Blues eleitoral

Às vésperas das eleições municipais, o desânimo se abate sobre mim. Sorrio, resignado, sempre que ouço o batidíssimo bordão da grande “festa da democracia”, da qual só percebo lixo nas ruas e na mídia – pasmem, até nas sociais ! A sensação é a de já ter visto este filme antes. Muitas vezes.

Não falo, evidentemente, do sistema eleitoral, que vem se aperfeiçoando a cada pleito. Prevenindo fraudes e facilitando a vida do eleitor. Sem sombra de dúvida, a Justiça Eleitoral brasileira faz um ótimo trabalho. Minha descrença é no sistema político em si. Por mais convincente que seja o discurso de alguns candidatos, uma vez eleitos se encastelam em palácios de governo e câmaras legislativas, aceitando privilégios e se distanciando cada vez mais dos reais anseios daqueles que os elegem. Na retórica de campanha, o eleitor é deus. Depois, quem manda são os lobistas, cujas “verbas de persuasão” extrapolam, por vezes, os já polpudos vencimentos parlamentares.

Façam um exercício simples. Imaginem se a tão apregoada Reforma Política fosse realizada exclusivamente por emendas populares. Ou até uma constituinte exclusiva. Sem entrar em detalhes, é possível supor que a “carta” resultante seria bem diferente do que hora é proposto por deputados e senadores.

Mas é claro que só este ranço não resolve nada. Antes, porém, de dizer algo mais “propositivo” (lá vem ele de novo com aquela conversa de democracia direta…), não há como não falar de algumas impressões de campanha que, de um modo ou de outro, contribuem para meu desânimo.

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Em meio à sujeira dos espaços públicos (visual e sonora) e invasão do privado, talvez no maior orçamento publicitário que se conheça, certos signos se destacam. A fotografia dos candidatos, por exemplo. Não há como não rir dos esforços de artistas gráficos que tentam, em vão, acomodar numa mesma imagem fotos de duplas (candidatos e seus vices) tiradas em circunstâncias diferentes, como a emular as raras aparições simultâneas dos mesmos em eventos de campanha, como comícios (ainda existem ?) e afins. Nestes caso, sequer se dão ao trabalho de utilizar a mesma câmera com a mesma regulagem nem as mesmas condições de iluminação.

Falei disto há muitos anos, a propósito da foto oficial da chapa de Dilma e Temer, na qual a cor, o brilho e o contraste eram radicalmente diferente nas fotos dos dois candidatos. Desde lá, pouco mudou. Para falar só de candidatos vencedores, observem a imagem de Manuela com Rossetto menor em segundo plano. Como um papagaio de pirata ao ombro (um clássico da iconografia eleitoral, a sublinhar a hierarquia entre os dois). Tudo bem. As fotos dos dois são mais parecidas entre si do que na imagem de Dilma e Temer, na qual a foto da primeira é mais difusa do que a do último. Mas e a luz ? Em que raio de estúdio estavam para serem iluminados um pela esquerda e o outro pela direita ? Tal resultado seria difícil, senão impossível, mesmo para os melhores diretores de fotografia. Ok, deve ser dito, a bem da verdade, que tal resultado seria possível com com a utilização de fachos mais estreitos de uma luz mais “dura”, como no teatro. Só que a suavidade dos rostos, obtida através de uma luz mais difusa, publicitária, acaba denunciando a montagem. Coisas assim alimentam a suposição de que candidatos de coligações raramente, se é que alguma vez, se encontram antes dos pleitos. Como em casamentos arranjados onde os noivos só se conhecem na noite de núpcias.

Também se popularizaram nesta campanha os estandartes verticais com um dos cantos superiores em curva, ou wind banners, montados sobre uma vara vergada que mantém a bandeira esticada (e, portanto, legível) mesmo sob condições de vento adversas.

Bandeiras são um signo eleitoral que remonta aos grandes comícios e à existência de uma militância. Mesmo que tremulassem ao vento, era possível identificar à distância a “maré vermelha” do PT. Como nas torcidas de um grenal, nas quais sempre reconhecemos o time pela cor hegemônica. Hoje, candidatos não tem qualquer vergonha de chamar de militantes os trabalhadores temporários que contratam para distribuir santinhos e agitar bandeiras em cruzamentos mais movimentados. Alguém acredita quando falam em “nossa militância” ? Ou escolhe candidatos em razão deste tipo de publicidade ?

Não creio. Apenas sei que, na horda de bandeiras multicoloridas que tremulam nos semáforos, não consigo identificar os candidatos, cujos nome se tornam ilegíveis em razão da ação do vento, que conspira contra as campanhas políticas em nosso estado nesta época do ano. Tal fato é, sem dúvida, o principal responsável pela enorme proliferação dos wind banners mencionados logo acima.

Outro signo recorrente destas eleições é que candidatos, em sua publicidade visual, frequentemente omitem (ou mencionam apenas em letras miúdas) as legendas partidárias pelas quais concorrem. Estariam tentando descolar suas imagens do descrédito que se abateu sobre os partidos como um todo ? Talvez. E, neste caso, isto é bom. Pois, se quisermos mudar o sistema político, é preciso atacar seu flanco mais vulnerável – que são, hoje, os partidos.

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Neste ano me aconteceu algo inédito. Fui procurado numa rede social por um candidato a vereador que me solicitou um número de WhatsApp pelo qual pudesse me enviar projetos (leia-se material de campanha). Caí na asneira de assentir. Desde então, recebo repetidos convites para participar de assembleias populares, a fim de elencar prioridades a serem defendidas em seu pretendido mandato legislativo. Até aí tudo bem: suas ideias são boas, principalmente a de um “mandato popular”. Só que, já tendo um candidato de minha preferência, lhe enviei o link para minha mais recente diatribe contra a representação parlamentar. Algo que, supunha, seria capaz de dissuadir qualquer um de qualquer aspiração a cooptar meu voto. Só que, pasmem, ele continuou, num ritmo frenético e automático, a me enviar sua propaganda. O que só me leva a acreditar que sequer leu o que escrevi.

Que lição tiro disso ? Simples. Por melhor que sejam as intenções de qualquer candidato, é humanamente impossível a qualquer um conhecer, que dirá representar, o interesse uma maioria anônima. Se eleitos, ainda que continuem, por algum tempo, virtuosos e incorruptíveis, fatalmente sucumbirão ao assédio daqueles que frequentam corredores de câmaras legislativas em busca de uma oportunidade para influenciar quem delibera sobre nossos desígnios. Assim é o sistema: ainda que candidatos precisem de eleitores para chegar lá, o que prevalece, ao fim, é a vontade dos lobbies.

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Sempre sonhando, consigo, no entanto, perceber uma tênue luz no fim do túnel. Neste pleito, em razão da peste, a justiça eleitoral finalmente começa a testar um protocolo para votação online, com gigantes da indústria da informação concorrendo para oferecer o melhor sistema. Há muito preconizado por defensores da democracia direta, tal expediente ainda é, no campo das coisas práticas, testadas e aprovadas, algo inédito. E há razões para isto, principalmente no que tange à segurança.

Ora, se confiamos na internet para realizar compras, efetuar operações bancárias ou mesmo nos comunicarmos com alguma privacidade, por que santo raio eleições não poderiam se beneficiar das mesmas tecnologias ? Então, se a coisa ainda não deslanchou, é evidente que tal fato não se deve tanto a reservas quanto a questões de segurança mas, ao invés, muito mais à falta de vontade política. Ou seja: há muito que já podemos, mas alguns ainda não querem.

Campanhas publicitárias dependem de bons slogans. Como, por exemplo, a proposição anti-lobby de Lawrence Lessig, chamada Fix Congress Now. No caso da democracia direta, a maioria concorda com suas vantagens mas ainda hesita diante de argumentos dos que hoje se beneficiam da representação, os quais, por sua vez, não defendem a necessidade (indefensável) da própria existência mas, ao contrário, atacam possíveis falhas de propostas promissoras que sequer foram testadas. De tal modo que toda campanha em prol da democracia direta deveria se abrigar sob o guarda-chuva do slogan “Por que não ?” ou, simplesmente (não é de hoje que me acusam de anglicismo – mas o que fazer se o idioma do norte é, na maioria das vezes, adoravelmente mais compacto ?), “Why not ?”.

Por uma democracia direta (ii): de como o lobby é nocivo à democracia e sobre como podemos acabar com ele

Eleições que se aproximam: hora de tornar a remoer certas ideias. Não que, a curto prazo, adiante alguma coisa. Afinal, com os discursos afinados e as campanhas nas ruas, a sorte já está há muito lançada. A descolonização do imaginário é uma tarefa lenta, que rejeita todo imediatismo. Ainda assim, mesmo que alguém não viva para ver qualquer resultado, não deixa de valer a pena se esforços forem vistos sob uma perspectiva mais ampla, numa escala de tempo mais dilatada do que a dos breves mandatos eletivos.

Falo, aqui, da banalização ou aceitação acrítica de algumas instituições hoje defendidas por políticos e poderosos tais como, por exemplo, o lobby ou o fundo eleitoral. O cidadão comum não costuma se perguntar por que precisamos de representantes legislativos nem de que maneira o lobby, que querem até regular e legalizar, é nocivo à própria democracia. Basta que algum engravatado, provavelmente bacharel em direito, profira algo em favor do status quo, para que pareça um “entendido” em qualquer assunto, ao menos muito além do que o simples eleitor, que, portanto, passa a acreditar naquilo como uma verdade inquestionável. É a síndrome do “você sabe com quem está falando ?”, conhecida em lógica como argumento de autoridade, antítese da falácia do envenenamento do poço.

O lobby se constitui, na origem, como um desequilíbrio no jogo democrático na medida em que permite a determinados indivíduos ou grupos de interesse minoritários influenciar, quase sempre com recursos financeiros (como propinas ou doações de campanha), em decisões de legisladores (senadores, deputados ou vereadores) ou ações de executivos (presidentes, governadores, prefeitos, ministros e secretários). Por meio do lobby, interessados devidamente articulados podem facilmente “molhar o bolso” de legisladores e governantes ou seus prepostos para obter vantagens (das quais legislações protetivas, isenções fiscais e licitações fraudulentas são apenas alguns exemplos), apesar da franca oposição da maioria dos cidadãos às vantagens concedidas.

Tradicionalmente, o lobby é sorrateiro. Age às escondidas, à margem do poder. Encontros com lobistas não pertencem à agenda pública dos políticos, acontecendo, antes, dentro de sua esfera privada. Com o tempo, a figura do lobista entrou definitivamente no jargão das câmaras de representantes, onde circulam anonimamente. O bom lobista não dá entrevistas. Foge das câmeras, microfones e holofotes. Se não achar um jeito de “acessar” determinado senador ou deputado, facilmente encontrará outro. Projetos de regulamentação do lobby (a nosso ver uma contradição por si só), que visam facilitar o “trabalho” destes intermediários da corrupção, são, portanto, uma afronta à inteligência da sociedade, que assiste impotente à sua naturalização por parte de quem dele se beneficia.

Por tais razões, defensores do lobby sustentam o mito de que ele é inevitável. Felizmente, há controvérsias. Numa das mais célebres iniciativas para conter a mazela, Lawrence Lessig, professor de direito de Harvard, ativo defensor da neutralidade e da liberdade da internet, criador da licança Creative Commons, propôs o movimento “Fix Congress Now”, que limita doações de campanha a 100 dólares por cidadão – nivelando, com isto, o poder de influência de eleitores individuais com o de grandes corporações.

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Contra os lobbies, pensamos em outra vacina. Se trata da democracia direta, já defendida por aqui em textos anteriores (como aqui ou aqui) – os quais, no entanto, se concentravam tão somente na vasta economia para os cofres públicos que a abolição das obsoletas câmeras de representantes traria (compreensivelmente, tal hipótese é taxada com horror pela maioria dos senadores, deputados e vereadores como “uma grande ameaça à democracia”).

Hoje, quero convidá-los a refletir sobre como grupos de interesse economicamente poderosos, ainda que minoritários, poderiam interferir em decisões políticas num contexto, utópico, em que todo e qualquer cidadão pudesse deliberar diretamente sobre o que bem lhe aprouvesse. Quero acreditar que os grupos econômicos supracitados enfrentariam bem mais dificuldades para convencer milhões de cidadãos a votarem de acordo com seus interesses do que umas poucas centenas ou dezenas de representantes legislativos. Desta forma, a democracia direta esvaziaria a instituição escandalosamente indecente do lobby de qualquer sentido.

Pensem nisto !