, a saber, que a programação é um desastre. Indistintamente na aberta, na por assinatura (que, por lógica, deveria ser ligeiramente melhor) e, mais recentemente, nas plataformas de streaming.

O problema maior consiste na falta de memória em relação ao cinema. Inútil procurar grandes filmes europeus dos anos 70 ou mesmo coisas mais recentes. Por exemplo. Quando quis mostrar a meus filhos clássicos protagonizados pelo grande Michel Piccoli ou Fargo, dos irmãos Coen (quase deste milênio), nada encontrei.

É claro que alguns canais estão mais imunes a thrillers, séries e lançamentos mais recentes do cinemão americano. Como o Telecine Cult, com uma curadoria um pouco mais atemporal, ou o HBO Mundi, pródigo em filmes europeus e argentinos. Ainda assim, a desproporção é grande, pois praticamente tudo que não foi produzido nos últimos anos em um único país fica concentrado em uns poucos canais – a cuja grade de programação devemos nos adaptar se quisermos escolher minimamente ao que assistir.

Já o streaming – que, ao menos em tese, veio para resolver o problema da customização do horário de exibição – deixa totalmente a desejar na palheta de opções disponíveis. Não é de hoje que constataram ser impossível impossível encontrar algum Hitchcock (qualquer um) no Netflix. Neste quesito, até o Cult, que reprisa Psicose, Janela Indiscreta ou Os Pássaros de tempos em tempos, desempenha melhor.

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Num mundo perfeito, com uma verdadeira política inclusiva, serviços digitais por assinatura deveriam, assim como saúde, educação ou segurança, ser gratuitos. Custeados por impostos e providos pelo estado. Acabando, com isto, com o pote de ouro do segmento ponto com – uma assimetria econômica (empresas que lucram barbaramente controlando o tráfego de informações) que precisa ser corrigida. Não acho, no entanto, que venha a viver suficiente para testemunhar isto.

De minha parte, resisto o que posso (romanticamente, dirão) assinando o mínimo de serviços que consigo. Consoante a isto, não tenho Spotify. Sei, por outro lado, por meio de amigos, que a base de conteúdo na popular plataforma de streaming de áudio é enormemente mais ampla e isonômica (em relação a épocas e lugares de produção) do que as análogas (Now e Netflix) dedicadas a conteúdos visuais.

Tenho uma hipótese (ou, se quiserem, teoria conspiratória) a este respeito. Tem a ver com o custo de armazenamento. Por que arquivos de áudio são muito mais curtos e menos densos do que os de imagem, são necessários muito mais bytes de memória para armazenar um trecho de imagem em movimento do que o mesmo tempo de som gravado. Além disso, uma música dura, em média, muito menos do que um filme. Combinados estes dois fatores, temos que a proporção entre as quantidades de servidores necessárias para armazenar filmes e músicas cresce, com o aumento da oferta de conteúdo, não numa relação linear, mas exponencial. Com o que plataformas de streaming de conteúdo visual sofrem, então, uma pressão econômica muito maior para “limar” conteúdos menos acessados do que suas análogas sonoras.

Tal realidade só aguça a tragédia da extinção das cinematecas e video-locadoras.

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Outra honrosa exceção à mesmice da programação da TV por assinatura são os documentários. No último fim de semana, assisti por acaso (teria visto mais se houvesse me programado) a três excelentes. No primeiro deles, Varda por Agnès (2019), em forma de entrevista, tomei conhecimento da obra visual da instigante cineasta e fotógrafa belga, radicada na França.

A Arma Perfeita e A Guerra dos Consoles, ambos de 2020, se inserem na mesma tradição de O Dilema das Redes, na qual os realizadores procuram explicar, por meio de entrevistas com insiders (analistas, executivos e projetistas), estratégias políticas e corporativas, nem sempre explícitas, que resultaram em fatos e produtos que definem o mundo em que vivemos mas cuja compreensão histórica ainda é um tanto nebulosa em razão de ser tudo muito recente.

A Guerra dos Consoles, baseado no livro homônimo de Blake Harris, é sobre a competição predatória entre a Sega e a Nintendo pelo voraz mercado de videogames nos EUA nos anos 90. Não vi até o fim (tive que sair antes disso), mas fiquei querendo que a narrativa se estendesse até as plataformas da Sony e aos jogos online. A Arma Perfeita versa sobre a ação de “hackers de estado” russos e chineses minando ainda mais a credibilidade do já claudicante sistema eleitoral norte-americano. Tanto um como o outro são excelentes aulas de história recente – ou, para quem não concordar com os fatos apresentados ou com a correlação estabelecida entre os mesmos, ao menos ótimas teorias conspiratórias. Mas, afinal, o que não é, desde o mais singelo silogismo categórico, uma teoria conspiratória ?

(mais sobre teorias conspiratórias e sua reabilitação num próximo post, pois este já se alongou que chega)

Mais sobre o fim da imprensa e por que a matriz tributária é socialmente injusta

Recapitulando. No post anterior, examinamos dois grandes mitos acerca do jornalismo corporativo, a saber,

que a imprensa detém uma espécie de monopólio sobre a capacidade e a vontade de verificar a veracidade dos fatos; e

que a imprensa é isenta de interesses próprios ao reportar fatos.

Estes dois mitos são os principais argumentos levantados em favor da auto alegação da imprensa de que a mesma desfrutaria, a priori, de mais credibilidade do que a internet. Esperamos ter deixado isto claro até aqui.

No presente texto, o foco é na diferença entre a natureza da composição de esforços empreendidos por pequenos e grandes negócios, dentre os quais os jornalísticos, em prol da conquista e manutenção de posições privilegiadas entre competidores; bem como na possibilidade ou não de que pequenos e grandes coexistam num mesmo ecossistema desregulado. À natureza dos esforços, então.

Enquanto pequenos negócios, naturalmente melhor ajustados a seus nichos de atuação (demandas locais mais específicas e conhecidas) podem se concentrar melhor em suas atividades fim, de produção, gigantes de qualquer ramo – tendo que, necessariamente, atender a demandas mais genéricas e dispersas – precisam investir proporcionalmente muito mais em iniciativas de dominação de mercado, tais como publicidade e logística de distribuição, que, por sua vez, pouco ou nada tem a ver com suas atividades fim.

Para tornar a equação ainda mais complexa, pequenos negócios, enquanto locais, enfrentam muito menos concorrência, muitas vezes inexistente em seus territórios de atuação, do que grandes empresas, as quais precisam lidar habitualmente com outras, congêneres, cujas regiões de abrangência se sobrepõem.

Combinados, tais custos adicionais de distribuição, promoção e posicionamento vantajoso em relação à concorrência (os dois últimos se confundem) tornam, para as grandes corporações, bem mais oneroso produzir os mesmos bens e serviços que os pequenos negócios. Devo esclarecer que esta é uma visão um tanto quanto exótica, na contramão do que afirma a economia tradicional, que apregoa vantagens da produção em grande escala na redução de custos. Até que ponto a economia com custos de distribuição e publicidade compensaria as supostas vantagens da produção em larga escala é uma pergunta a ser respondida por economistas.

Pode ser que, sob um escrutínio minucioso, a produção em escala se revele, num balanço frio de custos e ganhos, financeiramente mais em conta do que a de uma rede de micro produtores. Ainda assim, no entanto, tal arranjo das forças produtivas não seria necessariamente melhor para a sociedade, principalmente por causa de dois fatores:

grandes negócios geram mais concentração e, consequentemente, mais desigualdade; e

quanto mais global for um negócio, maiores serão os custos, ambientais e financeiros, para que seus produtos cheguem às praças de consumo.

Razões suficientes, em nosso entender (noves fora a praga da publicidade), para incentivar os pequenos negócios em detrimento dos grandes.

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No post anterior, insinuamos certa ambivalência da Globo ao incentivar pequenos negócios ao mesmo tempo em que abriga em sua matriz de anunciantes exclusivamente grandes corporações. O que leva, inevitavelmente, à seguinte pergunta: pode ou não um governo ou agentes privados estimularem ao mesmo tempo grandes e pequenos ?

A menos que o resultado desejável seja uma guerra predatória, a resposta é não. Pois, ainda que, via de regra, pequenos negócios almejem crescer (abrir filiais, ter mais funcionários ou, se quiserem, “colaboradores”), todo grande negócio tende a absorver sua própria concorrência. Já me referi anteriormente ao “efeito espuma” na economia, segundo o qual um sistema composto de um número enorme de bolhas minúsculas tende, se deixado em repouso (i.e., sem a intervenção de agitação ou qualquer outra força externa, em economia geralmente sob as formas de regulamentação e tributação), a se transformar noutro com um número menor de bolhas maiores. A criação, anos atrás, da Ambev (espantosamente tolerada pela regulamentação anti-truste), é um claro exemplo disto. Outro é a absorção pela Coca-Cola de  inúmeras marcas locais de bebidas não alcoólicas, tanto de refrigerantes como de chás e águas minerais.

Então, não dá para ser ao mesmo tempo a favor de grandes e pequenos, por que uma atitude ou outra implica em ações diferentes, muitas vezes antagônicas. Como, por exemplo, a taxação.

Estamos acostumados à ladainha de empresários, que sentem seu lucro ameaçado, de que, no Brasil, impostos são muito altos, beirando o proibitivo, tornando praticamente inviável a realização de negócios no país. O chamado Custo Brasil. Estranhamente, não fecham as portas. Mas isto é outra história. O que nos interessa, aqui, é notar que a matriz tributária brasileira está invertida – só que ao contrário do que é amplamente alardeado.

Vejam, por exemplo, o caso do imposto de renda, que taxa muito mais pessoas físicas, com alíquotas progressivas que variam entre 0 a 27,5 %, do que jurídicas, que recolhem 6 ou 15 % de seu lucro, dependendo do regime tributário a que estão submetidas, e, o que é pior, independentemente da magnitude do lucro auferido. Pois o lucro de uma empresa de médio ou grande porte costuma ser bem maior do que os vencimentos anuais dos mais bem pagos assalariados.

Reparem, ainda, que, enquanto pessoas físicas são taxadas sobre a totalidade de sua renda líquida, empresas recolhem impostos apenas sobre o lucro. Num sistema minimamente isonômico entre pessoas físicas e jurídicas, as últimas deveriam pagar imposto de renda sobre o faturamento e não sobre o lucro. Há, além disto, impostos indiretos como o ICMS (estadual, de 18 a 30 % no RS X 8,25 % em Nova Iorque), o IPI (federal) e o ISSQN (municipal), via de regra transferidos ao consumidor final, embutidos no custo de quaisquer produtos e serviços.

Diante desta discrepância de magnitudes, um sistema que de fato estimulasse os pequenos negócios deveria taxar os maiores progressivamente (o que não é feito) e ter tetos de alíquotas bem mais altos. Sei que parte significativa do argumento de que o Custo Brasil é proibitivo para empreendedores se refere à quantidade de tributos, que não é pouca. Todavia, qualquer matriz tributária que permita lucros ilimitados aos grandes às expensas do achatamento dos ganhos dos menores, sejam eles indivíduos ou pequenos negócios, é socialmente injusta, na contramão do advento de uma sociedade auto sustentável e menos desigual. Num mundo perfeito, políticas regulatórias tributárias seriam implementadas com valores de alíquotas móveis, empiricamente ajustados, até que se lograsse algum decrescimento e, consequentemente, melhor distribuição de riqueza.

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Hesitei bastante antes de escrever este libelo em prol da maior taxação dos mais ricos, pois achava que, antes de aludir à discrepância entre, de um lado, a parcimônia na taxação de grandes capitais e, de outro, a implacabilidade na das pequenas economias, deveria proceder a um estudo detalhado da totalidade dos tributos incidentes sobre cada categoria – para o qual, confesso, me faltou persistência e conhecimento econômico/contábil. Deixei, no entanto, este preciosismo de lado (e os cálculos aos economistas) ao me lembrar da recomendação de Steve Fuller, em O Intelectual, de que este deve preferir sempre a abrangência à profundidade. Assim, de pouco importa que grandes capitais paguem, como alegam, impostos demais enquanto sua riqueza continue crescendo em proporções maiores do que a dos pequenos.

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Deixando de lado os atores econômicos em geral para retornarmos ao caso da imprensa, bem como da tese de que pequenos negócios podem focar melhor em atividades fim do que os maiores, temos que, enquanto pequenos veículos (hoje os digitais) podem se voltar melhor e com custos inferiores ao conteúdo (vejam o caso dos sites de notícias); já os maiores, como jornais e revistas impressos e redes e emissoras de rádio e TV, precisam investir pesado em custos tecnológicos de produção e de distribuição. Comparem, por exemplo, os custos de manutenção de um site de notícias (tal qual o que hospeda este blog), que se vale de facilidades da internet e precisa manter, além de recursos humanos,  tão somente software e servidores, muitas vezes licenciados ou terceirizados, com os de jornais, revistas ou emissoras de rádio e TV, que precisam manter também estúdios, transmissores e parques gráficos.

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Pode-se argumentar que sites de notícias mais estruturados sejam não mais do que uma nova forma de broadcasting (i.e., comunicação unidirecional, sem um back channel facilitado) e, neste ponto, não muito diferente de veículos de imprensa tradicionais enquanto menos afeitos à publicização da “voz do leitor/ouvinte”. Até certo ponto. Pois, enquanto o menor número de veículos impressos e estações ou redes de rádio e TV favorece a manutenção de um bias ou de uma versão hegemônica, senão única, dos fatos, amplificada por um “cartel” tácito de interesses comuns (como, por exemplo, a existência de apenas um pequeno número de concessões de frequências de transmissão); a “algaravia” de um ecossistema mais capilarizado de fontes, como é o caso da enorme quantidade de sites existentes, torna muito mais fácil e, por conseguinte, frequente a enunciação de contraditórios.

O broadcasting mais se parece com produtos industrializados oferecidos nas prateleiras, com poucas marcas para cada categoria: é pegar ou largar. Seu consumo é, inquestionavelmente, mais fácil, porquanto acrítico. Narrowcasting, todavia, dá mais trabalho. Exige uma opção mais ativa em relação a um número muito maior de fontes – fragmentando, dir-se-ia, a confiança (ao contrário do que parece, isto é bom !) e responsabilizando mais os usuários por suas escolhas. Para usar da mesma analogia, se trata de produtos mais diversos e customizáveis. Claro está, portanto, na dicotomia broadcasting/narrowcasting, de que lado estamos.

 

Como a peste acelera a agonia do broadcasting

Não é de hoje que a televisão aberta vem dando claros sinais de esgotamento frente a outros meios mais interativos ou, no mínimo, customizáveis. Quando perguntei, tempos atrás, a um de meus filhos qual o sentido dele navegar na web enquanto permanecia diante da TV ligada indiferente à mesma, sua resposta foi rápida e categórica: “é que aqui (no celular) tenho mais opções e maior controle sobre o que quero assistir”.

A grade de programação da TV comercial aberta se consolidou, grosso modo, como um mix de noticiários, telenovelas, reality shows, programas de entrevistas e variedades (geralmente com auditórios), filmes e seriados – estes últimos anteriormente referidos como “enlatados”. Com a pandemia, toda a rede de produção, pelas emissoras, das quatro primeiras categorias  acima colapsou.

Os auditórios foram os primeiros a desaparecer. Cada vez mais passamos a ver repórteres com máscaras e, pouco a pouco, apresentadores e âncoras começaram a transmitir de suas casas. Entrevistas e depoimentos passaram a ser obtidos por meio de videoconferência. Mesmo que alguns telejornais, com cenários e bancadas imponentes e estúdios super povoados,  ainda resistam, o formato está com os dias contados. Comparem, por exemplo, a parafernália envolvida (e diretamente associada ao conceito dos mesmos) em telejornais de abrangência nacional com aquela de seus primos mais pobres, os noticiários locais e regionais, que já aderiram a formatos mais econômicos.

Cabe, ainda, notar que, face ao colapso das estruturas de produção, a TV mergulhou numa profusão de reprises. Não só de telenovelas mas, também, de entrevistas requentadas e, espantosamente, partidas de futebol. Nunca antes acervos televisivos foram tão importantes.

Com tudo isto, os conteúdos veiculados pela TV estão cada vez mais parecidos com o que vemos habitualmente em redes sociais. Com a significativa vantagem, cabe lembrar, de que, em redes sociais (narrowcasting), podemos, ao contrário de na TV (broadcasting), 1) melhor custumizar conteúdos e 2) interagir, se assim o quisermos, com seus transmissores. Não é pouca coisa. Assim como não tem sido pouca a capacidade de rápida reação e adaptação da TV a novos contextos desfavoráveis desde o surgimento da internet. De modo que, diante de inequívocos sinais de mudança, é impossível prever a sobrevivência ou não de grandes conglomerados televisivos

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A TV sempre funcionou, tradicionalmente, em sintonia com valores centralizados. Poucas emissoras. Grandes patrocinadores. Programas tipo “one size fits all”, capazes de captar audiências num vasto território. Neste cenário, chama muita atenção campanhas como VAE (Vamos Ativar o Empreendedorismo), uma ode ao pequeno negócio. Se vingar, uma coisa é certa: empresas individuais ou familiares incentivadas pela supracitada campanha jamais estarão em condições de comprar as caras janelas publicitárias comercializadas por redes concessionárias de TV junto a grandes grupos empresariais.

Talvez a Globo não espere, com uma boa dose de razão, que, em decorrência da provável explosão de pequenos empreendimentos incentivados pelo VAE, seus grandes patrocinadores quebrem. O que denotaria uma disposição da emissora de, na impossibilidade de prever que ventos soprarão na economia, ficar bem com todo mundo, tanto grandes quanto pequenos. Numa posição corporativa, diga-se de passagem, perfeitamente razoável. Como a de empresas que, em eleições, doam para campanhas de candidatos rivais. Mas, como ninguém é bobo, trata de diversificar as fontes de seu capital de custeio. Isto pode ser claramente observado na agressividade com que vem promovendo seriados, nacionais e enlatados, em sua plataforma de streamming (pago) Globoplay. É como se, na incerteza de poder contar, num futuro não muito distante, com seu custeio maciçamente bancado por anunciantes, busque inclinar drasticamente sua matriz de financiamento para  consumidores finais de sua programação, até então acostumados a não pagar nada pelo que assistem na TV aberta.

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Em sua agonia, a TV não esconde a relação ambivalente que mantém com sua grande rival, a internet. Ao mesmo tempo em que tenta, desajeitadamente, assimilar atributos tão afeitos à web quanto estranhos ao broadcasting (como, por exemplo, o arremedo de interatividade das “votações populares” em reality shows), reivindica para si um suposto monopólio da credibilidade, por sua vez apregoada como o calcanhar de Aquiles das mídias sociais. Como se o jornalismo tradicional, e somente ele, fosse capaz de verificar a veracidade do que é veiculado. Ora, é largamente sabido que, na infância da rede, da qual mal saímos, notícias falsas são abundantes – tanto que seu manejo pode facilmente eleger um presidente. Umberto Eco estava coberto de razão quando disse que a internet era habitada por uma legião de idiotas – declaração que lhe custou a acusação de ser um netskeptic.

A suspeição levantada acerca da credibilidade da web é, no entanto, apenas transitória. A rede veio para ficar e, diante de seu avanço inexorável, é cada vez mais necessário que seus usuários dominem uma das habilidades descritas por Howard Rheingold como dentre as competências essenciais à aprendizagem no século 21, a saber, crap detection (detecção de lixo). O exemplo clássico de Rheingold é uma biografia falsa, caluniosa, de Martin Luther King, que desponta em primeiro lugar numa consulta ao Google, plantada num site mantido pela Ku Klux Klan.

Acreditar no monopólio de empresas jornalísticas sobre a competência para a verificação de fatos é mais ou menos como defender a volta de datilógrafos ou, ainda, de revisores em salas de redação. Pois novas tecnologias implicam em novas responsabilidades (que me perdõe o Homem Aranha pela apropriação).

Mas não é só por meio de notícias falsas que se pode distorcer a realidade. Padrões de omissão e ênfase também dão conta de imprimir claramente em mensagens posições ideológicas assumidas por seus enunciantes – e, neste ponto, veículos de imprensa são tão parciais quanto quaisquer perfis proselitistas nas redes sociais das quais tanto desdenham. Vejam, por exemplo, o contraste entre, de um lado, a ampla cobertura dada pela Globo a ações filantrópicas corporativas e, de outro, seu absoluto silêncio sobre as repetidas doações de alimentos pelo MST a populações mais afetadas. A imparcialidade jornalística é um mito.

O marketing da bondade

Serei breve.

Não é nova a máxima de que é na crise que mais se lucra. Em tempos de coronavírus, não poderia ser diferente. Desde que o Jornal Nacional mudou drasticamente suas diretrizes editoriais para incluir em seu noticiário os nomes de empresas que, em última análise, fazem o que o governo deveria fazer mas não faz, grandes anunciantes passaram a desfrutar de um espaço tremendamente mais privilegiado do que os intervalos comerciais, até pouco tempo exclusivamente disponíveis, para agregar à sua imagem institucional a de grandes benfeitores públicos. As peças publicitárias que vem na esteira das notícias de doações de bilhões e milhões ao sistema de saúde são igualmente comoventes.

Neste contexto, tenho que concordar com um amigo que afirmou, dias atrás, que, face ao lucro auferido no ano passado por um grande banco – a saber, mais que 26 bilhões de reais – sua outrossim impressionante doação de 1 bilhão (que lidera o rol de grandes benfeitores da Globo) representa muito pouco. Já hoje outro amigo bem observou que as notórias e recorrentes doações de alimentos pelo MST são sistematicamente ignoradas pelo supracitado noticiário. Como se jamais tivessem existido. É claro, pois, estarmos diante de um padrão de omissão e ênfase. Dá prá acreditar que o mesmo seja obra do acaso ?

Acho que não. Da mesma forma que não acredito que a ausência, até agora, na grande mídia do já bem conhecido nas redes sociais manifesto holandês em prol do decrescimento (assunto de um próximo post, necessariamente mais longo) seja de modo algum gratuita. Pois basta lembrar que o bravo manifesto identifica a publicidade como um dos principais setores econômicos que precisam encolher radicalmente. Ora, é a mesma publicidade que sustenta o sistema vigente de mídia comercial. Por isto, nunca foi tão verdadeiro o título da canção A revolução não será televisionada, de Gil Scott-Heron, que comentava a agitação social e política nos EUA nos anos 60 e 70.

Sei que soa “do contra” e mesmo antipático levantar objeções ao aparente desapego ao lucro de empresas que desinteressadamente equipam UTIs e doam cestas básicas e equipamentos de proteção individual. É claro que, em momentos como este, toda ajuda é sempre bem-vinda. Notem, no entanto, que tais medidas paliativas (que tentam, como já disse acima, substituir o descaso governamental) seriam muito mais amplas se tais empresas simplesmente tivessem seus lucros devidamente taxados e, com isto, governos passassem a dispor de recursos suficientes para fazer sua parte.  Temos, então, que a farsa do marketing da crise não passa de bandidos fazendo pose de mocinhos.

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PS. Depois de escrever o desabafo acima e ao procurar na web uma imagem ilustrativa para o post (sempre faço isto desde que me disseram que posts com imagens tem maior audiência), formulei a seguinte a teoria conspiratória:

se (premissa 1) o quadro do JN se chama Solidariedade S/A e não (como poderia muito bem, por analogia, se chamar) Solidariedade LTDA.; e

se (premissa 2) sociedades anônimas (SAs) costumam ser bem maiores do que aquelas por cotas de responsabilidade limitada (LTDAs),

subentende-se (conclusão) que o espaço se destina, idealmente, a informes de grandes empresas – como é o caso das que  têm cacife para anunciar no horário nobre da emissora.

Por que a publicidade é inútil e nociva

Quando o assunto é publicidade, dois consensos quase absolutos vem à tona. O primeiro, compartilhado por anunciantes, profissionais e empresas envolvidos na pujante indústria da publicidade, é o de que ela é absolutamente necessária ao sucesso comercial de qualquer produto ou serviço.  O segundo, verificado entre leitores de jornais, espectadores de rádio e TV e, mais recentemente, usuários de internet, é que ela é totalmente inútil. Um estorvo. Uma interrupção tão irritante quanto frequente no fluxo de conteúdo de qualquer meio de comunicação hegemônico. Tanto é assim que é prática comum à mídia disponibilizar a usuários modalidades mais caras de assinatura de seus serviços diferenciadas pela ausência de anúncios.

Ainda assim, todo usuário de mídia comercial, mesmo detestando ser bombardeado por anúncios, reconhece a publicidade como um mal necessário. Que, sem ela, não teríamos jornais, revistas, rádio, TV e tantas facilidades viabilizadas pela internet. De onde vem tal naturalização ? Como chegamos a isto ?

A história da publicidade (em países lusófonos confundida com a propaganda) se perde na antiguidade. A modalidade na qual estamos interessados – a saber, a comercial, realizada por meio de anúncios pagos colados ao conteúdo de meios impressos, de broadcasting (rádio e TV) ou internet – surgiu menos de 200 anos depois que Gutenberg inventou a prensa mecânica. Mais exatamente, com o anúncio de um livro publicado num jornal inglês de 1625. Desde então, a coisa só cresceu. Em 1841, surgiu em Filadélfia (EUA) uma das primeiras agências relevantes de publicidade do mundo. A publicidade 2.0, aquela nos meios de broadcasting, surgiu pouco depois da invenção do rádio por Marconi. A grande transformação seguinte – que, por conveniência, designaremos por publicidade 3.0 – surgiu com a internet, obrigando, várias gerações depois, publicitários a reinventarem novamente seu ofício. Temos, então, que, enquanto a publicidade 1.0 vende espaço, a 2.0 vende tempo e a 3.0, acessos.

Com raízes tão antigas e aprofundadas no tecido social, é compreensível que a ideia de publicidade comercial como mal necessário à existência de toda mídia desejável esteja tão naturalizada entre a maioria. Quando nascemos, os anúncios já estão ali, por todos os lados. Como as cidades em que vivemos, as escolas que frequentamos ou o ar que respiramos. Assim quer acreditar o espírito acrítico.

Só que não é ser obrigatoriamente assim. Ora, tudo o que é conhecido e experimentado por um certo tempo constitui terreno fértil para o pragmatismo, limitando o pensamento utópico. Desta forma, a história humana é repleta de casos em que práticas e sistemas que deixam muito a desejar se perpetuam tão somente por já terem funcionado, ainda que precariamente, por um tempo prolongado. O exemplo mais ridículo que já vi desta deficiência de raciocínio é a distinção que Olavo de Carvalho faz entre os pensamentos de direita e de esquerda. Vale a pena conferir (entre 1m30s e 2m30s).

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Uma das teclas mais marteladas por David Graeber no estupendo Bulllshit Jobs: a Theory, do qual não me canso de falar, é que o capitalismo cria empregos desnecessários. Dentre as ocupações que considera, mais do que inúteis, nocivas à sociedade, se destacam as carreiras financeiras, jurídicas, imobiliárias e, como não poderia deixar de ser, publicitárias. É claro que há um critério para uma categorização tão bombástica: Graeber considera úteis ocupações que produzem riqueza e inúteis aquelas que só transferem riqueza de um dono para outro, ressaltando que as últimas são, via de regra, melhor remuneradas.

A publicidade é socialmente nociva (exceto, é claro, para anunciantes e publicitários) por dois motivos: é supérflua e inflacionária. Supérflua por que, numa era de buscas, não mais precisamos dela para, como apregoa desesperadamente a indústria do anúncio, ter informações sobre o que queremos adquirir. Mais: dados comparativos sobre quaisquer produtos tendem a ser muito mais confiáveis em sites neutros, dedicados à orientação de consumidores, e engenhos de busca do que em peças publicitárias cuja índole é, por definição, enaltecer vantagens e ocultar ou minimizar deficiências (isto não é uma verdade oculta mas, ao contrário, um fator de competência descaradamente ostentado pelos publicitários mais agressivos).

Inflacionária por que tudo o que é anunciado tem seu preço significativamente majorado pelo acréscimo ao preço final do custo da publicidade, que não costuma ser pouco, principalmente em meios de broadcasting (isto está mudando um pouco na internet, onde entradas publicitárias se tornaram acessíveis a anunciantes de qualquer porte).

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Deixando rapidamente de lado nosso foco principal, que é a publicidade comercial, cabe a ressalva de que a propaganda política é tão ou mais nociva do que a anterior, já que seu êxito (i.e., a persuasão de um maior número de eleitores), que afeta, para o bem ou para o mal, a totalidade das unidades políticas governadas, é fortemente determinado pelo poder econômico. Então, não se trata de discutir, como hoje é feito, se a propaganda eleitoral deve ser custeada por políticos ou contribuintes, mas de abolir totalmente a mesma, com a justiça eleitoral dedicando seu colossal potencial computacional à informar eleitores sobre candidatos por meio de sites abrangentes e isonômicos. Com programas ao invés de slogans. Dados verificáveis ao invés de fake news. E sem, é claro, os escandalosos fundos eleitoral e partidário.

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Tão natural como a publicidade acoplada aos meios de comunicação é a ideia de que estados sejam responsáveis pela garantia de bens que, por sua natureza essencial à condição humana, não devem ser deixados ao sabor da concorrência entre provedores privados. Há um consenso praticamente universal de que saúde, educação e segurança pertençam a esta categoria. Diferentes estados de bem estar social abordam de modos distintos a inclusão também de alimentação, moradia e cultura nesta relação de direitos. Além disto, a extensão da responsabilidade do estado sobre os mesmos é objeto de conflito entre a direita e a esquerda.

Sempre que a esquerda quer abarcar sobre o manto protetor do estado segmentos ou partes de segmentos explorados pelo capital empreendedor, a direita chia. Como toda indústria, a publicidade também desfruta da proteção dos guardiões do liberalismo. De modo que meras  insinuações, como as acima, quanto ao caráter anti-ecológico ou inflacionário da publicidade, são imediatamente refutadas com argumentos do tipo ” pensem em todas as comodidades informacionais que perderíamos não fosse a mídia facultada pela propaganda “.  Ora, tal sorte de argumento esbarra na falácia do pressuposto de Carvalho, supracitado, segundo o qual só aquilo que já foi experimentado é possível e confiável. Sob tal premissa, não haveria raciocínio hipotético nem tampouco ciência.

Fazendo, então, pouco caso do coro indignado com este exercício hipotético, necessário ao pensamento utópico, suponhamos, apenas por um instante, que jornais, revistas, emissoras de rádio e TV e serviços disponibilizados pela internet (não gosto do termo aplicativos, que outrora já foram chamados de programas), fossem reconhecidos como de real utilidade pública e, como tais, garantidos a todo cidadão pelo estado, como a saúde, a educação e a segurança supostamente já são.

Aqui, posso ouvir, em meio a acusações de ingenuidade, as invectivas de sempre sobre a precariedade da televisão pública. É preciso, então, colocar os devidos pingos nos is. É claro e perfeitamente esperado que, no Brasil, onde a teledifusão pública é sistematicamente sucateada, emissoras estatais não consigam competir com as comerciais pela geração de conteúdo atraente. Pois a TV Cultura seria, sem dúvida, diferente se dispusesse do mesmo orçamento da Globo. Muito se fala mal da gestão estatal como principal responsável pela eventual falta de qualidade de emissoras públicas quando, na verdade, não se pode comparar resultados da gestão da escassez com aqueles da gestão da abundância. Logo, para se falar da qualidade da radiodifusão pública é preciso, antes, se falar dos excelentes conteúdos gerados e veiculados pela televisão pública europeia. Ou pela BBC. Ou pela PBS nos EUA.

Então, da mesma forma que meios de broadcasting públicos de qualidade já são, há muito tempo, uma realidade em países do hemisfério norte, é razoável se esperar que a internet, ainda em sua infância, venha um dia a ser reconhecida (pois já é de fato) como patrimônio inalienável da condição humana e, como tal, disponibilizada gratuitamente, com suas funcionalidades mais fundamentais (aí incluídos os aplicativos hegemônicos, consagrados pelo uso), a todo cidadão

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Mas sejamos, por hora, práticos. Com o que está aí, seria muito mais fácil reformar a propaganda eleitoral do que a publicidade comercial. Não podemos, no entanto, ser ingênuos a ponto de esperar que tal reforma parta de políticos. Os meios ? Discussão e organização civil. Só então, talvez, o imaginário popular consiga romper a barreira da naturalização e finalmente se dar conta de que a publicidade, mais do que inútil, é nociva.

Por que a Globo não diz nada sobre Glen Greenwald ?

O problema das teorias conspiratórias é que, muitas vezes, elas podem estar certas. Verdades incômodas são frequentemente tachadas por grupos de interesse como teorias conspiratórias. Assim, defensores do crescimento contínuo sempre negarão o aquecimento global, bem como apóstatas do bom-mocismo empreendedor sempre negarão a existência da obsolescência programada. Paciência. Falando nela: se tiverem paciência em me acompanhar por estas linhas, estarão ao par de mais uma teoria conspiratória  atendendo a, pelo menos, um pré-requisito básico das mesmas – a saber, o da plausibilidade – desta vez sobre a absoluta ausência do nome do herói da hora, Glen Greenwald, nos noticiários televisivos da Rede Globo.

Para decepção de muitos que me seguem, já declarei, tempos atrás, gostar de acompanhar o que é veiculado pela Rede Globo como forma de mais facilmente entender como funciona a retórica do campo adversário. Chega a ser, por vezes, didático. No presente caso do vazamento de mensagens trocadas entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, é flagrante a exclusão do nome de Greenwald dos noticiosos da rede – os quais se referem, de modo impessoal, tão somente ao The Intercept.

Tal comportamento é ostensivamente excepcional, já que

em minha timeline, o nome de Greenwald é um dos que mais aparece, como responsável que foi pela divulgação das conversas comprometedoras entre um então juiz e um dos procuradores de uma operação da Polícia Federal então julgada pelo primeiro – promiscuidade condenada por grande parte dos especialistas jurídicos ouvidos sobre o imbroglio;

ao mesmo tempo, noticiários da emissora, em meio à farta citação de trechos de notas expedidas por órgãos de classe de juízes, procuradores e advogados, bem como do vídeo (!) rapidamente divulgado por Dallagnol (Bolsonaro está fazendo escola; além disto, até pouco tempo atrás, era considerada, no mínimo, indecorosa a voluntariedade de membros do judiciário para estar na mídia), nada informam sobre aquele que, por tudo o que sabemos, protagonizou o vazamento; e

noutros lugares, responsáveis por tais atos heroicos em nome da transparência, tais como Assange, Snowden, o bravo soldado Manning ou, em tempos mais remotos, Deep Throat, são imediatamente alçados à condição de celebridades.

Mas Greenwald não comparece apenas à minha timeline, predominantemente povoada por espíritos de esquerda, exceto por um punhado de direitistas empedernidos que não excluo tão somente por prover o necessário contraste para prevenir que eu me isole numa bolha discursiva mas que, neste caso, nem chegam a falar de Greenwald. Para ouvir o pessoal do #deportaGreenwald, preciso bisbilhotar em grupos de WhatsApp, pelo menos para saber que, além daqueles que o tem como herói, há também quem o considere um vilão.

Por que, então, a mídia hegemônica, que se vangloria de ser imparcial, não apresenta a maior celebridade do momento, tanto seu lado A como aquele tido por muitos como B ? Elementar: por que não pode – e aqui estamos diante de minha teoria conspiratória (desejo, sinceramente, saber se ela tem algum fundamento).

Grande parte da retórica de setores incomodados pelos vazamentos concentram seu ataques a Greenwald, seja por falta de argumentos ou de imaginação, no ódio homofóbico. É precisamente aí que está a possível explicação para a exclusão do whistleblower dos noticiários da Globo, tão flagrante como se houvesse uma ordem explícita neste sentido. Já que a mesma vem, recentemente, em muitas janelas de sua programação (novelas, talk shows, programas esportivos, etc.), promovendo a inclusão LGBT. Com efeito, gays e transexuais vem desempenhando um protagonismo cada vez maior nas novelas da emissora, o que é indiscutivelmente bom – só que não proferindo, é claro, nestes casos, controlados pelos roteiristas, nenhuma verdade politicamente incômoda.

O problema começa quando um homossexual notório (e notável !) adquire celebridade instantânea ao revelar conversas capazes de comprometer um status quo francamente homofóbico. Como, então, condenar o vazamento da escuta supostamente ilegal de Greenwald (pilar da retórica de grupos que pedem sua cabeça) preservando, ao mesmo tempo, a legitimidade de sua opção sexual (clara diretriz editorial da emissora que, não obstante, se constitui num “desvio” fortemente atacado pelos mesmos grupos) ? Ante o dilema, é notória a opção abraçada pela Globo: nada dizer sobre o responsável pelos vazamentos. Como se os mesmos tivessem vindo de outro planeta.

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Disclaimer: este post foi escrito depois da exibição de um telejornal (Hoje, às 13:20 de 11/6/2019) no qual Glen Greenwald foi absolutamente ignorado. Pode ser que, a qualquer momento (quando for inevitável), uma nova diretriz editorial o traga, como merece, para o centro dos acontecimentos.