A neutralidade da(s) rede(s)

A neutralidade da rede é um princípio que norteia o protocolo da internet, garantindo que qualquer conteúdo nela trafegue com a mesma velocidade, de acordo com a ordem de chegada, independentemente de quanto está sendo pago e por quem para que a informação nela viaje. Como numa fila única de transplantes.

Como todo princípio isonômico, há quem a ele se oponha. Os argumentos contra a neutralidade variam. Desde os mais comerciais, como garantir a quem pague mais o direito de suas informações circularem mais rápido e/ou eficientemente, como no caso de aplicações que demandam maior largura de banda, tais como plataformas de streaming; até aqueles supostamente mais “altruístas”, como o de que a neutralidade seria um obstáculo à inovação tecnológica.

Uma das propostas mais criativas é a existência não de uma rede única, neutra, mas de várias redes concomitantemente: uma neutra, universalmente acessível, para emails, blogs e sites menos acessados, e tantas outras quanto forem necessárias com facilidades para grandes usuários com necessidades mais específicas.

Assim, tendo surgido como uma condição praticamente utópica, que igualava grandes e pequenos no que tange ao tratamento recebido pela rede, a neutralidade logo se tornou objeto de debate. Tanto que possui nuances diferenciadas em cada país. No Brasil, a internet é neutra, regulamentada pelo Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014).

Para um entendimento mais abrangente e detalhado da neutralidade da rede, vale a pena consultar a Wikipedia – a qual, ainda que por vezes seja bem sumária, ao menos sobre este assunto é altamente informativa. E neutra.

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Mas não é sobre isto que vim falar. Perto de tudo o que encontrei facilmente sobre o tema, discorrer mais seria como chover no molhado.

Com certeza notaram a licença poética, por assim dizer, do título do post, com os “(s)” depois das duas últimas palavras. A ambiguidade se deve à referência tanto à internet como um todo, com seu controverso ideal isonômico, como, ao mesmo tempo, às redes sociais que nelas residem – as quais, por sua vez, de neutras não tem nada. Ou, ao menos, é nisto que, do alto de minha teoria conspiratória, acredito. Como tento deixar claro adiante.

Redes sociais residem em plataformas (sites) que residem na internet. Como todo site, tem seus proprietários. E, salvo notáveis exceções de sites colaborativos (wikis) não lucrativos que atendem a interesses públicos – como, por exemplo, a wikipedia ou a IMSLP (maior repositório online de partituras musicais), plataformas de redes sociais são, via de regra, startups que deram certo, com alto valor de mercado e que remuneram seus proprietários, sejam eles indivíduos ou acionistas, com polpudos lucros advindos da exibição de publicidade (mais comumente) ou venda de assinaturas para versões ad free.

Até aí tudo bem. Já banalizamos a ideia de que o mercado está aí para quem dele saiba tirar proveito. Todo o problema começa com o algoritmo de distribuição – o qual, numa rede, seleciona quais postagens são (e, o que mais nos interessa, não são) mostradas a cada usuário. Num mundo perfeito, algoritmos seriam transparentes (como, sei lá, a programação em código aberto), configuráveis às necessidades e preferências de cada um. Mas não. Funcionam como caixas pretas, sobre cuja ação podemos não mais do que tecer suposições. Teorias conspiratórias inclusive, como aquela adiante.

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Antes, porém, de prosseguir, cabe um esclarecimento: minha experiência primária se restringe a uma única rede social, a saber, o facebook (não consigo acessar com a devida frequência (que dirá nela interagir) mais do que uma). Não descarto, portanto, a existência de outras redes mais transparentes no tratamento da informação que nelas circula.

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Algoritmos de distribuição existem por que o grande volume de informação (acho que o nome disso é metadados) torna proibitiva a análise por humanos de todos os conteúdos que circulam em redes sociais. Tecnologias de inteligência artificial para reconhecimento de imagem já permitem, no entanto, atribuir automaticamente um viés moral ou ideológico a cada postagem ilustrada. Amigos já tomaram ganchos por postarem imagens com seios, bundas ou genitálias. Pouco importa se forem “nús artisticos”. Experimentem, por exemplo, postar uma reprodução de A Origem do Mundo (BRINCADEIRA, NÃO FAÇAM ISTO !).

Também é fácil para um algoritmo identificar e, conforme o caso, impulsionar ou ocultar imagens contendo símbolos tais como, por exemplo, uma estrela de Davi ou uma bandeira palestina. Com texto, no entanto, a coisa é um pouco mais complicada. É difícil apontar o matiz ideológico de algo escrito exclusivamente pelas simples presença ou contagem de palavras. Da seguinte maneira. Mesmo que vocábulos como capitalismo ou Marx apareçam uma ou mais vezes num texto, nada podemos afirmar sobre o viés ideológico do que foi escrito, i.e., se o texto é apologético ou condenatório em relação aos mesmos.

Ou, ao menos, assim eu supunha até poucos dias atrás. Quando manifestei meu ceticismo sobre o estado da arte da interpretação automática de textos, um de meus filhos simplesmente perguntou “– Conheces o ChatGPT ?” Talvez ele tenha razão. Se uma IA já consegue criar um texto convincente a ponto de passar por uma formulação humana, o caminho reverso (i.e., entender algo escrito por um humano) não deve ser, afinal, tão difícil. E, neste caso, vale atualizar a proposta por Harari, em The Economist, de uma legislação que obrigue aplicações que utilizem IA a informarem seus usuários sobre isto; para outra que também obrigue plataformas de redes sociais que utilizem algoritmos de distribuição seletivos que informem seus usuários sobre o funcionamento dos mesmos. Talvez como seu código fonte, ainda não compilado, comentado para inteligibilidade universal. Sonhar não custa nada.

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Desde lá de cima, venho prometendo relatar a experiência, involuntária, que funcionou como um sinal de alerta para o fato de redes sociais não serem tão neutras como era de se esperar. Não sou ingênuo, é claro. Sempre suspeitei. Até sabia. Mas os fatos abaixo narrados só aguçaram minha percepção da coisa.

Até poucos anos atrás, sempre era informado pelo facebook de novas postagens pelos perfis de Evonomics (Holanda) e The Guardian (Inglaterra), duas publicações que prezo sobremaneira. Por vezes até traduzi matérias suas neste blog. Só que, ultimamente, notei que há muito não vinho sendo informado pelo face de atualizações destes perfis. Cheguei até a pensar que Evonomics tivesse saído do ar (The Guardian não, por ser um jornal londrino bem tradicional). Preocupado, verifiquei que os bravos holandeses continuam firmes e fortes, tanto no site como no facebook.

Comentando com meu amigo Fábio o ocorrido, ele teceu a hipótese de que, se eu curtisse as postagens dos dois, o face voltaria a me mostrá-las. Entrei, então, em ambos os perfis e curti por atacado. Esperei. Nada. Aprendi, com isto, que, doravante, teria que visitar os perfis (ou os próprios sites) se quisesse saber de novas atualizações, não mais podendo contar com o facebook para tanto. Problema resolvido. A curiosidade, todavia, persistiu.

De início, pensei que o face estivesse ocultando postagens de grandes publicações. Afinal, já tinha ouvido falar que o site “não gosta” de postagens com links que direcionem a navegação para fora da plataforma. Faria sentido. Só que não: continuo a receber normalmente atualizações de The Economist e The New Yorker, entre outros.

Foi então que me dei conta: os dois perfis que sumiam de meu feed são notórios por um viés que, se não escancaradamente de esquerda, não pode de modo algum ser definido como de direita. Ok, The Guardian pode ser classificado como de esquerda. Mas Evonomics publica textos que, de alguma forma, vislumbram possibilidades para “consertar” a iniquidade inerente ao capitalismo.

Já disse, acima, que acho difícil (mas não improvável) que um algoritmo identifique o teor ideológico de um texto para, com base nisto, decidir por sua evidência ou ocultação. Bem mais provável é que publicações maciçamente visualizadas sejam marcadas (talvez até por humanos) como desejáveis ou não no feed de usuários de redes sociais, segundo a matriz ideológica de seus proprietários.

Pouco importa, então, se postagens (ou, mais provavelmente, perfis) são impulsionados ou ocultos com base em julgamento humano ou exclusivamente algorítmico. O que fica patente é que, como já foi dito, de neutro o facebook (e provavelmente outras redes) não tem nada. CQD.

O Despertar de Tudo, de David Graeber e David Wengrow

Disclaimer: se quiser saber mais sobre o livro que dá título a este texto e não tiver vontade nem tampouco paciência para se deter em divagações narcisísticas do autor de mais esta anti-resenha, avance a leitura diretamente para depois dos próximos três asteriscos (* * *).

Por que, afinal, anti-resenha ? Pois não é a primeira vez nem deve ser a última em que me refiro a um comentário sobre um livro lido desta forma. Penso ser por se tratar, antes de uma sinopse seguida por (ou intercalada a) uma apreciação crítica, de uma crônica do processo de leitura do mesmo. Ritmo da leitura (lento X rápido). Associações suscitadas pela mesma. Coisas assim.

Agora, se não tiver vontade de ler nem este preâmbulo nem a resenha que o segue, não perca mais tempo. Corra a uma livraria e compre (ou, mais provavelmente, encomende) o livro. É satisfação garantida. Tanto que me atrevo a lançar aqui, publicamente, o mesmo desafio, quase uma admoestação, proposto por Charlles Campos, anos atrás, ao me recomendar Colapso, de Jared Diamond, a saber, que, se acaso eu não gostasse, me compraria de pronto o volume que eu houvera adquirido por indicação sua. Convincente, não ? Tanto que comprei o livro. E gostei. Mas por que, no presente caso, tamanha autoconfiança ? Por que tenho certeza de que não se arrependerão. A propósito: o próprio Diamond é citado por Graeber e Wengrow em O Despertar de Tudo. Mais de uma vez.

Adquiri meu exemplar de O Despertar de Tudo na Bamboletras, por ocasião da palestra de um seu seus autores no Fronteiras do Pensamento que, para minha grande lástima, perdi. Antes, já havia resenhado o estupendo Bullshit Jobs – a Theory (ainda inédito em português) de Graeber, além de traduzir um artigo seu para Strike e Evonomics e uma entrevista para The Economist.

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David Graeber, antropólogo, e David Wengrow, arqueólogo, ambos autoridades reconhecidas em suas respectivas áreas, se lançaram, quase que como uma brincadeira, ao propósito de reescrever, em parceria, a história da humanidade. Uma ideia ambiciosa. Presunçosa, até – ainda que, como verão, só em aparência. Depois de uma colaboração que se estendeu por mais de 10 anos, publicaram O Despertar de Tudo.

A própria dimensão do volume resultante já dá uma ideia da envergadura do projeto. São ca. 700 páginas, 150 das quais só de notas e índice onomástico. Só que uma leitura que se apresenta assim, de um modo quase intimidante, vai se revelando pouco a pouco como fluida e convidativa. Seus autores intercalam um longo relato de dados de pesquisa que, outrossim, poderia parecer um tanto enfadonho, com argumentações brilhantes, críticas mordazes a seus próprios campos de conhecimento e, não raro, um humor refinadíssimo. Em suma, uma viagem intelectual das mais gratificantes que alguém poderia empreender.

Toda a narrativa é permeada por extensas citações de outros autores (e explanações sobre o pensamento dos mesmos), tanto daqueles com os quais os autores concordam como, o que é mais importante, daqueles de quem discordam – o que é mais raro e, portanto, louvável.

Com o avançar da leitura, algo que vai ficando cada vez mais patente para quem ainda não sabe ou desconfia é o quanto a “grande narrativa da história” está calcada sobre um número absurdamente pequeno de casos, não por acaso aqueles que melhor corroboram pontos de vista ostentados e/ou defendidos por seus  narradores contumazes. O quê ? Então quer dizer que a história não é neutra ? Lamento, aqui, se estou dando algum spoiler, mas acho bom você apertar o botão de reset. Mas devagar. Vamos por partes.

Como eu ia dizendo, com o avançar da leitura vão caindo por terra algumas noções românticas ou extremamente simplificadas que temos, por exemplo, da arqueologia. Esqueçam coisas como tumbas de faraós, saqueadores e Indiana Jones. Antes de ler o livro, eu não tinha ideia (me desculpem a ignorância) da enorme profusão que há de sítios arqueológicos ao redor de todo o globo. Nos inteiramos, também, que o conhecimento adquirido nesta área nos últimos 50 anos é muito maior do que o que se sabia, por exemplo, no início do século 20.

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Mas sobre o que é o livro, afinal ? Para responder a isto, nada melhor do que começarmos pelo final. Mais exatamente, por sua última frase: “Agora sabemos que estamos diante de mitos.”

O Despertar de Tudo é sobre mitos. Mais especificamente, sobre aqueles que sustentam a falsa sensação de inevitabilidade histórica. Para chegar a eles, os autores partem do pressuposto de estarmos num mundo altamente insatisfatório (pelo menos um deles é anarquista) e da consequente pergunta: “Como chegamos a isto ?”. Impelidos por esta “mola mestra”, embarcam numa jornada indagatória acerca de vários mitos, dentre os quais

  • a pouca credibilidade de filósofos indígenas brilhantes contemporâneos ao Iluminismo, já que, de acordo com o ethos dominante da época, toda profundidade intelectual seria privilégio de europeus, estando indígenas condenados, portanto, a um status de inocentes selvagens – até por que a existência de tais mentes brilhantes indígenas é geralmente fundamentada sobre relatos de colonizadores, geralmente religiosos, os quais estariam, por sua vez, irremediavelmente “contaminados” pelo tipo de narrativa que seus conterrâneos contemporâneos teriam gostado de ouvir. Neste contexto, não é por acaso que grandes filósofos indígenas desacreditados, como Kondiaronk, tenham sido justamente aqueles que dirigiram as críticas mais severas à forma de organização da sociedade europeia tais como o dinheiro e a dominação do mais fraco pelo mais forte;
  • a noção, formulada pela primeira vez em 1751 por A. R. J. Turgot e depois perpetuada por Adam Smith, de que as sociedades humanas, influenciadas pelo progresso tecnológico, passavam necessariamente por 4 etapas evolutivas – a saber, de caçadores-coletores, pastoril, agrícola e civilização mercantil urbana – correspondendo a última ao estágio mais avançado;
  • a ideia de que a propriedade privada foi consequência direta da revolução agrícola, seja pelo cercamento de terras ou pela manipulação de excedentes. Ora, pesquisas arqueológicas recentes revelam que, por um período bastante prolongado, de ca. 1000 anos (período, portanto, demasiado extenso para qualquer “revolução”), a humanidade flertou com a ideia do cultivo extensivo, hesitando entre o mesmo e um plantio lúdico, só para subsistência, e, no caso de alguns grupamentos humanos, rejeitou deliberadamente a agricultura extensiva;
  • a ideia de que a deliberação sobre formas de organização social é um fato bem recente na história humana, peculiar aos últimos séculos. Hoje sabemos que povos antigos, anteriores à escrita, já tomavam decisões políticas quanto às próprias formas de organização social;
  • a ideia de que governos centralizados e eventualmente estados se tornam obrigatoriamente necessários sempre que uma sociedade ultrapasse um certo tamanho. Ou, noutras palavras, estados são antes de tudo um problema de escala. Mas não é bem assim. Em todos os continentes, são muitos os vestígios de cidades e assentamentos pré-históricos de grande porte voluntariamente administrados por meio de formas de auto-gestão. Nestes casos, decisões eram tomadas por conselhos comunitários ao invés de por reis ou outras formas centralizadas de governo.

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Como bons cientistas, os autores adoram categorizações. Dois grupos recorrentes em todo o relato são as 3 liberdades humanas fundamentais, que são

  • a de ir e vir,
  • a de desobedecer ordens recebidas e
  • a de experimentar outras formas de organização social,

e os 3 pré-requisitos para a existência de um estado, que são

  • o monopólio do uso (ou ameaça de uso) da força ou da violência como forma de coerção,
  • o controle sobre a informação (burocracia) e
  • o poder carismático.

As 3 últimas categorias são usadas para caracterizar estados incipientes como estados de primeira ordem (aos quais faltam dois dos pré-requisitos acima) ou de segunda ordem (aos quais faltam um deles).

Quanto às três liberdades fundamentais, os autores afirmam que, enquanto a primeira e a segunda (i.e., a de ir e vir e a de desobedecer) não existem nos estados verdadeiros, nos acostumamos com (banalizamos) a ideia de que a terceira (i.e., a de experimentar outras formas de organização social) não apenas não existe como também nunca existiu.

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Em todo o relato, são muitas as evidências de sociedades pré-históricas, pré-colombianas ou mesmo posteriores à invasão do continente americano pelos europeus, de índole igualitária, que se auto-geriam repudiando deliberadamente a existência de reis ou qualquer forma de governo imposta de cima para baixo – não havendo, por outro lado, qualquer evidência de uma linha evolutiva obrigatória que culmine na existência de estados ou qualquer forma de poder centralizado. Ao final, os autores se perguntam aonde foi que erramos, deixando a questão em aberto.

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Curiosidade: por mais de uma vez ao longo do livro, Graeber & Wengrow se referem à conquista do continente americano pelos europeus, a partir de pouco mais de 500 anos, como “invasão”. O que nos remete de pronto à presença de franceses e holandeses no nordeste brasileiro, as quais nos acostumamos, desde os bancos escolares, a chamar de “invasões” (mais ou menos como o golpe de 1964 foi por muito tempo chamado de revolução) – o que sugere que o termo “invasão” nada mais é do que uma conquista que (ao contrário da invasão da América pela Europa, no dizer dos autores) não deu certo, i.e., na qual os “invasores” foram expulsos. Senão, seriam conhecidos até hoje como “colonizadores”. Noutras palavras, não existe linguagem ideologicamente neutra.

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Talvez a razão pela qual mais detesto resenhas é por que elas são, por definição, reducionistas. Especialmente neste caso, o livro é muito mais do que tudo acima. Então, na impossibilidade de destacar um único trecho como o mais representativo do mesmo, transcrevo, abaixo, a dedicatória – que, por alguma razão, me fez pensar no que Bill Evans sentiu por ocasião da morte prematura e inesperada de Scott LaFaro.

David Wolfe Graeber morreu aos 59 anos de idade, em 2 de setembro de 2020, apenas 3 semanas depois de terminarmos a escrita deste livro, que nos absorvera por mais de 10 anos. Começou como uma distração de nossas obrigações acadêmicas mais “sérias”: uma experiência, quase um jogo, em que um antropólogo e um arqueólogo tentavam reconstruir aquele tipo de diálogo grandioso sobre a história da humanidade que costumava ser tão comum nos nossos campos, mas agora com dados científicos modernos. Não havia regras nem prazos. Escrevíamos como e quando tínhamos vontade, o que veio a se tornar cada vez mais uma atividade diária. Nos últimos anos antes de concluirmos, e conforme o projeto ganhava impulso, não era raro conversarmos 2 ou 3 vezes por dia. Com frequência esquecíamos quem tinha aparecido com essa ou aquela ideia, com esse ou aquele novo conjunto de fatos e exemplos; ia tudo para “o arquivo”, que logo ultrapassou o âmbito de um livro. O resultado não é uma colcha de retalhos, mas uma autêntica síntese. Percebíamos os nossos estilos de pensamento e escrita convergindo pouco a pouco até se tornarem um fluxo único. Percebendo que não queríamos encerrar a jornada intelectual em que tínhamos embarcado, e que muitos conceitos apresentados neste livro se fortaleceriam caso fossem mais desenvolvidos e exemplificados, planejamos escrever as continuações: nada menos que 3. Mas este primeiro volume precisava terminar em algum ponto, e em 6 de agosto, às 21h18, David Graeber anunciou com uma grandiloquência típica do Twitter (e citando vagamente Jim Morrison), que estava pronto: “O meu cérebro se sente atingido por uma entorpecedora surpresa”. Chegamos ao fim como havíamos começado, com diálogo e uma constante troca de rascunhos, lendo, partilhando e discutindo as mesmas fontes, não raro madrugada adentro. David era muito mais do que um antropólogo. Era um intelectual público e ativista de renome internacional, que procurou viver de acordo com seus ideais de libertação e de justiça social, dando esperança aos oprimidos e inspirando inúmeros outros a seguirem esse exemplo. Este livro é dedicado à cara memória de David Graeber (1961-2020) e, como era do seu desejo, à memória de seus pais, Ruth Rubinstein Graeber (1917-2006) e Kenneth Graeber (1914-96). Que descansem juntos e em paz.

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A Tirania do Mérito (2020), de Michael Sandel

Muitas vezes escolho livros por causa de seus títulos e subtítulos. Gosto de nomes provocativos, que contrariem o senso comum, como, por exemplo, Bullshit Jobs – A Theory, The Slow Professor – Challenging the Culture of Speed in the Academy, ou O Intelectual – a Força Positiva do Pensamento Negativo. No último caso, comprovadamente um subtítulo que não fazia parte do original mas que foi agregado à tradução por um editor com um senso apurado de marketing.

Com A Tirania do Mérito, não foi diferente. Afinal, o que poderia haver de errado com a meritocracia, a qual nos acostumamos a saudar como um dos baluartes das sociedades mais justas, tanto reais como utópicas ? Admito que custei um pouco a concordar com o ponto de vista do autor, praticamente só depois da conclusão da leitura de quase todo o texto – sem dúvida uma virtude do mesmo, pois não há nada mais decepcionante numa argumentação do que percebermos muito cedo onde seu autor quer chegar com ela.

Michael Sandel é fisósofo, professor de Harvard, onde ministra o curso Justiça, que também é o nome de seu livro mais conhecido. Em A Tirania do Mérito, disseca a trajetória triunfante da meritocracia na sociedade e na política norte-americanas, década por década, até a desilusão das classes trabalhadoras com aquilo que chama de credencialismo (ao que voltaremos adiante), que culminou com a retórica populista que elegeu Donald Trump.

O livro é repleto de referências a outros autores e fartos dados numéricos, invariavelmente com atribuição de autoria. Como um bom texto acadêmico, só que de leitura convidativa (reader friendly, eu diria), cada página levando naturalmente à seguinte. Um dos tipos de estudo a que Sandel mais recorre é a analise de discursos presidenciais, se valendo da contagem de palavras (tipo Obama disse, em todos os seus discursos, n vezes isto ou aquilo) para delas depreender ênfases da retórica de cada mandatário.

(como advogado do diabo, eu poderia objetar tal tipo de evidência alegando que um uso maior desta ou daquela palavra poderia estar mais ligado ao nível de redundância ou, ao contrário, de síntese de cada discurso. Mas a própria redundância é em si um traço da linguagem publicitária e todo discurso político é, por excelência, propaganda. Além disso, textos sucintos não costumam ser os mais persuasivos. Por tudo isto, entendo que Sandel esteja plenamente investido de correção metodológica)

Antes de se debruçar sobre a história recente da nação mais poderosa do mundo, o autor regride alguns séculos para auscultar a virtude do mérito em teólogos como Martinho Lutero ou Tomás de Aquino. É aqui que formula, ou melhor, menciona, um dos mais interessantes paradoxos. A polêmica diz respeito à promessa de salvação. Mais exatamente, sobre o que podemos ou não fazer em vida para garanti-la.

Por um lado, há quem acredite que a salvação seja aleatória, i.e., que ela pode se estender a quem não a mereça enquanto quem pratica o bem e vive segundo o cânone cristão é condenado à danação eterna por um simples capricho divino (isto, inclusive, oferece uma explicação teologicamente satisfatória para catástrofes naturais e outros eventos trágicos duros de aceitar sob o domínio da infinita bondade de deus).

Já, por outro lado, há também quem pense que o ser humano pode investir em sua futura salvação praticando o bem durante sua existência terrena. Só que esta “versão” enfraquece a onipotência divina, já que, ao “comprar” um lugar no céu por meio de atos aqui na terra, o homem estaria usurpando a deus o controle sobre seu destino.

(já notaram como os debates teológicos são sempre os mais interessantes ? Não é à toa que Richard Dawkins, guru mor dos ateus, dedica grande parte de seu livro Deus, Um Delírio à análise das provas da existência e da não existência de deus. Então, não dá prá simplesmente se descartar a priori qualquer debate teológico como carente de qualquer sentido. Tenho para mim que toda argumentação deste tipo pode ser validada (ou não) com a simples definição prévia de deus como uma entidade imaginária (ou, como diz Dawkins, sobrenatural). Mais ou menos como a formulação de um número, variável ou partícula sem comprovação experimental possível que ajude a resolver problemas e equações nos campos da matemática ou da física)

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Sandel considera o clima meritocrático que se tornou hegemônico a partir dos anos 50 e 60 algo bem recente na educação superior norte-americana. Antes, as três grandes da Ivy League (Harvard, Princeton e Yale) não mais do que perpetuavam uma elite hereditária que praticamente excluía mulheres, negros e judeus. Foi James Bryant Connant, reitor de Harvard que, a partir da década de 40, inspirou e contribuiu para implementar um sistema de acesso que garantisse a todos a igualdade de oportunidade – sistema, este, designado por Sandel como máquina de triagem.

Antes, porém, de narrar a ascensão do mérito com principal vetor de validação nos mundos norte-americano e global, Sandel se detém longamente no estudo do acesso à educação superior. Faz isto para clarear o significado de credencialismo, que é como chama a primazia de credenciais educacionais na hora de atribuir aos vencedores os melhores empregos e salários. Segundo ele, é a falta de credenciais universitárias que permite ao sistema econômico vigente dizer às massas trabalhadoras que não merecem estar no topo por não terem perseguido a melhor educação possível. Ou, noutras palavras, uma forma fácil de lideranças lavarem suas mãos em relação à crescente desigualdade. Mas não coloquemos o carro na frente dos bois, retornando, por hora, à questão universitária e deixando a arrogância e o ressentimento decorrentes do mérito para mais adiante.

Talvez em nenhum outro lugar como nos EUA a hierarquia entre instituições de ensino superior seja tão exacerbada. A expressão Ivy League, originalmente usada para designar agremiações desportivas de oito universidades, passou também a ser usada para se referir ao grupo de universidades cujos diplomas valem mais do que outros em se tratando de obter uma boa posição no mercado de trabalho. As grandes estrelas da Ivy League são as universidades de Harvard, Yale, Princeton. E, ainda que não pertençam, formalmente, a esta elite, a Universidade de Stanford e o MIT gozam do mesmo status.

Sandel identifica três modos de acesso a universidades de prestígio (presumo que a outras também), aos quais chama de portas da frente, lateral e dos fundos. A entrada pela porta da frente se dá por meio de desempenho em exames democraticamente aplicados; a porta dos fundos é reservada aos filhos de doadores muito ricos, numa versão exemplar da popular máxima pagando bem, que mal tem ?; já a porta lateral é a grande brecha através da qual a índole meritocrática do acesso (ou por que se sabe muito, ou por que se tem muito) é francamente corrompida. Tanto que merece um parágrafo totalmente dedicado a ela.

A porta lateral. Existe um mercado muito aquecido para o acesso facilitado às grandes universidades norte-americanas. Operadores que subornam avaliadores e/ou falsificam portfólios acadêmicos e desportivos (sim, pois algumas universidades tem vagas e bolsas reservadas para atletas de elite que venham a integrar suas equipes) e, é claro, cobram muito bem por isto. Sandel cita um escândalo recente em que um desses agentes amealhou uma pequena fortuna obtendo acesso para rebentos medíocres de famílias abastadas a universidades da Ivy League. Técnicos esportivos encheram seus bolsos e um deles, de uma equipe universitária de vela, ganhou notoriedade por usar toda a propina recebida para equipar o time. Com alguma flexibilidade semântica, se pode dizer que, sem sentir vergonha alguma, utilizou a porta lateral com a mesma lógica da porta dos fundos.

Mas as falhas deste sistema supostamente meritocrático não se resumem a facilidades de acesso. Mesmo quem entra pela porta da frente pode recorrer a um exército de profissionais (conselheiros educacionais) cujos serviços ampliam as chances em exames de acesso não fraudados. E aqui, mais uma vez, quem tem mais leva vantagem. Quem tem mais dinheiro e/ou tempo para estudar. É preciso um certo cuidado ao se comparar sistemas educacionais como o norte-americano com o brasileiro, pois apresentam diferentes peculiaridades. Neste caso, no entanto, é razoável se dizer que, mesmo aqui, um estudante de classe média com tempo de sobra para estudar e pais que possam pagar um cursinho pré-vestibular (por vezes mais caro do que boas escolas particulares) costuma ter mais chances num vestibular ou ENEM do que aquele que trabalha para contribuir com a renda familiar e cursa o ensino médio no turno da noite.

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Torno aqui à pergunta inicial, que atiçou minha curiosidade pelo livro, a saber, o que poderia, afinal, haver de errado com a meritocracia ?. Pela corrupção, descrita por Sandel, nos mecanismos de acesso ao ensino superior, poderíamos inferir que o problema com a meritocracia seria meramente o de que, face a alguns obstáculos, explícitos ou não, ela raramente ou jamais se realiza plenamente.

(isto faz lembrar as célebres falhas de mercado (monopólios, informações privilegiadas, etc.), por causa das quais, para seus defensores, os mercados dificilmente realizam com perfeição sua vocação de árbitros supremos)

Só que, para Sandel, o buraco é mais embaixo. Logo no início da obra, diz que um dos principais problemas da meritocracia é o de que vencedores geralmente acreditam que chegaram ao topo por mérito próprio, desconsiderando fatores importantes como vantagens nas condições de largada ou mesmo a sorte que tiveram. Como consequência, passam a desprezar, ainda que veladamente, os perdedores, os quais consideram desprovidos de talentos e/ou que não se esforçaram suficientemente. Tão martelada é esta narrativa que, com o passar do tempo, os próprios perdedores passam a nela acreditar. É desta forma que, para Sandel, meritocracia gera arrogância e humilhação (e, logo, ressentimento). Também para ele, foi predominantemente este ressentimento contra as elites credenciadas que nutriu, entre trabalhadores, a candidatura e a eleição de Donald Trump.

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Mas basta, por hora, de análises e denúncias. Face a tudo isto, o que tem a dizer Sandel de propositivo para combater o problema que tão bem delineia ? Para começar a falar disto, devo trazer aqui uma informação que deliberadamente omiti até agora, a saber, o subtítulo (original) o que aconteceu com o bem comum ?

São várias as medidas sugeridas mas não implementadas. Uma das primeiras que aparece, para fazer frente à máquina de triagem que gera tanta arrogância e humilhação, seria a criação de uma loteria acadêmica, que distribuísse as vagas existentes exclusivamente por meio de sorteio. Imagino o que devem estar pensando. Logo que li, também fiquei chocado. Para um liberal (como adoradores do mercado gostam se ser chamados), isto soa como a abolição de toda propriedade privada. Mas pensando melhor, até que, para alguém que vê o mérito como origem de tantos vícios, faria muito sentido. Ou, pelo menos, contribuiria para restaurar um senso de gratidão (pelo que faz alguém chegar ao topo) que, segundo Sandel, foi perdido nalgum momento ao longo do caminho.

Também são sugeridas medidas de natureza fiscal. Antes de apresentá-las, é preciso dizer que Sandel reconhece a recuperação da dignidade do trabalho como uma prioridade absoluta, já que a mesma vem caindo aceleradamente, em proporção inversa ao crescimento da desigualdade. A desaceleração e inversão dessas tendências passa inevitavelmente por medidas fiscais, tanto na arrecadação como na distribuição dos recursos arrecadados.

É sabido por todos que, não só nos EUA, a taxação sobre o trabalho é muito maior do que aquela sobre o capital acumulado. A recuperação da dignidade do trabalho passa obrigatoriamente pela inversão desta matriz tributária. É aqui que entusiastas do acúmulo de capital dirão que, ora, capital investido gera emprego; outros podem até invocar a Curva de Lafer (mazela da globalização que não vou explicar aqui). Bullshit. A indústria que o capital acumulado mais movimenta é a das finanças.

Finanças. Segundo Sandel, se trata de uma das indústrias mais improdutivas, senão a mais improdutiva dentre todas. Pois capital só gera mais capital, com juros escorchantes cobrados de setores que efetivamente produzem alguma coisa.

(não tenho os dados. Mas Sandel tem. Uma das virtudes de seu livro é ser fartamente documentado, estando todas as fontes lá prá quem quiser conferir)

Então, nada mais justo do que setores improdutivos como as finanças pagarem mais impostos do que os produtivos como o trabalho. Muito mais. Numa espécie de taxação moralizante, como no caso dos “impostos sobre o vício”, de cobra mais impostos de setores como os de tabaco, bebidas alcoólicas e jogos de azar. Não é preciso ter muita informação para se supor, por exemplo, que, no Brasil, o recém descoberto filão das bets opere sob a proteção de um manto de complacência fiscal (pois, senão, não teria crescido tanto).

Outra urgência levantada é a da redistribuição do montante arrecadado. Nos EUA, no passado recente cresceram os recursos repassados a instituições privadas de ensino superior (para custeio da máquina de triagem) enquanto caíram aqueles alocados, por exemplo, à saúde pública. Não quero encher este post de números mas, para quem quiser conhecer, estão todos no livro.

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Tenho essa mania de resenhar quase tudo o que leio. Pode ser um modo de validação de minhas escolhas ? Pode. Mas prefiro acreditar que anseio por compartilhar.

Penso igual a alguns autores que leio (estes, obviamente mais bem informados do que eu). A outros, não. A alguns, não sei: ainda é cedo para dizer. A Tirania do Mérito pertence a esta terceira categoria. Sem que considere, de imediato, um livro fascinante, é, sem dúvida, um grande livro. Bem escrito. Bem documentado. E, sobretudo, que leva a pensar. Eis o ponto: não é preciso concordar com Sandel em tudo (a tal loteria acadêmica, por exemplo, é meio forte até prá mim), desde que se perceba o quadro que ele tão bem descreve.

Blues eleitoral (ii): por que derrotas da esquerda nas urnas me entristecem tanto

Por que tenho filhos. Para entender melhor esta afirmação, tão lacônica, é preciso, antes, embarcar numa regressão ao passado. Não a um passado distante. Basta, para tanto, retrocedermos uns 50 anos, ao tempo de minha infância e juventude.

Quando eu era criança, brincava na rua. Jogava bola e taco com amigos em terrenos baldios. Quando jovem, explorava a cidade, a pé ou de ônibus, sem grandes riscos. Hoje, vivemos um crescente processo de condominização. Nossas crianças brincam em espaços protegidos, cercados por grades de ferro e cercas elétricas e vigiados por câmeras de segurança, e estudam em escolas particulares cujo acesso é guardado por leões de chácara. O comércio de rua é cada vez mais substituído por shoppings, protegidos por forte aparato de segurança, onde se pode comprar tranquilamente sem ser importunado, longe da vista de excluídos que, por sua vez, são banidos para fora de nosso campo visual nesses ambientes assépticos, segregados. Dos cinemas de rua, então, nem é preciso falar.

Com todos esses indicadores, só não vê quem não quer que, na última metade de século, a fratura social só aumentou. E se hoje ainda é possível se viver dentro da bolha de inclusão, é só por que a moral religiosa (a recompensa pós-morte) e as forças da lei, seja por meio de uma polícia cada vez mais capenga ou de empresas de segurança e milícias privadas cada vez mais fortes, ainda funcionam como um fator repressivo de dissuasão em relação a anseios insurgentes.

Mas toda conformidade tem um limite. E chegará o dia, no qual a desigualdade atinja um nível inaceitável para a maioria, em que aqueles fora do cinturão de miséria hão de se rebelar. Será o Grande Levante. Nesse dia, não adiantará você dizer que, mesmo tendo carro, casa própria e comida para sua família, você não pertence a uma elite abastada e gananciosa. A fúria popular se estenderá igualmente a quem quer que ostente qualquer coisa que seja interpretada como um sinal de riqueza, com as massas miseráveis submetendo a todos a uma justiça sumária, sem direito a contraditórios ou ampla defesa. Será o colapso de todas as instituições que hoje sustentam, ainda que precariamente, os privilégios de alguns.

Meritocracia ? Bullshit. Se galgamos, no mundo, posições de vantagem, tais se devem, primordialmente, a diferenças nas condições iniciais, tais como heranças ou acesso ao topo da pirâmide educacional. Sei. Sempre há o caso do miserável que logrou, a muito custo, estudar e ser alguém na vida. Mas isto, longe de ser a regra, é uma exceção que, sempre que descoberta, é glamourizada. A TV adora essas coisas. É a célebre história, vivida por Juliana Paes, da boleira de rua que vira dona de uma rede de confeitarias. Não que histórias assim não existam. Mas não é absolutamente o caso da imensa maioria, que não pode ser acusada de falta de criatividade nem tampouco de força de vontade. É a grande falácia do empreendedorismo ao alcance de todos.

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Sempre que eleições se aproximam, começam nas redes sociais debates acalorados sobre quais candidatos mentem mais ou alicerçam suas candidaturas sobre falsas promessas. Numa dessas trocas de farpas, alguém disse, muito apropriadamente, que políticos em campanha são, antes de tudo, atores representando a si mesmos como personagens. Tal é a mais pura verdade, independentemente de viés ideológico.

Concordei de pronto e acrescentei que, por isto, numa eleição presto pouca ou nenhuma atenção a promessas e programas de cada candidato, me atendo, antes, em identificar qual deles se afina mais com ideais tais como, de um lado, o lucro, o crescimento, a desregulamentação e o estado mínimo ou, de outro, o combate à desigualdade. Ou seja, a velha dicotomia entre direita e esquerda que, ainda que muitos queiram ultrapassada, nunca foi tão atual. A partir disto, e exclusivamente disto, escolho meus candidatos.

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Se eu não tivesse filhos nem tampouco ligasse para o futuro da humanidade, pensando bem pragmaticamente poderia até escolher políticos que defendessem um matriz ideológica que mantivesse, pelas poucas décadas de vida que me restam, privilégios amealhados até aqui. Mas depois que a gente tem filhos, a busca de um mundo melhor para eles ou para seus filhos se torna um imperativo, quase uma obsessão. Espero com todas as minhas forças que eles nunca tenham que passar pelo Grande Levante. Consoante a isto, voto sempre o mais à esquerda que me é possível.

Como votei no último domingo

Passado o pleito (ao menos o primeiro turno) e, portanto, já sem risco de cometer proselitismo, abro meu voto. Votei, é claro, na Melchionna para prefeita e, decidindo na última hora, no Matheus Gomes para vereador. Por três razões: ele é negro, jovem e pobre. Há tempos já havia decidido votar em candidatos do PSOL por ser o partido mais à esquerda que conheço. Se, na última hora, converti o meu voto, por sugestão (solicitada) de meu filho Pedro, para o Matheus, foi por entender que ele, com os três atributos supracitados, estaria mais imune aos vícios da experiência parlamentar.

É claro que, antes de decidir, tratei de conhecer um pouco de sua plataforma, lida por meu filho no celular enquanto nos dirigíamos às zonas eleitorais. Mas programas de candidatos são todos muito bonitos e parecidos entre si – respeitado, é claro, o viés ideológico. Noutras palavras, sempre haverá miríades de candidatos (ouvi dizer que nunca houve tantos como neste ano) dispostos a defender um ideário mais à esquerda ou à direita, dependendo da inclinação de cada eleitor. Só que, como camisetas e bandeiras de torcidas num grenal, todos os discursos dentro de uma mesma parte do espectro político se assemelham.

O que me passou pela cabeça, no caminho da urna, é que mais importante não são as intenções explícitas de cada candidato, mas sua história pregressa. Uma vez eleitos, parlamentares não tem tantas oportunidades como projetam nos discursos eleitorais de promover mudanças. Ficam mais ou menos restritos aos comandos de votação de seus respectivos partidos. Até podem, vez que outra, proferir da tribuna discursos inflamados que, no entanto, pouco afetam as intenções de voto de terceiros, já alinhados, por “contrato”, com diretrizes partidárias. Com sorte, redigirão, cada um, dois ou três projetos de lei durante seus mandatos. Então, privilegiei, na hora de votar, quem achei menos familiarizado com a abjeta forma tradicional de se fazer política (acordos, conchavos e atenção aos lobbies) e, portanto, menos propenso a trair as aspirações daqueles que representa, tão carentes de uma voz capaz de fazer valer seus anseios nas leis que regem o mundo compartilhado por jovens e velhos, negros e brancos ou pobres e ricos.

As análises eleitorais. Ouvi de tudo. Da esmagadora derrota do PT ao fracasso retumbante do bolsonarismo, que literalmente tirou da disputa todo candidato chancelado pelo presidente. O que mais me impressionou, todavia, foi a grande asneira de que “o eleitorado, moderado, preferiu a experiência aos extremismos”. Bullshit. Ao menos em sua câmara de vereadores, Porto Alegre escolheu uma renovação radical, expulsando conhecidos políticos profissionais mais escaldados, com excessão, talvez, apenas de Mônica Leal, Cezar Schirmer ou Idenir Cecchim.

Fiquei feliz com o resultado, devo admitir. Tanto com o PSOL ter feito mais vereadores do que outros partidos como com o crescimento da bancada negra. Auspicioso. Somente hoje, baixada a poeira das análises, fui às redes sociais para conhecer um pouco melhor meu candidato. Gostei do que vi. A começar pelos “amigos em comum”, pessoas cuja inteligência política respeito e admiro. Mas do que mais gostei foi encontrar logo, sem muito esforço, entre suas palavras, a expressão “mudança radical”. Que a rotina e as tentações da vida parlamentar não arrefeçam seu ânimo !

Blues eleitoral

Às vésperas das eleições municipais, o desânimo se abate sobre mim. Sorrio, resignado, sempre que ouço o batidíssimo bordão da grande “festa da democracia”, da qual só percebo lixo nas ruas e na mídia – pasmem, até nas sociais ! A sensação é a de já ter visto este filme antes. Muitas vezes.

Não falo, evidentemente, do sistema eleitoral, que vem se aperfeiçoando a cada pleito. Prevenindo fraudes e facilitando a vida do eleitor. Sem sombra de dúvida, a Justiça Eleitoral brasileira faz um ótimo trabalho. Minha descrença é no sistema político em si. Por mais convincente que seja o discurso de alguns candidatos, uma vez eleitos se encastelam em palácios de governo e câmaras legislativas, aceitando privilégios e se distanciando cada vez mais dos reais anseios daqueles que os elegem. Na retórica de campanha, o eleitor é deus. Depois, quem manda são os lobistas, cujas “verbas de persuasão” extrapolam, por vezes, os já polpudos vencimentos parlamentares.

Façam um exercício simples. Imaginem se a tão apregoada Reforma Política fosse realizada exclusivamente por emendas populares. Ou até uma constituinte exclusiva. Sem entrar em detalhes, é possível supor que a “carta” resultante seria bem diferente do que hora é proposto por deputados e senadores.

Mas é claro que só este ranço não resolve nada. Antes, porém, de dizer algo mais “propositivo” (lá vem ele de novo com aquela conversa de democracia direta…), não há como não falar de algumas impressões de campanha que, de um modo ou de outro, contribuem para meu desânimo.

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Em meio à sujeira dos espaços públicos (visual e sonora) e invasão do privado, talvez no maior orçamento publicitário que se conheça, certos signos se destacam. A fotografia dos candidatos, por exemplo. Não há como não rir dos esforços de artistas gráficos que tentam, em vão, acomodar numa mesma imagem fotos de duplas (candidatos e seus vices) tiradas em circunstâncias diferentes, como a emular as raras aparições simultâneas dos mesmos em eventos de campanha, como comícios (ainda existem ?) e afins. Nestes caso, sequer se dão ao trabalho de utilizar a mesma câmera com a mesma regulagem nem as mesmas condições de iluminação.

Falei disto há muitos anos, a propósito da foto oficial da chapa de Dilma e Temer, na qual a cor, o brilho e o contraste eram radicalmente diferente nas fotos dos dois candidatos. Desde lá, pouco mudou. Para falar só de candidatos vencedores, observem a imagem de Manuela com Rossetto menor em segundo plano. Como um papagaio de pirata ao ombro (um clássico da iconografia eleitoral, a sublinhar a hierarquia entre os dois). Tudo bem. As fotos dos dois são mais parecidas entre si do que na imagem de Dilma e Temer, na qual a foto da primeira é mais difusa do que a do último. Mas e a luz ? Em que raio de estúdio estavam para serem iluminados um pela esquerda e o outro pela direita ? Tal resultado seria difícil, senão impossível, mesmo para os melhores diretores de fotografia. Ok, deve ser dito, a bem da verdade, que tal resultado seria possível com com a utilização de fachos mais estreitos de uma luz mais “dura”, como no teatro. Só que a suavidade dos rostos, obtida através de uma luz mais difusa, publicitária, acaba denunciando a montagem. Coisas assim alimentam a suposição de que candidatos de coligações raramente, se é que alguma vez, se encontram antes dos pleitos. Como em casamentos arranjados onde os noivos só se conhecem na noite de núpcias.

Também se popularizaram nesta campanha os estandartes verticais com um dos cantos superiores em curva, ou wind banners, montados sobre uma vara vergada que mantém a bandeira esticada (e, portanto, legível) mesmo sob condições de vento adversas.

Bandeiras são um signo eleitoral que remonta aos grandes comícios e à existência de uma militância. Mesmo que tremulassem ao vento, era possível identificar à distância a “maré vermelha” do PT. Como nas torcidas de um grenal, nas quais sempre reconhecemos o time pela cor hegemônica. Hoje, candidatos não tem qualquer vergonha de chamar de militantes os trabalhadores temporários que contratam para distribuir santinhos e agitar bandeiras em cruzamentos mais movimentados. Alguém acredita quando falam em “nossa militância” ? Ou escolhe candidatos em razão deste tipo de publicidade ?

Não creio. Apenas sei que, na horda de bandeiras multicoloridas que tremulam nos semáforos, não consigo identificar os candidatos, cujos nome se tornam ilegíveis em razão da ação do vento, que conspira contra as campanhas políticas em nosso estado nesta época do ano. Tal fato é, sem dúvida, o principal responsável pela enorme proliferação dos wind banners mencionados logo acima.

Outro signo recorrente destas eleições é que candidatos, em sua publicidade visual, frequentemente omitem (ou mencionam apenas em letras miúdas) as legendas partidárias pelas quais concorrem. Estariam tentando descolar suas imagens do descrédito que se abateu sobre os partidos como um todo ? Talvez. E, neste caso, isto é bom. Pois, se quisermos mudar o sistema político, é preciso atacar seu flanco mais vulnerável – que são, hoje, os partidos.

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Neste ano me aconteceu algo inédito. Fui procurado numa rede social por um candidato a vereador que me solicitou um número de WhatsApp pelo qual pudesse me enviar projetos (leia-se material de campanha). Caí na asneira de assentir. Desde então, recebo repetidos convites para participar de assembleias populares, a fim de elencar prioridades a serem defendidas em seu pretendido mandato legislativo. Até aí tudo bem: suas ideias são boas, principalmente a de um “mandato popular”. Só que, já tendo um candidato de minha preferência, lhe enviei o link para minha mais recente diatribe contra a representação parlamentar. Algo que, supunha, seria capaz de dissuadir qualquer um de qualquer aspiração a cooptar meu voto. Só que, pasmem, ele continuou, num ritmo frenético e automático, a me enviar sua propaganda. O que só me leva a acreditar que sequer leu o que escrevi.

Que lição tiro disso ? Simples. Por melhor que sejam as intenções de qualquer candidato, é humanamente impossível a qualquer um conhecer, que dirá representar, o interesse uma maioria anônima. Se eleitos, ainda que continuem, por algum tempo, virtuosos e incorruptíveis, fatalmente sucumbirão ao assédio daqueles que frequentam corredores de câmaras legislativas em busca de uma oportunidade para influenciar quem delibera sobre nossos desígnios. Assim é o sistema: ainda que candidatos precisem de eleitores para chegar lá, o que prevalece, ao fim, é a vontade dos lobbies.

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Sempre sonhando, consigo, no entanto, perceber uma tênue luz no fim do túnel. Neste pleito, em razão da peste, a justiça eleitoral finalmente começa a testar um protocolo para votação online, com gigantes da indústria da informação concorrendo para oferecer o melhor sistema. Há muito preconizado por defensores da democracia direta, tal expediente ainda é, no campo das coisas práticas, testadas e aprovadas, algo inédito. E há razões para isto, principalmente no que tange à segurança.

Ora, se confiamos na internet para realizar compras, efetuar operações bancárias ou mesmo nos comunicarmos com alguma privacidade, por que santo raio eleições não poderiam se beneficiar das mesmas tecnologias ? Então, se a coisa ainda não deslanchou, é evidente que tal fato não se deve tanto a reservas quanto a questões de segurança mas, ao invés, muito mais à falta de vontade política. Ou seja: há muito que já podemos, mas alguns ainda não querem.

Campanhas publicitárias dependem de bons slogans. Como, por exemplo, a proposição anti-lobby de Lawrence Lessig, chamada Fix Congress Now. No caso da democracia direta, a maioria concorda com suas vantagens mas ainda hesita diante de argumentos dos que hoje se beneficiam da representação, os quais, por sua vez, não defendem a necessidade (indefensável) da própria existência mas, ao contrário, atacam possíveis falhas de propostas promissoras que sequer foram testadas. De tal modo que toda campanha em prol da democracia direta deveria se abrigar sob o guarda-chuva do slogan “Por que não ?” ou, simplesmente (não é de hoje que me acusam de anglicismo – mas o que fazer se o idioma do norte é, na maioria das vezes, adoravelmente mais compacto ?), “Why not ?”.

Por uma democracia direta (ii): de como o lobby é nocivo à democracia e sobre como podemos acabar com ele

Eleições que se aproximam: hora de tornar a remoer certas ideias. Não que, a curto prazo, adiante alguma coisa. Afinal, com os discursos afinados e as campanhas nas ruas, a sorte já está há muito lançada. A descolonização do imaginário é uma tarefa lenta, que rejeita todo imediatismo. Ainda assim, mesmo que alguém não viva para ver qualquer resultado, não deixa de valer a pena se esforços forem vistos sob uma perspectiva mais ampla, numa escala de tempo mais dilatada do que a dos breves mandatos eletivos.

Falo, aqui, da banalização ou aceitação acrítica de algumas instituições hoje defendidas por políticos e poderosos tais como, por exemplo, o lobby ou o fundo eleitoral. O cidadão comum não costuma se perguntar por que precisamos de representantes legislativos nem de que maneira o lobby, que querem até regular e legalizar, é nocivo à própria democracia. Basta que algum engravatado, provavelmente bacharel em direito, profira algo em favor do status quo, para que pareça um “entendido” em qualquer assunto, ao menos muito além do que o simples eleitor, que, portanto, passa a acreditar naquilo como uma verdade inquestionável. É a síndrome do “você sabe com quem está falando ?”, conhecida em lógica como argumento de autoridade, antítese da falácia do envenenamento do poço.

O lobby se constitui, na origem, como um desequilíbrio no jogo democrático na medida em que permite a determinados indivíduos ou grupos de interesse minoritários influenciar, quase sempre com recursos financeiros (como propinas ou doações de campanha), em decisões de legisladores (senadores, deputados ou vereadores) ou ações de executivos (presidentes, governadores, prefeitos, ministros e secretários). Por meio do lobby, interessados devidamente articulados podem facilmente “molhar o bolso” de legisladores e governantes ou seus prepostos para obter vantagens (das quais legislações protetivas, isenções fiscais e licitações fraudulentas são apenas alguns exemplos), apesar da franca oposição da maioria dos cidadãos às vantagens concedidas.

Tradicionalmente, o lobby é sorrateiro. Age às escondidas, à margem do poder. Encontros com lobistas não pertencem à agenda pública dos políticos, acontecendo, antes, dentro de sua esfera privada. Com o tempo, a figura do lobista entrou definitivamente no jargão das câmaras de representantes, onde circulam anonimamente. O bom lobista não dá entrevistas. Foge das câmeras, microfones e holofotes. Se não achar um jeito de “acessar” determinado senador ou deputado, facilmente encontrará outro. Projetos de regulamentação do lobby (a nosso ver uma contradição por si só), que visam facilitar o “trabalho” destes intermediários da corrupção, são, portanto, uma afronta à inteligência da sociedade, que assiste impotente à sua naturalização por parte de quem dele se beneficia.

Por tais razões, defensores do lobby sustentam o mito de que ele é inevitável. Felizmente, há controvérsias. Numa das mais célebres iniciativas para conter a mazela, Lawrence Lessig, professor de direito de Harvard, ativo defensor da neutralidade e da liberdade da internet, criador da licança Creative Commons, propôs o movimento “Fix Congress Now”, que limita doações de campanha a 100 dólares por cidadão – nivelando, com isto, o poder de influência de eleitores individuais com o de grandes corporações.

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Contra os lobbies, pensamos em outra vacina. Se trata da democracia direta, já defendida por aqui em textos anteriores (como aqui ou aqui) – os quais, no entanto, se concentravam tão somente na vasta economia para os cofres públicos que a abolição das obsoletas câmeras de representantes traria (compreensivelmente, tal hipótese é taxada com horror pela maioria dos senadores, deputados e vereadores como “uma grande ameaça à democracia”).

Hoje, quero convidá-los a refletir sobre como grupos de interesse economicamente poderosos, ainda que minoritários, poderiam interferir em decisões políticas num contexto, utópico, em que todo e qualquer cidadão pudesse deliberar diretamente sobre o que bem lhe aprouvesse. Quero acreditar que os grupos econômicos supracitados enfrentariam bem mais dificuldades para convencer milhões de cidadãos a votarem de acordo com seus interesses do que umas poucas centenas ou dezenas de representantes legislativos. Desta forma, a democracia direta esvaziaria a instituição escandalosamente indecente do lobby de qualquer sentido.

Pensem nisto !

Por uma democracia direta (i): para que servem representantes parlamentares hoje ?

Num referendo histórico, a maioria da população italiana (estimada entre 64 e 69% de seus eleitores) aprovou ontem a redução em 1/3 de seu parlamento, que tem hoje 914 cadeiras (630 deputados e 315 senadores) e passará a ter 600 (400 deputados e 200 senadores) depois do próximo pleito, em 2023.

A decisão sinaliza claramente a insatisfação popular com dois fatos há muito percebidos mas raramente enfrentados, a saber,

  • o alto custo de manutenção de câmaras legislativas numerosas e, em última instância,
  • a obsolescência da representação parlamentar como hoje a conhecemos.

Tal sorte de reforma política, conquanto necessária, é sempre de difícil implementação, principalmente por depender, para sua aprovação, de mudanças constitucionais que devem, necessariamente, ter a anuência dos atuais representantes – os quais, via de regra, resistem a cortar a própria carne. Não vou aqui me debruçar sobre a questão do custo proibitivo do inchaço da representação parlamentar, já suficientemente difundido e esmiuçado. Prefiro, ao invés, me concentrar no problema bem menos verbalizado da obsolescência dos representantes num mundo conectado.

A principal objeção levantada contra a redução do parlamento italiano é a de que a medida prejudicaria a democracia ao facilitar a ação de lobbies (leia-se que lobistas gastarão menos tendo que forrar menos bolsos). O argumento tende a emplacar ante a ingenuidade de parte significativa da população que, persuadida pelo senso comum difundido pelo discurso oficial, tende a acreditar que representantes parlamentares são, de fato, necessários.

Trata-se, aqui, de uma grande meia-verdade. Pois a atual obsolescência da representação é talvez a mais incômoda das verdades – guardada, portanto, como um segredo por todos aqueles que se beneficiam de mandatos legislativos eletivos. Para se entender melhor como chegamos a isto, é preciso retroceder no tempo para examinar as coisas historicamente.

Representantes legislativos já foram, é claro, necessários em épocas em que os meios de comunicação entre partes distantes de territórios que constituíssem uma mesma unidade política eram precários. Não se podia, por exemplo, contar apenas com documentos impressos a viajar longas distâncias, ou mesmo com a pouca “largura de banda” das comunicações telegráficas, para dar conta da troca maciça de informação entre governantes e governados necessária para se discutir e votar leis que às quais todos deveriam se submeter. Tanto isto foi verdade que a figura do representante se naturalizou como necessária no imaginário político popular.

Hoje, com os meios tecnológicos disponíveis, já seria possível consultar cada eleitor sobre cada lei em discussão ou votação. Não estou dizendo que seria fácil; apenas que seria possível. Chamamos a isto de democracia direta. Que depende, no entanto, para sua implementação, de uma vontade política que não podemos esperar de quaisquer representantes eleitos, uma vez que terão que optar pela extinção de seus próprios cargos.

Pensem num título eleitoral eletrônico, com todas as votações parlamentares facultativamente abertas a todos os cidadãos interessados. É claro que isto implicaria numa justiça eleitoral muito mais ativa, trabalhando continuamente, e não, ao contrário de como funciona hoje, sazonalmente, se fazendo mais presente de tempos em tempos, de acordo com o calendário de pleitos. Talvez implicasse, também, num corpo técnico maior do que o atual. E por que não ? Mais técnicos eleitorais e menos representantes ? Por que isto seria, necessariamente, pior para a democracia ?

A instrumentação tecnológica. Um impasse ? Dificilmente. Não é preciso ser nenhum especialista em TI para inferir, por analogia, que a implementação de sondagens eleitorais frequentes e maciças não representaria nenhum desafio técnico para quem já administra, por exemplo, cartões de crédito, contas telefônicas ou, mais recentemente, redes sociais – acostumadas, estas últimas, a sondagens maciças de usuários, só que em favor de anunciantes. Talvez coubesse apenas alguma discussão sobre se a tarefa devesse ser abraçada pelo governo ou, como no caso dos cartórios, pela iniciativa privada. Pano prá manga, enfim, do instigante debate entre estado mínimo ou, de outra forma, regulador e intervencionista.

Descartados, assim, os possíveis entraves à democracia direta mais frequentemente levantados por quem não quer largar o osso – a saber, a falta de tecnologia e recursos humanos, ambos perfeitamente acessíveis uma vez reconhecidas as vantagens do novo sistema – resta apenas a resistência da classe política à ideia, a qual insistirá até o fim na propagação do mito, há muito caduco, de que a representação é essencial à democracia. Por isto, é inútil esperar pela implantação da democracia direta a partir de qualquer reforma política gestada e proposta pelo poder legislativo – sendo, portanto, necessária a mobilização popular em favor da ideia se tivermos alguma esperança de que ela venha, um dia, a vingar.

* * *

Vale a pena, aqui, se ponderar sobre a suposta representatividade de qualquer senador, deputado ou vereador. Um mandato legislativo não é uma procuração. Isto por que, através de uma procuração, delegamos a alguém a responsabilidade de nos representar com poderes específicos mediante o compromisso ético de defender nossos interesses, o que geralmente é feito mediante uma estreita relação de confiança e prestação de contas entre outorgante e outorgado.

Outrossim, pergunto: quando um senador, deputado ou prefeito consulta seus eleitores antes de votar em seu nome ? Eu, pelo menos, nunca fui abordado por qualquer um deles. Desta forma, um mandato legislativo mais se parece com um cheque em branco que pode ser preenchido pelo portador com o valor que bem lhe aprouver ou, ainda, com uma fiança, na qual o fiador empresta sua credibilidade baseado exclusivamente na crença mágica de que sua confiança jamais será traída.

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Há muitos anos venho dizendo a mesma coisa, apenas trocando as palavras, em períodos que antecedem a realização de pleitos eleitorais. Compreensivelmente, políticos jamais se interessaram por abraçar e levar adiante qualquer debate em torno da ideia. Sempre vi a instituição do congresso com suspeição, a reputando como obsoleta e estando, portanto, acostumado a ver taxarem a ideia em si de anti-democrática. Como se um congresso de representantes eleitos fosse, naturalmente, um dos principais sustentáculos da democracia. Se confunde a ideia da extinção de um sistema caro e obsoleto com a intenção de implementar ditaduras. Cientes disto, parlamentares, preocupados com sua permanência, conspiram para sustentar o mito de sua imprescindibilidade.

Trata-se, pois, a democracia direta, assim como a renda básica universal ou o decrescimento, de uma reviravolta cultural necessária para frear o impulso auto-destrutivo das relações humanas e, com ele, do planeta. Então, se você acha que tudo ou parte do que foi dito acima faz algum sentido, discuta. Divulgue. Desafie o senso comum. A Itália acaba de dar um passo importante. Que sirva de exemplo !

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PS: comentário de Ernesto Franzen, suscitado pelo compartilhamento deste post num grupo de WhatsApp:

“O problema dessa democracia direta é que militantes políticos profissionais farão muito mais barulho do que uma maioria silenciosa que trabalha oito horas por dia e chega cansada demais em casa para se manifestar em discussões políticas. Democracia direta para mim vira briga de bugio, ganha quem grita mais.”

Nas próximas eleições federais, vote em candidatos que apoiem a renda mínima universal

Devo a inspiração para esta postagem à notícia sobre uma carreata, ocorrida ontem em Caxias do Sul, pela volta às aulas. Por mais absurdo que o pleito me parecesse, o que mais me chocou foi justamente o caráter de naturalidade de que se revestiu o argumento levantado pelos manifestantes (em sua maioria donos de escolas) – a saber, que pais não tinham com quem deixar as crianças ao voltarem ao trabalho. Pois, em que pesem episódios pouco louváveis de consideração pela infância, tais  como guerras, escravidão e trabalho infantil em lavouras e manufaturas, a humanidade sempre manifestou alguma preocupação com o futuro de suas crianças.

Ainda que, no ocidente, as empresas sejam uma criação medieval que, no entanto, só se difundiu no século XVI, a escolarização obrigatória por lei é um fenômeno bem recente, concomitante à revolução industrial, quando ficaram claras para proprietários de meios de produção as vantagens de se agrupar crianças aos cuidados de profissionais de educação para que seus pais, em idade produtiva, pudessem dedicar a maior parte de seu tempo à geração de lucro para empresários.

A quem este arranjo beneficiou ? Aos empresários, certamente, que puderam enriquecer muito mais rápido. Aos empregados ? Há controvérsias.

Em prol da maximização do trabalho, se pode alegar que excedentes de produção típicos do capitalismo (o último carro para os mais ricos; o último celular para os mais pobres) – bem como o progresso tecnológico astuciosamente “colado” por defensores da economia de fusões e aquisições a este estado de coisas – mantém um ciclo de conforto e consumo impensável em tempos anteriores, em que os meios de produção ainda eram dispersos e não otimizados.

Por outro lado, também se pode argumentar que uma vida em que o tempo de cada um não fosse vendido, ainda que sem os supostos benefícios do conforto e do consumo modernos, permitiria mais satisfação e felicidade individual (isto para não se falar em saúde, tanto física como, principalmente, mental). Infelizmente, ainda não temos uma resposta satisfatória e definitiva para este impasse.

E se agregássemos ao leque uma terceira opção, na qual pudéssemos, ao mesmo tempo, abrir mão da maximização neurótica do tempo de trabalho e preservar e tornar universalmente acessíveis comodidades decididamente vantajosas de avanços tecnológicos recentes, tais como a internet, as vacinas e a medicina diagnóstica ? Esta possibilidade jamais foi testada, o que oferece um argumento bem ao gosto dos defensores da economia de mercado (chega até a lembrar uma fala de Olavo de Carvalho, que define como de direita tudo o que já foi experimentado e deu certo e, como de esquerda, ideias que carecem de comprovação empírica (ca. 1:30 a 2:30 do vídeo abaixo)).

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Mesmo se levado em consideração todo o sofrimento que esta peste já causou, está causando e ainda vai causar, é preciso reconhecer que o vírus, ao nivelar a sociedade pela supressão forçada de coisas supérfluas às quais já havíamos nos acostumado, nos oferece uma oportunidade ímpar (é pegar ou largar), ainda que dolorosa, de escolhermos um futuro melhor que, antes da pandemia, já havia sido descartado como improvável ou mesmo impossível com base no popular e já gasto mito da inexorabilidade do mercado.

É um impasse complicado, no qual se encontram entrincheiradas tanto forças progressistas, como o já célebre manifesto holandês pelo decrescimento, como conservadoras, tais como, por exemplo, líderes políticos tentando desesperadamente salvar uma economia que, muito antes da covid-19, já dava inconfundíveis sinais de desgaste. Diga-se também, de passagem, que a pressa, por parte de políticos e empresários, em levantar a quarentena e devolver a economia à normalidade anterior denota, mais do que irresponsabilidade, o temor de que o isolamento prolongado efetivamente leve as pessoas a repensarem suas prioridades. Ou até a pensarem nelas pela primeira vez, posto que muitos de nossos imperativos econômicos não passam de noções apreendidas ou herdadas em nome de interesses minoritários de terceiros.

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Tendo explorado, talvez num excesso que comprometa a concisão, os caminhos laterais acima, torno ao que me pareceu absurdo – tristemente bizarro, até – na manifestação de ontem em Caxias. Se trata precisamente da naturalidade que o trabalho excessivo, dissociativo do tecido familiar e social, acabou assumindo para a maioria das pessoas, a ponto de alguns defenderem sua retomada mesmo ao custo do risco de, com isto, estarem comprometendo a sobrevivência de gerações futuras. Desenhando: preferem arriscar o futuro de seus descendentes do que a permanência do único modo de vida que conseguem imaginar, mesmo que legítimos bullshit jobs.

Pensem num dia típico familiar. Após uma refeição matinal, muitas vezes não simultânea em razão de horários escolares e de trabalho diferenciados, cada membro de uma família se dirige a seus compromissos diários. Poucos se reencontrarão na hora do almoço. À noite, com sorte partilharão da mesma mesa de jantar para, depois, sucumbirem à televisão, às redes sociais ou aos jogos online até que o sono se abata sobre cada um deles. Oportunamente, em datas festivas todos compensarão tais ausências com presentes que, ao fim e ao cabo, servirão mais para engordar os cofres de empresas dedicadas à fabricação e ao comércio de bens de consumo.

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Uma expressão que vem se popularizando, em escritos sobre possíveis cenários pós-pandemia, é a necessidade de se “descolonizar o imaginário”, sob o custo de, se não o fizermos, estarmos simplesmente retornando a uma economia sabidamente falida, que já vinha “em rota de colisão”, cuja continuidade só pode nos levar a conceber futuros distópicos tais como barreiras migratórias, degradação ambiental, guerras por recursos naturais e convulsões sociais.

Sob tal perspectiva sombria, se destaca uma possibilidade, há muito aventada por economistas menos ortodoxos e até mesmo já experimentada – a saber, a renda mínima universal, não por acaso presente na agenda do supracitado manifesto holandês. A ideia de uma renda mínima costuma ser defendida por quem também advoga uma redução drástica das jornadas de trabalho, como aqui e aqui. Para maiores informações sobre a mesma, incluindo sua história, vantagens e implementações experimentais, recomendo um livro excelente, que resenhei aqui.

Quando se fala em renda mínima, geralmente a pergunta que não quer calar é “de onde virão os recursos ?” Da tributação, ora bolas. Não, evidentemente, de uma tributação horizontal, que cobre a todos um dízimo pelos benefícios a serem oferecidos pelo estado, mas de uma mais vertical, que incida mais pesadamente sobre os grandes lucros. É neste tipo de discussão que gosto de lembrar que o banco que está posando de grande benfeitor público – inclusive com direito a publicidade gratuita na televisão em horário nobre – por ter doado 1 bilhão de reais para o combate à crise sanitária desencadeada pelo coronavírus é o mesmo que lucrou 26,5 bilhões apenas no último ano.

Por mais incrível que possa parecer, a renda mínima vem despontando como uma bandeira da direita (sic !), mais exatamente como uma forma de estimular o empreendedorismo. Em que pese a possibilidade disto vir a ser verdade, a parte da humanidade que advoga uma restauração do equilíbrio na vida humana e no meio ambiente deve saudá-la como a grande mediadora do fim da exacerbação do tempo e do valor do trabalho, bem como do preenchimento deste tempo, uma vez disponível, com atividades mais edificantes, do ponto de vista do crescimento individual, do que a replicação, por toda uma vida, de tarefas repetitivas dentro de uma linha de produção. Falo, é claro, principalmente das artes, que já floresciam muito antes da revolução industrial.

A maior de todas as virtudes da renda mínima parece ser o fato de que, por meio da garantia de sobrevivência independentemente do trabalho, possibilitará a todos a descoberta de que a qualidade de vida não é (ao contrário do que comumente propalado), necessariamente, uma função direta da quantidade de trabalho – i.e., que não é verdade que “quanto mais se trabalha, melhor se vive”. Pois a desmistificação desse valor exacerbado do trabalho, bem como do mito do crescimento ilimitado, se constituem nas mais temidas verdades inconvenientes para o neoliberalismo ou, em última análise, nas únicas capazes (oxalá !) de fazê-lo ruir.

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Rutger Bregman, também conhecido como Senhor Renda Mínima Universal

 

Textos sombrios (i): sobre competição X colaboração

” Esta guerra só terminará quando restar apenas um homem. “

(livre adaptação de uma frase proferida pela personagem vivida por Bennedict Cumberbatch no filme 1917)

Tenho andado meio prá baixo. Tanto que o nome deste texto bem poderia ser “vem, meteoro”. Mas não quero incomodar eventuais leitores com queixumes da vida ou cansaço e apatia típicos da idade que avança. Antes, prefiro examinar o contexto profundo, bem abaixo do manto de reveses casuais, efêmeros, que por vezes oculta condições muito mais pervasivas e permanentes capazes de abalar nossa confiança na civilização em que estamos imersos. Falo, é claro, do paradigma entre competição e colaboração no qual pode ser enquadrada qualquer dinâmica comportamental coletiva.

Sempre que alguém, indivíduo ou instituição, deseja enaltecer o caráter benigno de um grupo, se refere à natureza colaborativa do mesmo. A batidíssima metáfora de engrenagens trabalhando em prol de um bem maior, utilizada indiscriminadamente para descrever o funcionamento de empresas, universidades, clubes, órgãos públicos e agremiações de toda sorte. Exploradores do trabalho alheio se referem eufemisticamente a seus subordinados como “colaboradores”. Coaches gostam de comparar o funcionamento de empresas saudáveis ao de uma orquestra. O próprio Harari afirma que a espécie humana se distingue de outros hominídeos pela capacidade de colaborar em larga escala.

As meias verdades. Pois por trás de toda iniciativa elogiada como colaborativa existe, conquanto nem sempre aparente, uma hierarquia competitiva – bastando, geralmente, para vê-la, olhar um pouco mais de perto.

Embora a colaboração domine o discurso politicamente correto, é a competição que regula virtualmente tudo do que participamos. Se por vezes não a reconhecemos, é por estarmos demasiado acostumados a ela. A competição está perfeitamente naturalizada em nossa cultura. Mal apreendemos a falar e já somos deixados, por vários anos, à mercê de uma escolarização que preza, acima de tudo e por mais que alguns assim não o admitam, um sistema de notas e conceitos que premia os melhor adaptados e detecta qualquer desvio. Tal sistema se propaga pela educação superior, tornando-se mais complexo (currículos, head hunters e “bancos de talentos”), estreitando o funil e culminando nos concursos públicos (cada vez menos) e demais processos seletivos. Uma realidade global da qual é impossível fugir.

A competição é saudada pelos mais jovens como um poderoso fator de progresso individual. Por meio dela – e só por meio dela ! – se pode chegar a lugares melhores do que aqueles em que estão os outros. Ora, é claro que ninguém quer que os outros se danem, desejando para eles, ao menos, um estado de bem estar social. Saúde, segurança, educação, moradia e comida na mesa. Com todos acima da linha de miséria, não há problemas de consciência capazes de inibir quaisquer sonhos de grandeza por parte dos mais ambiciosos. A grande fantasia meritocrática capitalista que, todavia, num mundo de recursos finitos, simplesmente não existe. Ou seja, para que uns sejam mais ricos e poderosos, é preciso, necessariamente, que a maioria dos demais seja mais pobre e submissa. Simples assim.

Redistribuição pressupõe colaboração ao invés de competição. Só que, para tal troca de paradigma, não bastaria nascermos de novo. Seria necessário que, antes, a própria espécie se enxergasse diferente. O amor parental, por exemplo. Por mais “de esquerda” que um pai seja, inevitavelmente reconhecerá o mundo como um lugar cruel, desejando para seus filhos posições privilegiadas –  isentas, na medida do possível, do sofrimento impingido à maioria, não medindo esforços ou tendo o sono tranquilo até atingir tal objetivo. São compatíveis com esta visão formulações filosóficas ultra radicais como o antinatalismo e o Movimento pela Extinção Humana Voluntária (VHEMT), que preconizam o fim da humanidade por meio da renúncia à procriação, a partir da constatação histórica de que o mundo, apesar de todo progresso tecnológico, vem se tornando um lugar cada vez mais hostil à vida. Embora o VHEMT seja, originariamente, de índole ambientalista, seu discurso se aplica perfeitamente à constatação da falta generalizada de empatia entre os homens (salvo, é claro, no caso muito particular da empatia entre semelhantes).

A caridade, por exemplo. Na maioria das vezes, se gasta muito mais para ostentar publicamente uma atitude de compaixão pelos mais necessitados do que, propriamente, ajudando os últimos. É só comparar todos os custos (do salão de beleza às vestimentas, à alimentação, à segurança, aos equipamentos, à publicidade, à energia, às emissões de carbono…) envolvidos na realização de eventos tais como banquetes filantrópicos ou shows beneficientes com os valores efetivamente arrecadados nos mesmos para ajuda humanitária. Quanto mais poderia ser direcionado para as causas contempladas simplesmente não se realizando tais eventos ?

Por aqui termina a parte “vem, meteoro” deste texto. A seguir, observações e especulações sobre a naturalização da competição em nosso imaginário e o que torna uma espécie eminentemente competitiva ou, ao invés, colaborativa. A irresistível busca de um modelo matemático (esta mania tão cara aos economistas).

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Ao contrário do pensamento “de esquerda”, que brota espontaneamente e de forma independente de incontáveis autores, o ideário “de direita” sempre foi uma construção fomentada por think tanks tais como a Atlas Foundation ou a Mount Pèlerin Society, mantidas, por sua vez, o mais anonimamente possível por bilionários com a finalidade de influenciar governos e mercados e, em última instância, fazer a cabeça de gente como Kim Kataguiri ou Fernando Holiday.

Dentre os argumentos mais caros ao campo de pensamento acima está a ideia de que a suprema eficácia da mão invisível do mercado se baseia em processos competitivos presentes na natureza, da sobrevivência dos melhores espécimes ao aperfeiçoamento genético. Jogada sem dúvida astuta, já que a simples invocação do nome de Darwin em apoio a qualquer argumento é por si só capaz de intimidar os contraditórios mais ousados – os quais são, por sua vez, relegados, ante os menos atentos, a uma posição francamente anti acadêmica, quase terraplanista. E assim, muito embora economia nada tenha a ver com biologia, está feita a mistura de alhos com bugalhos, cuspida aos sete cantos pelos mais pobres de espírito.

Mas voltemos ao binômio competição X colaboração na natureza. Embora elementos da duas possam ser concomitantemente reconhecidos na vida de muitas espécies, a colaboração é mais comumente associada às colônias de insetos enquanto a competição, aos grandes predadores. Tanto entre espécies (a aniquilação das presas) como intra espécie (a primazia ou, em última instância, sobrevivência do mais apto (o melhor caçador, no caso)).

Temos, então, ao menos duas variáveis determinantes do caráter mais competitivo ou colaborativo de uma espécie – a saber, número e tamanho. Pois insetos que colaboram em colônias são pequenos e numerosos enquanto predadores, grandes e, via de regra, solitários. Salvo, é claro, os pequenos bandos. É só comparar a vasta área de domínio de felinos numa savana com a enorme densidade demográfica de minúsculos formigueiros ou colmeias.

Deste modo, se pode afirmar com bastante segurança que quanto maior o indivíduo de uma espécie, maior a probabilidade de se tratar de um predador; e que, inversamente, quanto menor, mais chance de pertencer a um coletivo colaborativo. A esta altura, não faltará quem se lembre de inofensivos elefantes, bovinos, girafas ou baleias – mas, ora bolas, o que seria de qualquer regra não fossem as exceções ? Tratemos, pois, de refinar a equação: talvez o pequeno tamanho de uma espécie seja mais determinante de seu caráter colaborativo do que o grande porte de um comportamento competitivo. Ou, noutras palavras, que, em se tratando de determinar um comportamento colaborativo, o tamanho do bando seja muito mais importante do que o do indivíduo.

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Sem chegar, assim, a nada muito conclusivo (pensando bem, é melhor deixar a modelagem matemática para os economistas), esqueçamos um pouco o binômio competição X colaboração no reino animal para nos debruçarmos sobre o aparente paradoxo da espécie humana, de comportamento colaborativo (pelo menos assim quer Harari, ao nos distinguir de outras espécies, inclusive humanoides, pela capacidade única de colaboração em larga escala), não obstante seu porte avantajado, de um grande macaco, típico de predadores.

Além disso, a relação do homem com as outras espécies, já que a mera criação e/ou exploração de outros animais, seja para abate, produção em vida de outros alimentos e commodities (leite, ovos, mel, lã, etc.) ou tração, se configura, ainda que nem sempre em predação, em inquestionável dominação.

Nos ocupemos, pois, apenas da relação do homem com outros homens. Conquanto a tradição humanista prefira pensar no homem como essencialmente colaborativo em relação a seus pares, toda sociedade humana é hierarquizada, premiando com posições de maior remuneração, liderança ou prestígio aqueles indivíduos reconhecidos, mediante sofisticados instrumentos antropométricos, como melhores ou mais aptos. Isto vale tanto para as democracias liberais, onde empreendedores mais ousados triunfam e políticos mais astutos são eleitos, como para as sociedades mais igualitárias, nas quais todavia persiste a  distinção entre líderes e classes trabalhadoras.

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Tornando à instigante frase que serve de epígrafe a este post, entendemos que a humanidade somente escapará da auto aniquilação quando conseguir abrir mão de sua índole competitiva. Antes disso, porém, é preciso que cada indivíduo se posicione em relação a reconhecer a competição como um fato biológico, inerente à condição humana, como querem os adeptos à economia de mercado; ou se, antes, se trata de uma construção exclusivamente ideológica, invocada para agregar naturalidade e ares de “respaldo científico” à ideia de exploração do homem pelo homem.